Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA


Ao chamar “Histórias da Medicina” a este blogue, pretendi associar a História às histórias (ou estórias, na grafia de alguns). Proponho organizar um espaço onde possam ser divulgados episódios curiosos ou relevantes da nossa vida profissional.
Mudaram tempos e vontades, mas o contacto médico-doente continua a ser uma relação humana privilegiada. Dia a dia, a nossa vida vai-se enchendo da experiência de vivências de grandeza e miséria, e chega a espraiar-se, entre duas consultas, do sorriso às lágrimas.
É tempo de contar a primeira “historinha”. Este relato, como os que se hão-de seguir, é autêntico, no essencial.


Vista da Sé Velha de Coimbra

Aguarela de Quintas de Morais






A Medicina e a Magia andaram ligadas em épocas primitivas e ainda não se livraram bem uma da outra, pelo menos no modo de pensar de muita gente do nosso tempo.
Em Coimbra, por volta de 1968, dei conta de ser também dotado de uma aura mágica. Acabado o Curso, cumpria o estágio de um ano nos Hospitais da Universidade.
Bateram-me à porta pelas cinco da manhã. Fui à janela. Eram os vizinhos do outro lado do Beco da Carqueja, junto à Sé Velha. Pediam ajuda médica.
Atarantado, por não estar habituado àquelas coisas, vesti-me à pressa. Peguei na maleta nova onde tinha metido um estetoscópio e um aparelho de tensão arterial e saí.
Subi as escadas e fui conduzido a um quarto apinhado de gente de cabeça perdida. O doente, que era o mais velho da casa, estava aterrorizado. Abri a maleta e pendurei o estetoscópio ao pescoço. De repente, ficaram todos tranquilos no compartimento. Bem... Todos menos eu.
O velho fora acordado por uma espécie de patada de elefante no meio do peito. Estava suado. A tensão arterial mal se media. O pulso era fraco e arrítmico.
Os meus fracos conhecimentos permitiram fazer um diagnóstico provável de enfarte agudo do miocárdio e aconselhar o internamento rápido. O transporte foi organizado com calma e eficácia e um genro conduziu o senhor à Urgência do Hospital, que ficava bem perto.
O doente morreu minutos depois de chegar ao Banco. Morreu tranquilo.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

OS MÉDICOS DE AL-ANDALUS


AVENZOAR E AVERROES


AVENZOAR

Ibn Zuhr (Avenzoar para os ocidentais) terá sido médico, farmacêutico, anestesista, cirurgião e parasitologista. Nasceu em Sevilha, em 1091, e estudou na Universidade de Córdova. Pertencia à família Banu Zuhr, que deu cinco gerações de médicos, incluindo duas médicas (a sua irmã e uma sua sobrinha) que tratavam doenças de mulheres.
Por volta de 1130, Avenzoar caiu em desgraça na corte do rei Almorávida Ali bin Tashufin e fugiu de Sevilha. A fuga correu mal. O médico foi preso e encarcerado em Marrocos. Terá passado 10 anos numa prisão de Marrakesh. Em 1147, quando os Almóadas conquistaram Sevilha, voltou à terra natal e aí exerceu e ensinou Medicina, enquanto os aliados dos seus soberanos lutavam com o nosso rei D. Afonso Henriques. Avenzoar morreu em 1161.
A sua obra mais conhecida é Al-Taisir. De clara orientação empírica, Avenzoar contrariou o dogmatismo aceite por quase todos os médicos árabes. Recorreu à observação cuidadosa dos doentes e à aprendizagem prática.
São-lhe atribuídas as primeiras descrições exactas de da meningite, da tromboflebite intracraniana e dos tumores do mediastino. Terá feito autópsias em seres humanos e em animais.
Tendo sido o primeiro cirurgião a fazer experimentação cirúrgica em animais, antes de aplicar as técnicas em humanos, é considerado o introdutor do método experimental em cirurgia. Introduziu a traqueostomia em cabras e sugeriu, pela primeira vez na História da Medicina, a nutrição parenteral em humanos, com recurso a uma cânula de prata ou de estanho. Demonstrou que a sarna era provocada por um parasita e foi o primeiro médico a oferecer uma explicação científica para as doenças inflamatórias dos ouvidos.
Há quem diga que foi o primeiro cirurgião da História a utilizar anestésicos inaláveis. Terá praticado centenas de intervenções cirúrgicas usando esponjas impregnadas de narcóticos colocados na cara dos doentes. No entanto, as informações disponíveis não são concordantes. A maioria dos comentadores não lhe faz referência.
A dar crédito a todas estas informações, Avenzoar terá sido o médico e cirurgião mais importante da História antiga, depois de Hipócrates e Galeno. É essa, pelo menos, a opinião do seu discípulo Averroes.
Maximiano Lemos, na sua História da Medicina em Portugal, é bem mais reservado ao avaliar o papel dos árabes no desenvolvimento da Medicina. Diz que nos trabalhos de Avenzoar não há coisas novas nem importantes. Afirma textualmente que os dogmas da religião maometana proibiam a dissecação dos cadáveres. Avenzoar terá sido mesmo um dos poucos médicos que se ocuparam da cirurgia, habitualmente entregue a subalternos.
O médico morreu em Sevilha de um tumor que tentou tratar a si próprio e de que descreveu a evolução.

AVERROES

Averroes é uma distorção latina de Ibn Rushd, que foi discípulo e amigo de Avenzoar. Nasceu em Córdova em 1126 e morreu em Marrakesh em 1198.
Foi mais filósofo do que médico. Escreveu ainda assim, vários tratados de medicina árabe, entre os quais o famoso Regras Gerais de Medicina, conhecido como Colliget na tradução latina. Averroes afirmou que ninguém podia sofrer duas vezes de varíola e foi o primeiro a atribuir propriedades fotorreceptoras à retina.
Chegou a ser médico pessoal do rei Abu Yusuf al-Mansur, mas foi destituído do cargo por divergências filosóficas com os Almóadas.



Fontes:
Lemos, Maximiano. História da Medicina em Portugal. Publicações Dom Quixote/Ordem dos Médicos, Lisboa, 1991.
Wikipedia
Gravuras: Net

Também publicado em O BAR DO OSSIAN

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

LUÍS DE ALMEIDA - MÉDICO E MISSIONÁRIO


Luís de Almeida pertencia a uma família de cristãos novos e terá nascido em Lisboa em 1525. Estudou Latim e Medicina. Em 1546, Mestre Gil, Cirurgião-Mor do Reino, declarou-o apto para a prática de Medicina e Cirurgia.
Almeida embarcou para a Índia em 1548. Durante a viagem, realizou um estágio proveitoso, tomando contacto com as doenças de marinheiros e viajantes e procurando tratá-las.
Em Goa, no entanto, pôs a Medicina de lado. Fez-se mercador e deslocou-se várias vezes ao Japão em proveitosas viagens de negócios. Por volta dos trinta anos, terá sido tocado pelo apelo de Deus. Em 1555, em Funai, foi admitido na Companhia de Jesus, à qual doou todos os seus bens.
Luís de Almeida trabalhou de 1556 a 1561 no Hospital de Bungo, que ajudou a fundar. Organizou a administração do Hospital seguindo o padrão da conhecida Irmandade da Misericórdia. Recolhia esmolas de portugueses e japoneses. Era com elas que sustentava o Hospital e ajudava os doentes pobres. Formou uma pequena confraria, à maneira portuguesa: há doze japoes irmaos deste esprital, dos quaes dous cada anno tem cuidado delle... Tem seu regimento, como se hao receber os enfermos e gastar as esmolas...
Os medicamentos eram encomendadados em Goa e Macau. Mais tarde, passaram também a ser adquiridos na China. Cheio de trabalho, Almeida começou muito cedo a instruir alguns jovens japoneses que se tornaram seus colaboradores. Nasceu assim a que viria a ser chamada Escola Cirúrgica dos Bárbaros do Sul. Os bárbaros do Sul éramos nós.
A missionação era a actividade principal de Luís de Almeida e a o exercício da Medicina não passava de um meio. Cada cura representava um avanço na evangelização e cada insucesso terapêutico um passo atrás. Escreveu Almeida que não costumava dar medicamentos às pessoas notáveis pelo grande perigo que podia resultar de um mau desfecho do tratamento.
Em 1579, Almeida voltou a Macau ultimar a prepararação para se fazer padre. Foi ordenado sacerdote no começo de 1580. Morreu em Kawachinoura em 1583.
Luís de Almeida foi o primeiro português a chegar a Nagasaki, em 1567. Introduziu no Japão a Medicina e a Cirurgia europeias. Não foi, contudo, o primeiro europeu a fazer de médico no Japão. Fernão Mendes Pinto estivera em Bungo em 1543. Ao verificar que o acesso à medicina chinesa era difícil e caro e que qualquer novidade na área dos cuidados médicos se podia tornar bem-vinda, exerceu medicina e praticou cirurgia, sem ter aprendido nem uma coisa nem outra. Na opinião do próprio, teve um sucesso assinalável.
Almeida não fez mais porque, segundo C.R. Boxer, a medicina europeia daquela época tinha pouco para ensinar. Ainda assim, o jesuíta português introduziu no Japão o moderno conceito de Hospital.
O êxito fulgurante da introdução do cristianismo no Japão, levado a cabo por um punhado de missionários da Companhia de Jesus, surpreende quem lê a História desse tempo. Foi, contudo, sol de pouca dura. A generalização do uso das armas de fogo, ao acentuar o desequílibrio dos combates, apressou a unificação política do País. A receita adoptada fora já experimentada em Espanha no final do século XV: um País, um Rei, uma Religião. Os cristãos foram exterminados.
Dos esforços de Luís de Almeida e dos seus companheiros, resta a memória. Existe hoje em Oita (antiga Funai) o Hospital Luís de Almeida.

Referências:
Yuuki, Diego. Luis de Almeida. Instituto Cultural de Macau 1989.
Rasteiro, Alfredo. Medidina Portuguesa no Japão, 1452-1640. Portal da Ordem dos Médicos.

A MEDICINA (OU A FALTA DELA) EM NAUS E CARAVELAS



QUEM QUER PASSAR ALÉM DO BOJADOR
TEM DE PASSAR ALÉM DA DOR


Até ao reinado do nosso desventurado rei D. Manuel I, as empresas de exploração marítima, a que estariam associados capitais judaicos, davam lucro, ou prometiam-no. É de supor que os marinheiros que viajaram com Gil Eannes, Diogo Cão e Bartolomeu Dias tivessem embarcado voluntariamente, atraídos por um salário que compensasse os elevados riscos e os incómodos da aventura das descobertas.
Não foi assim durante muito tempo. Os judeus foram expulsos e os negócios prejudicaram-se. Partiam mais navios e a mão-de-obra escasseava. As naus que sulcavam os mares da epopeia, rumo Índia ou ao Brasil, cedo passaram a ser tripuladas por gente arrebanhada na ralé de Lisboa. Recrutados à força em ruas e tabernas, ou transplantados da prisão do Limoeiro, ladrões, vadios e mendigos, quantas vezes sem qualquer conhecimento de marinhagem, eram metidos, contra a vontade própria, nas embarcações.
Portugal não foi caso único nesta política de recrutamento. Quem povoou a Austrália, o Canadá e os Estados Unidos da América? Por muito que desagrade aos historiadores oficiais, o número dos que emigraram para fugir às perseguições religiosas na Europa constituiu quase sempre minoria.
As viagens prolongadas por mar criavam problemas de saúde. O escorbuto, devido à falta de vitamina C, é emblemático. Além disso, os forçados marujos, embarcados sem qualquer inspecção médica, levavam as suas doenças para o convés.
A História da Medicina dá realce a Balduino Ronsseus (1564) como pioneiro no tratamento do escorbuto. Contudo, perto de sessenta anos antes, um piloto anónimo ao serviço de Pedro Álvares Cabral, em viagem para a Índia, escreve claramente no seu diário que os alimentos frescos oferecidos pelo rei de Melinde ajudaram a sarar alguns marujos atingidos pela doença.
Os problemas eram muitos, e cedo se deu conta deles. Durante a segunda metade do século XVI começaram a organizar-se, nos navios de longo curso, os cuidados médicos e farmacológicos.
Dizem as más-línguas que as modificações nos preparados farmacêuticos correntes em Portugal no decurso dos séculos XVI e XVII poucas inovações traziam. Seguiam as preparações recomendadas pelas Farmacopeias Londrinas de 1618, 1650 e 1677. Poderão, ainda hoje, fazer a felicidade de alguns adeptos das chamadas Medicinas Tradicionais mas pouco ou em nada contribuíam para o bem estar da gente sã e para a recuperação dos enfermos. Tempos difíceis esses, em que um doente precisava de ter boa saúde para resistir aos cuidados médicos...
Dois séculos mais tarde, Baltasar Chaves, físico de bordo, propunha um conjunto de medidas racionais para limitar a elevada morbilidade dos marinheiros. Os que embarcavam deviam ser sujeitos previamente a inspecção médica. A lotação dos navios devia ser proporcionada às instalações disponíveis, e as reservas de água suficientes. Os mantimentos teriam de ser bem escolhidos e melhor acondicionados. A farmácia de bordo teria de ser adequada e a frequência de escalas programada, de modo a permitir a renovação da provisão de água e de alimentos frescos.
Quem, como eu, passou mais de setenta dias seguidos num navio, sem pisar terra firme, arrepia-se ao imaginar a vida a bordo, num passado ainda recente em que não havia frigoríficos nem radar. Será curioso referir que, nos navios que se dedicavam à pesca do bacalhau à linha, nos mares da Terra Nova e da Groenelândia, em 1970 e 1971, os doentes portadores de afecções cutâneas contagiosas ainda necessitavam de receita minha para poderem tomar banho.

Referências:
Frada, João José Cúcio. História, Medicina e Descobrimentos Portugueses. Revista ICALP, vol.18, Dezembro 1989.
Fotografias: História de Portugal, Publicações Alfa, Lisboa, 1983.
Já publicado em O BAR DO OSSIAN