sábado, 17 de abril de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA

Há doenças que se reconhecem do outro lado da rua. Na calçada que sobe da Avenida da Liberdade para o Hospital dos Capuchos e que, ao longo dos seus quatrocentos metros de extensão, muda três vezes de nome (Rua das Pretas, Rua do Telhal, Rua de Santo António dos Capuchos), cruzei-me repetidas vezes com um acromegálico. Estive tentado a dirigir-lhe a palavra, mas não fui capaz de o fazer. Educaram-me no preconceito de que deve ser sempre o doente a procurar o médico. Ignoro se chegou a ser tratado.
Apesar dos progressos magníficos que se têm verificado nas técnicas de diagnóstico, continuam a existir patologias que apenas se dão a conhecer através da anamnese. Quem não fala do seu mal, não obtém ajuda. É um caso desses que relato hoje.
Entrou-me no consultório um homem alto e magro que andaria pelos vinte e cinco anos. Vinha acompanhado por uma mãe possessiva. Não se afastava do filho e parecia receosa de lhe tirar a mão da cintura ou do ombro. Os médicos ficam de pé atrás quando um homem feito chega com a mãe. Está-se à espera de alguma fragilidade.
Costumo perguntar: "de que se queixa?", "em que posso ajudá-lo?", ou pedir: "conte-me o que o traz cá".
As dificuldades consistem, muitas vezes, em separar o trigo do joio. Há que filtrar, da profusão de queixas, as que podem ser úteis para nos orientar no processo de diagnóstico. Os médicos têm mentalidades muito arrumadinhas: diagnosticar é um jogo que consiste em sintetizar o essencial de cada caso clínico e enformá-lo, até caber numa gavetinha que tem escrito por fora o nome da doença. Investe-se nisso todo o saber e o potencial necessário dos meios complementares de diagnóstico. Quando não se consegue fazê-lo, recorre-se a um especialista da área. Alguns doentes infelizes que não se prestam a ser arrumados, ficam mal vistos. E quantas vezes nos passa pela cabeça que há gavetas com rótulos demasiado vagos e imprecisos, que no futuro, serão talvez divididas em mais compartimentos...
Voltemos ao caso de hoje. Foi a mãe quem falou:
- Ele já está muito melhor...
- Mas diga-me, minha senhora! Está melhor de quê?
- Muito melhor, senhor doutor! Muito melhor!
Vi que, dali, não conseguia nada e voltei-me para o doente.
- Quem vem ao médico, traz sempre algum problema. O senhor não se quer queixar?
- Não! Eu estou bem.
Intrigado, procedi metodicamente ao exame neurológico, esperando que o gelo se quebrasse e que as queixas acabassem por ser expressas.
Quando apaguei a luz para lhe observar os fundos oculares, o doente recuou bruscamente e deu um berro de medo e ameaça. Coloquei-lhe a mão no ombro direito, para o sossegar, e já lá encontrei a mão da senhora. Acendi a luz e pedi que se sentassem. A história soltou-se.
- Senhor doutor! - Disse a mãe - Isto está quase resolvido. Tento eu como ele temos rezado muito.
- Será bom contarem-me o que há ainda para resolver...
O homem permaneceu calado. A mulher endireitou os ombros e resolveu falar.
- Senhor doutor! É o diabo que o anda a tentar. Manda-o, todos os dias, matar-me a mim e, depois, matar-se ele. Ai, quantos padre-nossos e avemarias rezámos... Mas, graças a Deus, vai estando melhor.
Pensei em esquizofrenia. Pedi licença e telefonei a um psiquiatra, pedindo a observação imediata e a previsão de internamento urgente. Parecia-me estarem duas vidas em risco.
Poucos dias antes, mãe e filho tinham estado no consultório de um colega distinto. Não fornecendo dados que o pudessem orientar, saíram de lá com a prescrição de um ansiolítico ligeiro...


sexta-feira, 9 de abril de 2010

AMATO LUSITANO

João Rodrigues foi um entre milhares de judeus portugueses que o fanatismo da Inquisição e a insuficiente visão política do rei Manuel empurraram para longe da terra natal. Manuel I herdou a empresa fabulosa das Descobertas mas permitiu cedo que os seus alicerces fossem abalados. Os portugueses glorificam a Expansão. Orgulham-se dos seus marinheiros mas lembram poucas vezes os mercadores que financiavam as caravelas. Entre os burgueses ricos de Lisboa, havia judeus. Ajudaram também a tecer as malhas do Império. Ao partirem, emprestaram prosperidade a outras nações e empobreceram a nossa. Alguns conservaram, até à morte, orgulho em serem portugueses. Foi o caso do médico João Rodrigues de Castelo Branco que, na idade madura, assinou os seus trabalhos científicos com o nome de Amato Lusitano.
Amato Lusitano nasceu em Castelo Branco, em 1511, numa família de marranos. O seu apelido, Chabib,vertido para latim, deu Amatus. Muito novo, foi estudar para Salamanca. Aprendeu Letras, Medicina e Cirurgia. Aparentemente, era aplicado em Espanha, nessa época, um protocolo ainda mais revolucionário que o de Bolonha, pois o cristão-novo, aos dezoito anos, já estava autorizado a praticar Medicina.
Em 1529, voltou a Portugal. Viajou pelo País e exerceu clínica em Lisboa durante algum tempo.
O ano de 1531 ficou debruado a negro na nossa História. Foi assinada a bula que instituía a Inquisição em Portugal. A insegurança forçou muitos judeus a emigrar. O País foi dessangrado de mercadores e de quadros.
Em 1534, João Rodrigues estava em Antuérpia, onde iria permanecer durante sete anos. Depois, andou de terra em terra. Ensinou Anatomia e Botânica na Universidade de Ferrara. Os seus trabalhos de dissecção em cadáveres humanos permitiram-lhe descrever uma válvula na veia ázigo e perceber que ela direccionava o fluxo de sangue. Abriu assim as portas para o conhecimento da circulação sanguínea, que só viria a ser bem entendida muitos anos mais tarde.
Amato Lusitano passou por Ancona e por Veneza. Em 1550, foi chamado a Roma para tratar o papa Júlio III. Paulo IV, que sucedeu a Júlio na cadeira de S. Pedro, mostrou-se intolerante para com os judeus. Amato Lusitano fugiu à pressa de Ancona para Pesaro. Abandonou mesmo alguns textos médicos já concluídos, como a 5ª centúria, que ainda foi recuperada, e os Comentários ao Livro I de Avicena, que se perderam para sempre.
De Pesaro, foi para Ragusa(actual Dubrovnik). Ali, as discordâncias sobre Dioscórides com Piero Andrea Mattioli ultrapassaram o âmbito da Medicina. Na sua Apologia Adversus Amathum, Mattioli acusou-o de professar a religião judaica, expondo-o à morte.
Em Maio de 1559, João Rodrigues de Castelo Branco partiu para Salónica, então sob domínio do Império Otomano. Os fiéis do Islão eram muito mais tolerantes que os cristãos e Amato pôde praticar em público a sua fé de sempre. Faleceu em Janeiro de 1568, vitimado pela peste que ajudava a combater. Tinha 57 anos.
Entre as suas obras avultam as Centuriae Medicinalia, que são descrições de casos clínicos agrupados aos centos. A título de curiosidade, cito a atenção que Amato Lusitano dá a maneiras invulgares de engravidar. Na 4ª Centúria, refere a história de uma gravidez devida à fecundação pelo esperma derramado num banho. Conta, na 7ª, outro caso de gravidez em que o sémen foi transportado por uma mulher casada que com outra se entregava ao tribadismo. Daí à fábula das éguas lusitanas fecundadas pelo vento ainda vai um longo caminho...
As Centúrias (Amato Lusitano escreveu sete) foram reeditadas múltiplas vezes. Conhecem-se 59 traduções em línguas diferentes. Para além da descrição das características clínicas dos doentes, o mestre português indicava as terapêuticas utilizadas. Permitem ainda partilhar um olhar interessado sobre a Europa do século XVI. Dão indicações sobre o modo de viver de povos diversos, a alimentação, a organização social, as tensões políticas, as guerras e as novidades que iam chegando das terras descobertas. O grande médico português foi também um cidadão do mundo.
Referências: História da Medicina em Portugal. Maximiano Lemos. Publicações Dom Quixote/ Ordem dos Médicos, Lisboa, 1991.
Wikipedia
Gravuras: Internet.
Também publicado em O BAR DO OSSIAN