Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

HOSPITAL REAL DE TODOS OS SANTOS


Os nossos primeiros hospitais tiveram origens diferentes. Uns começaram como asilos de mendicidade, pouco vocacionados para tratar os pobres que adoeciam. Outros resultaram da evolução das antigas albergarias, destinadas a alojar romeiros na época em que as peregrinações religiosas estavam em moda. Alguns nasceram da piedade cristã ou da solidariedade entre oficiais dos mesmos ofícios e pretendiam, desde o começo, socorrer enfermos. Em geral, eram unidades de pequenas dimensões, com orçamentos reduzidos, administração incipiente e serviços clínicos primitivos.
O movimento de concentração da rede hospitalar em edifícios construídos com essa finalidade específica - os espritais solemnes - desenvolveu-se durante os séculos XIX e XV em Itália (Florença, Siena, Roma) e em Espanha (Santiago de Compostela e Toledo). No nosso País, foi impulsionado por D. João II e continuado por D. Manuel, resultando na criação dos hospitais gerais de Lisboa (1492), Coimbra (1508), Évora (1515), Braga (1520) e Goa (1520).
Em Portugal, a reorganização da rede hospitalar integrou-se no processo de centralização do Poder nas mãos do rei, em prejuízo dos privilégios do clero. Foi acompanhada pelo desenvolvimento das Misericórdias, introduzidas no País pelo frade espanhol Miguel de Contreiras. As Misericórdias iriam tomar em mãos a administração da maioria dos hospitais portugueses, ao longo de um período de mais de 400 anos.




D. João II, autorizado pela bula pontifícia de Xisto IV, incorporou na sua obra o património de mais de quarenta pequenos hospitais lisboetas.Como eram muitos os santos protectores, e para não ofender nenhum deu-lhe o nome de todos.
O edifício começou a ser construído em 1492. Seria terminado em 1504, já no reinado de D. Manuel. Era uma construção monumental, destinada a celebrar a caridade e a grandeza do rei. Ocupava grande parte do que é hoje a Praça da Figueira.
O hospital tinha três pisos. Alguns autores contam apenas dois, mas as gravuras disponíveis são elucidativas, pelo menos no que respeita à frontaria.
A fachada estendia-se por cerca de cem metros e encostava-se ao Convento de S. Domingos. Dava para o Rossio. A meio, erguia-se a igreja, de traça manuelina.
No piso superior, existiam três grandes enfermarias (S. Vicente, Santa Clara e S. Cosme). Correspondiam, no plano do edifício, aos três braços da cruz, centrada pelo altar-mor, de forma a permitir aos doentes acompanhar as cerimónias religiosas.
No piso inferior, ficavam a albergaria (ou casa dos pedintes andantes), com cerca de quarenta camas para ambos os sexos, e a casa dos expostos (crianças abandonadas). As crianças eram, depois, entregues aos cuidados de amas externas. Como vemos, as funcionalidades do Hospital de Todos os Santos não se esgotavam no tratamento dos enfermos, abrangendo uma extensa área assistencial.





No mesmo piso estavam instalados vários anexos do hospital, incluindo o refeitório, o forno, a cozinha, a secretaria (casa da fazenda) e a farmácia.
O hospital dispunha de um vasto logradouro, de claustros e de um cemitério privativo. Incluía pomares e uma horta tão extensa que produzia hortaliça suficiente para o consumo do pessoal e dos doentes.
Os funcionários alojavam-se no piso térreo. Eram cerca de meia centena.
Os doentes estavam separados em função do sexo e da patologia. Das três grandes enfermarias, uma era destinada às mulheres e as outras duas aos homens, sendo uma de medicine e outra de cirurgia. Em 1551, somariam 98 leitos.
Além dessas enfermarias, existia a casa das boubas, ou casa apartada, uma divisão isolada para os enfermos com doenças sexualmente transmissíveis, com relevo para a sífilis que, nessa altura, era considerada um castigo para os pecadores.
Havia quartos para nobres e abastados.
Segundo documentos posteriores ao regulamento de 1504, existiu também uma casa de doidos. Poderá ter sido uma das primeiras enfermarias psiquiátricas do País.
Terá chegado a funcionar um serviço de urgência.
A mortalidade rondava os 20% (um quinto dos doentes admitidos). Era possível, por portas falsas, retirar os cadáveres sem que os vizinhos dessem por isso,"para que, com medo da morte, não desanimassem".
O Hospital Real de Todos os Santos chegou a ser um dos maiores hospitais europeus. Foi dotado de uma estrutura organizativa bem definida, com um provedor da confiança do rei, distinto da direcção técnica. Existiam mecanismos de controlo administrativo. Em 1530, a gestão foi entregue aos padres da Congregação de S. João Evangelista. A partir de 1564, o estabelecimento passou para a responsabilidade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
No tempo do rei Manuel, havia dois físicos e dois cirurgiões, além de um mestre que curava o morbo serpentino (sífilis).
O hospital foi atingido por vários incêndios, tendo sido sempre reconstruído e sucessivamente ampliado. Em meados do século XVII, já existiam doze enfermarias. Por volta de 1750, dispunha de 250 camas.
Não há referência a qualquer sala de operações no regimento original do Hospital Real de Todos os Santos. Nos meados do século XVI, foi ali instituído o ensino da Cirurgia, complementado com dissecações anatómicas em cadáver.
Em 1731, foi nomeado para ensinar Cirurgia Isaac Elliot, nascido em Constantinopla de pai calvinista francês. Cirurgião-mor do Exército, com a patente de coronel de Cavalaria, pouco tempo ensinou. Deu com a mulher "em colóquio" com um frade trino e matou-o. Foi executado em 1733.
O ensino de Anatomia conheceu largos intervalos. Ainda assim, a Cirurgia ensinada no Hospital de Todos os Santos, baseada na prática dos curativos no hospital, conheceu grande reputação no País. O cirurgião português Manuel Constâncio adquiriu certa nomeada, sendo considerado o restaurador dos estudos anatómicos entre nós.
O Hospital Real de Todos os Santos foi destruído pelo terramoto de 1755 e pelo incêndio que se seguiu. Os doentes que sobreviveram foram alojados em tendas, palácios e conventos. Algumas partes do prédio aguentaram-se. O hospital foi parcialmente reconstruído e voltou a funcionar, com limitações. Faltava dinheiro para obras de maior vulto. Em 1761, não dispunha de um único instrumento cirúrgico. Quando eram precisos, pediam-se emprestados.




Em 1759, o Colégio de Santo Antão dos Jesuítas, que educava rapazes nobres, foi confiscado. Com algumas obras, preparou-se para receber doentes. A adaptada instituição hospitalar recebeu o nome de S. José, em homenagem ao rei. No começo de Abril de 1770, os doentes foram transferidos para o antigo colégio O hospital ainda funciona. Trabalhei lá durante duas dezenas de anos.
A História prossegue. A recente intervenção do episcopado português em favor de um maior controle das Misericórdias e os apelos televisivos de alguns sacerdotes que pretendem a devolução dos templos às instituições religiosas parecem inscrever-se num processo secular de luta entre o Poder político e a Igreja. A acção de D. João II e de D. Manuel I iria ter seguimento na actuação do Marquês de Pombal e, mais tarde, na legislação liberal de Mouzinho da Silveira e de Joaquim António de Aguiar. Culminou, vai fazer um século, nas leis da separação das igrejas e do Estado, introduzidas por Afonso Costa. Os imensos bens da Igreja Católica foram incorporados no património nacional. César tomou o que achava que lhe devia pertencer. Os representantes de Deus parecem descontentes com a parte que restou no terreno Portugal.


Fontes:
História da Medicina em Portugal. Maximiano de Lemos. Publicações Dom Quixote /Ordem dos Médicos, Lisboa, 1991.
O Hospital Real de Todos os Santos. Luís Graça, Internet, 2008.
Wikipedia.

Gravuras e fotografia da maquette: internet.
Também publicado em O BAR DO OSSIAN