Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA


Era Inverno e ainda não amanhecera. Segunda-feira, dirigia-me de carro para o meu trabalho, no Hospital de S. José. Na data, não existia a Ponte Vasco da Gama e só havia uma auto-estrada para Lisboa. Os tempos eram seguros e podia-se ajudar um desconhecido sem receio de assaltos.

Em frente à cadeia, encontrei um homem a pedir boleia. Encostei o automóvel à berma da estrada e deixei-o entrar. Minutos depois, explicou-me para onde se dirigia.

- Sabe, senhor? Eu sou recluso e obtive agora a primeira autorização para ir passar o Sábado e o Domingo a casa. Tenho de estar cedo na cadeia, senão para a semana não me deixam sair outra vez.

- Mas a cadeia é lá atrás!

- Como? A cadeia de Setúbal?

- Essa mesmo. O senhor estava em frente dela. Era só atravessar a rua...

- Que grande chatice! E agora?

- Agora, eu deixo-o na Estação de Serviços, que é já a seguir. O senhor atravessa a auto-estrada e pede outra boleia. Talvez ainda chegue a tempo...

Parei, desejei-lhe boa sorte e voltei ao caminho, sem saber se havia de sorrir ou de entristecer. O homem só conhecia a cadeia do lado de dentro das grades.


Foto: Internet

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA


A mulher era mais elegante do que magra. Andaria pelos quarenta anos e conservava um rosto bonito. O marido estava emigrado na Alemanha e só vinha a Portugal em Agosto e Dezembro.

O que melhor lembro dela é a mistura de força e de fraqueza, de coragem e de vontade de desistir. Quase todos somos um pouco assim, mas aquela senhora parecia transparente, como se tivesse a pele de vidro e qualquer um lhe pudesse espreitar as emoções.

Falou sem dizer. Contou coisas sem interesse. Via-se que tinha dificuldade em expor o problema que a tinha levado a pagar a consulta.

Aguardei.

Depois de vários rodeios, endireitou-se na cadeira e declarou:

- Senhor doutor! Antes de mais, quero que saiba que não pretendo nada de si!

Julguei que a doente me ia contar um segredo. Seria importante para ela mas, ao longo dos anos, os médicos escutam confidências demais. Se puderem, até lhes fogem.

Olhei o relógio. Estava a atrasar-me. Procurei evitar uma expressão de desinteresse.

- Senhor doutor! Eu quero apenas saber se me pode receitar um vibrador pela A.D.S. E.

Disse-lhe que não.

Ignoro se foi a minha postura ou a indisponibilidade da protecção social aos funcionários da Administração Pública que a desapontou. O certo é que não voltou ao consultório.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA


Aconteceu no meu consultório de Setúbal.
O homem, determinado, entrou à frente.
Parecia trazer demasiada pressa.
A mulher, claramente dominada,
seguia-o três passos atrás.
Não vinha pela arreata, mas parecia.
Ele sentou-se primeiro.
Andaria chegado
aos setenta anos, mas esforçava-se por manter o corpo bem direito.
A expressão do rosto era de desalento.
Ela seria quinze anos mais nova.
Tinha um ar fresco
apesar do cabelo branco, farto e bonito.
Devia ser pessoa de bom feitio, pois libertou facilmente
um sorriso cândido quando a cumprimentei.
Foi o homem quem falou.
Era um comerciante relativamente abastado e enviuvara meia dúzia de anos antes, numa altura em que as duas filhas, já casadas, se gastavam com os empregos e com as crianças. Não se davam mal, mas restava-lhes pouco tempo para darem atenção ao pai.
Nunca fora homem de aventuras. Antes de dar um passo, olhava bem o sítio onde assentar o pé.
Deitara os olhos pela terra e escolhera uma senhora modesta, viúva também mas sem filhos, tida como séria e asseada. Era bastante mais nova e toda a gente sabe que as mulheres duram mais do que os homens. Propôs-lhe casamento. Em troca do bem-estar e da segurança económica, pretendia companhia e protecção na velhice.
As coisas correram mal. Dois anos depois de casada, a mulher começou a ficar esquecida. Trocava os nomes às pessoas e abandonava facilmente a carteira na mercearia ou no talho.
Foi piorando. Passou a esquecer as panelas ao lume e a deixar esturrar a comida. Algum tempo depois, perdeu o sentido de orientação. Saía de casa e já não era capaz de regressar sem auxílio. Foi apagando da memória, do novo para o velho, tudo o que lá tinha estado registado. Acabou por esquecer que tinha casado outra vez e recusava ao marido a entrada no leito.
Ainda por cima, desleixara o vestir e, de vez em quando, urinava na cama.
O homem põe e os deuses dispõem. O senhor tinha programado o melhor possível os últimos anos de vida.
Via-se obrigado a tomar cada vez mais conta da mulher que recrutara para lhe suavizar a velhice.
O médico de família tinha-lhe falado na doença de Alzheimer.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

GARCIA DE ORTA


Garcia de Orta viveu, segundo consta, entre 1501 e 1568. Os pais eram cristãos-novos. Há quem afirme que nasceu em Elvas e quem garanta que é natural de Castelo de Vide.
Orta estudou em Salamanca e Alcalá, provavelmente de 1510 a 1515. Regressou a Portugal e, em 1526, obteve a carta que lhe permitia exercer Medicina. Dedicou-se, por algum tempo, à clínica em Castelo de Vide. Depois de várias tentativas falhadas, foi aceite pela Universidade de Lisboa, em 1531, como regente interino da cadeira de Filosofia Moral.
Em 1534, provavelmente para escapar às atenções da santa Inquisição, embarcou para a Índia, com o posto de físico do Capitão-mor do Mar da Índia, Martim Afonso de Sousa. Não regressaria a Portugal.
Durante quatro anos acompanhou o seu protector Martim de Sousa em guerras e viagens marítimas e terrestres. Fixou residência em Goa a partir de 1538. Foi médico do Hospital de el-rei e físico de alguns vice-reis e governadores-gerais, e até de potentados indianos. Para além de clínico, terá sido comerciante e mesmo proprietário de um navio mercante.
Católico em público, parece ter continuado a seguir em privado a lei de Moisés. Pouco depois da sua morte, vários familiares seus foram encerrados nas masmorras do Santo Ofício. A sua irmã Catarina terá sido queimada viva, em Goa, por ser “judia impenitente”. Em Dezembro de 1580, as ossadas do grande médico foram desenterradas e queimadas, como era costume fazer aos judaizantes que tinham conseguido enganar em vida a Inquisição.
Quando publicou os Colóquios, Garcia era homem de mais de sessenta anos. Viveu, pelo menos, até 1568.
O livro “Colóquios dos Simples e Drogas e Coisas Medicinais da Índia”, impresso em Goa em Abril de 1563, representou provavelmente o primeiro contributo determinante de um português para a Medicina europeia. A edição original da obra teve circulação limitada. O reconhecimento mundial de Garcia de Orta ficaria a dever-se às traduções latinas e francesas e, em especial, à divulgação que dela fez o grande botânico Charles de L`Escluse.
“Colóquios” será um dos livros mais interessantes publicados pelos portugueses da Índia durante os séculos XVI e XVII. São descritas pormenorizadamente muitas plantas indianas, uma desconhecidas e outras mal conhecidas na Europa, e são referidas as suas aplicações terapêuticas. A obra inclui ainda o que parece ser a primeira descrição da cólera na História da Medicina.
Sobre o valor dos Colóquios escreveria três séculos mais tarde o professor alemão F. A. Fluckiger: “Ninguém descreveu ainda as drogas indianas com mais cuidado, nem reuniu sobre elas informações mais aproveitáveis do que fez Garcia... Os Colóquios ocuparão um lugar de honra na história da farmacognose”.
Garcia de Orta foi um homem que se adiantou à sua época. Tinha a preocupação da objectividade e descrevia o que observava. A sua divisa era “eu vi”.
Na Índia teve possibilidade de exprimir com alguma liberdade o seu pensamento, o que não aconteceria na Europa, onde era quase impossível, à data, contestar as ideias de Hipócrates, Avicena e Galeno.
“Não me ponhais medo com elles, eu vi.”
Curiosamente, é publicada nos Colóquios a primeira poesia impressa de Camões. Trata-se de uma ode dedicada ao vice-rei conde de Redondo, em que o poeta descreve Garcia de Orta.

E vêde carreguado
De annos, letras e longa experiencia
Um velho que insinado
Das Gangeticas Musas na sciência
Podaliria subtil, e arte siluestre,
Vence o velho Chiron de Achilles mestre.



Referências:
Dicionário de História de Portugal (direcção de Joel Serrão), Livraria Figueirinhas, Porto, 1985.
História da Medicina em Portugal, Maximiano Lemos, Publicações Dom Quixote/ Ordem dos Médicos, Lisboa, 1991.
Os descobrimentos portugueses. Luís de Albuquerque, Publicações Alfa, Lisboa, 1885.
Fotografias:
História das Inquisições, Francisco Bethencourt, Círculo de Leitores, Lisboa, 1994.
Os descobrimentos portugueses. Luís de Albuquerque, Publicações Alfa, Lisboa, 1885.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA

O primeiro governo de Cavaco Silva tinha tomado posse há dois dias.
A equipa de Neurocirurgia de serviço ao “Banco “ do Hospital de S. José era constituída por mim e pelo meu amigo Ribeiro da Costa. Cerca da meia-noite, acabámos de observar os traumatizados que estavam na sala de observações. Na verdade, os doentes não cabiam nas pequenas salas e a nossa S.O. era o corredor.
Como tudo parecia calmo, subimos ao Serviço 10 e fomos dormir.
Por volta das duas da manhã, fomos acordados por uma empregada auxiliar com muitos anos de casa.
– Senhores doutores! Levantem-se! Está ali a ministra!
Eu e o Ribeiro da Costa tínhamo-nos na conta de pessoas sensatas. Sabíamos bem que os ministros não andavam pelos hospitais de madrugada, a menos que estivessem doentes. Tratava-se obviamente de uma brincadeira. Ignorámos o aviso e voltámos a adormecer.
Tivemos pouca sorte. Pouco depois, irrompeu pelo quarto, esbaforido, o Arlindo, internista que chefiava a equipe de Urgência:
– Trabulo! Ribeiro da Costa! Saltem depressa da cama! A Leonor Beleza está há meia hora à vossa espera.
Lá fomos. Não me lembro da explicação que demos para o atraso, nem estou certo de que tenhamos dado alguma. Acompanhámos a senhora numa visita guiada ao Serviço. Deve dizer-se que ela era linda. Trazia um belo casaco comprido que lhe realçava a figura elegante.
Tratava-se, segundo julgámos, de uma nova forma de fazer política, prolongando a campanha eleitoral para além da tomada de posse. Ficámos convencidos de que, até se esquecer do caso, a ministra terá pensado que nos tínhamos escapado do Serviço, gastando aquele tempo todo a vir de casa para o hospital.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA

Lembro-me de ter ouvido alguém perguntar por que razão as rádios, as televisões e os jornais divulgavam apenas notícias más. A resposta é simples: as pessoas interessam-se mais pelo que choca e angustia. Relatos das vidas que vão correndo bem não interessam aos jornalistas. A felicidade é valorizada apenas quando se perde.
Em tempos, juntavam-se pequenas multidões à entrada do “Banco” do Hospital de S. José. Entretinham-se a ver chegar as ambulâncias que iam descarregando dores, preocupações ou desgraças.
Quem trabalhou numa grande Urgência hospitalar foi obrigado a assistir a muitas tragédias e a testemunhar comportamentos humanos extremos.
Há cerca de um quarto de século, eu estava ocupado a observar os traumatizados de crânio menos graves, instalados precariamente em macas dispostas lado a lado ao longo da parede do corredor. Ao começo da manhã, contavam-se frequentemente duas e três dezenas. Era preciso desviá-las para ganhar acesso à cabeceira dos doentes.
De súbito, abriram-se estrondosamente as portas que davam para o “balcão” e irrompeu pelo corredor da Urgência uma maca empurrada por dois jovens bombeiros enervadíssimos. A corrida terminou junto à parede do fundo, por não haver mais para onde ir.
Médicos e enfermeiros aproximaram-se rapidamente para cuidar do presumível doente. O que viram impressionou até os mais experimentados. A maca continha os despojos de um homem de meia idade trucidado por um comboio. Os pedaços vinham todos, mas ninguém perdera tempo a reconstruir aquele “puzzle” macabro. Um pé e um membro superior, decepados, tinham sido colocados junto ao tronco. A cabeça fora arrumada entre os joelhos, para não cair.
Quando viram as batas brancas, os jovens bombeiros caíram neles. Acho que nem proferiram palavra. Tão pouco foi preciso dar-lhes indicações. Encetaram uma retirada humilde e lenta, para fazerem certificar o óbito no “balcão”. O cadáver pôde então seguir para a Medicina Legal.
A equipa de serviço contava com excelentes profissionais, mas nenhum estava habilitado a fazer milagres.