Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

terça-feira, 28 de junho de 2011

O CÃO KOZO

Queria, há muito, ter um cão com duas cabeças. Consegui finalmente adquirir um no Bairro Benfica, em Luanda, no mercado de artesanato, num canto alegadamente voltado para objectos antigos.
Devo explicar a origem desta atracção. Vi, pela primeira vez, fotografias de exemplares de estatuetas do cão Kozo no catálogo duma exposição apresentada no Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa, por altura da Expo 98.


O cão Kozo é um espírito. Ajuda o Nkisi Nkondi, poderoso caçador de feiticeiros, a farejar as presas, a meio da noite.


 É, por vezes, representado com duas cabeças viradas em direcções opostas, a fim de lhe aumentar a capacidade. São-lhe atribuídos quatro olhos, dois para o mundo de cá, visível, e outros dois para o invisível.
O meu Mabiala é uma figura zoomórfica, bicéfala. Estará associado ao Mabyaala antropomórfico, que parece contituir uma variante dos Minkisi. Será o Kozo, noutra região.


Tem pintadas de braco as metades esquerdas das cabeças e de vermelho as direitas. A cor branca será protectora.


A estatueta apresenta no dorso uma caixa-relicário fechada com pedaços de espelho. Deverá conter bilongos(remédios). Os inúmeros pregos que tem espetados pretendem indicar uma utilização ritual frequente. Não passará de uma cópia.


Fontes:
Fotos 1 e 2: Escultura Angolana, Memorial de Culturas (catálogo da exposição apresentada em 1994 no Museu Nacional de Etnologia).
Fotos 3 e 4: colecção do autor.

sábado, 25 de junho de 2011

OS MINKISI DO CONGO

Na tradição cultural africana, os espíritos assemelham-se aos seres viventes. Uns são bondosos e outros egoístas e mal-humorados. Podem ceder alguns poderes aos vivos. São capazes de ajudar a resolver problemas, com a doença ou o mal causado pela inveja, mas são também vistos como causadores de infortúnio.
Na forma de pensar dos povos Bakongo, que habitam a vizinhança do rio Zaire, um Nkisi representa, no mundo visível, um espírito do reino dos mortos que aceitou, ou foi levado a aceitar, vir para este lado.  Os humanos conseguem algum controle sobre ele, através de rituais. O sacerdote que dirige a cerimónia ritual é o nganga do Nkisi.
A correspondência ao onganga do sul de Angola, parece imediata. Segundo o padre Carlos Estermann, onganga é o detentor de ouanga, um poder mágico nocivo utilizado para causar doença e morte entre os homens e por vezes entre os bois. Com pequenas variantes, o termo é comum em diversas línguas de Angola.
O Nkisi é o suporte físico da força e do poder espiritual. Pode ter a forma de estatueta. Os Minkisi (plural de Nkisi) têm relicários com espelhos e receptáculos variados, habitualmente pequenos sacos presos ao corpo, contendo medicamentos, geralmente de origem vegetal, chamados bilongos ou milongos.
Segundo os Nkongo, se um Nkisi perde os remédios, ou se o padrinho nganga morre, fica esvaziado do seu poder espiritual e volta a ser um objecto mais ou menos decorativo. Sorte para mim e para os meus bonecos... 
O Nkisi Nkondi, estatueta ritual figurada de pé, ergue de forma ameaçadora um dos braços, por vezes armado de uma faca ou de uma lança. É considerados guardiões dos bons costumes.
Nkondi significa caçador. Durante a noite, vai à caça de feiticeiros e de ladrões. Persegue também adúlteros e outros infractores das regras sociais.
Não me encontro em condições de garantir a proveniência nem a autenticidade das minhas estatuetas. Julgo tratar-se de imitações.
A boneca barbada cravejada de placas de ferro e de parafusos mede 60 cm de altura e mostra uma expressão triste no rosto. Os dentes incisivos superiores estão limados em V, o que poderá eventualmente facilitar a identificação do seu local de origem.

O meu Nkisi deveria, em tempos, segurar uma azagaia. Vai perdendo a cabeleira de pelo de macaco e tem o joelho esquerdo adiantado, facto comum na estatuária europeia, mas alheio à tradição cultural africana. É seguramente uma obra recente, com influência dos colonizadores. Está carregado de saquinhos contento os bilongos habituais e apresenta na barriga o conveniente relicário tapado com um espelho.


Fontes: Carlos Estermann  - Etnografia de Angola. Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, 1983.
            Wyatt Macgaffey - Os Kongo. Em: Na Presença dos Espíritos. 
            Arte Africana do Museu Nacional de Etnologia. New York e Lisboa, 2.000.
Fotografias: 1 - Na Presença dos Espíritos.
                  2,3 e 4 - Colecção do autor.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

MEDICINA E MAGIA EM ÁFRICA

Medicina e magia foram irmãs nos primórdios das civilizações. Em África, a criação artística continua, em parte, ligada ao mundo dos espíritos. A associação de ideias pode não ser linear mas foi suficientemente forte para me decidir publicar, neste blogue, alguns artigos despretenciosos sobre arte africana. Trata-se, obviamente, de partilhar imagens de alguns objectos que me agradam.
Devo confessar que não sou crente. Gosto de me considerar herdeiro longínquo do racionalismo de René Descartes e do positivismo de Augusto Comte. Talvez por isso, o irracional, que constitui boa parte de cada alma, me tenha desde sempre fascinado.


Cresci em África, mas parti com dezassete anos para Coimbra. O pouco que sei da arte e da cultura africanas aprendi-o em livros. Isso não obsta a que tenha a casa cheia de máscaras e de estatuetas sem valor.
Onde reside a diferença entre um objecto de magia e um produto de artesanato? Certamente no uso que lhe foi, ou é, dado. Um antiquário da Rua de S. José em Lisboa contou-me que um dos seus fornecedores afiançava que as máscaras que propunha vender tinham sido "dançadas". Pretendia, assim, vendê-las mais caro, com a autenticidade proveniente da sua utilização ritual.
Como coleccionador, habituei-me a supor que as minhas peças são, em geral, imitações. Adquiri-as, quase todas, em Portugal. A origem de algumas é fácil de localizar em publicações ilustradas. Outras aguardam novas informações que permitam descortinar as suas origens.
Nas mensagens que se vão seguir saltará à vista a fragilidade da minha formação antropológica. Peço tolerância. Sou curioso e não estudante da matéria.

Imagem: Esta é a estatueta que deu origem à minha colecção. Trouxe-a do Lubango em 1964. Quando eram pequeninas, as minhas filhas chamavam-lhe "Senhora Laura".