Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011





NEURORRADIOLOGIA HÁ MEIO SÉCULO
    NO HOSPITAL DOS CAPUCHOS, EM LISBOA


    Em 1957, terminadas as obras no Hospital de Santo António dos Capuchos,  o Serviço de Neurocirurgia regressou do Hospital de Santa Marta,  onde funcionara durante cerca de ano e meio. A Neurorradiologia dispunha agora de instalações próprias, com seriógrafo e duas mesas basculantes e desenvolveu uma actividade intensa com aceitável qualidade técnica.



   Na angiografia, os vasos são injectados com um produto de contraste positivo. Nesta imagem anteroposterior, arterial tardia, a artéria cerebral anterior, que se devia encontrar na linha média está desviada vários centímetros para o lado esquerdo, enquanto o grupo sílvico é empurrado para o lado oposto por uma massa que condiciona importante herniação cerebral sob a foice. Na linha média, alimentado por um ramo da cerebral anterior, parece encontrar-se um nicho de neovascularização. Seria precisas imagens noutros tempos angiográficos e também em perfil para fazer um diagnóstico preciso do que parece ser um grande tumor frontal.





Na ventriculografia gasosa, o ar serve de contraste negativo e permite visualizar os ventrículos. Os desvios da morfologia ventricular normal indicam a presença de massas intracranianas.


O doente sabe que está a ser fotografado e esforça-se por se mostrar valente, esboçando mesmo um sorriso. O médico puncionou directamente a carótida no pescoço, enquanto o ajudante se prepara para injectar o produto de contraste. 

Nota: Este artigo está preparado há uma semana. Fui ontem informado que o Serviço 12 do Hospital dos Capuchos, o primeiro Serviço autónomo de Neurocirurgia da Península Ibérica, encerra hoje definitivamente as suas portas. Convidaram-me por telefone para um jantar que vai reunir alguns dos seus antigos e novos colaboradores. Não vou. Sinto-me sem disposição para assistir a funerais.

domingo, 25 de setembro de 2011


      ANTÓNIO VASCONCELOS MARQUES

            E ÁLVARO PAIS DE ATHAYDE

             UMA SIMBIOSE NEUROCIRÚRGIA


Conheci os doutores Vasconcelos Marques e Álvaro Ataíde em 1973, quando entrei para o Internato da Especialidade de Neurocirurgia, nos Hospitais Civis de Lisboa. Gostaram de mim, e eu deles. Depois de os ter ajudado algumas vezes no Serviço 10 do Hospital de S. José, convidaram-me para colaborar numas tantas intervenções particulares no Hospital da Cruz Vermelha.
O dinheiro extra dava-me bom jeito, pois tinha já duas filhas. A colaboração foi interrompida por um protesto. O interno que pertencia oficialmente à equipa deles sentiu-se discriminado. Teria razão.
António Vasconcelos Marques licenciou-se em Medicina, em Lisboa, em 1933 (juntamente com Álvaro Ataíde). Iniciou a sua atividade hospitalar sob a orientação de Pulido Valente e seguiu uma carreira hospitalar brilhante. Em 1936 concorreu aos Hospitais Civis de Lisboa e em 1940 terminou o internato de Cirurgia Geral. Foi chamado por Diogo Furtado, fundador do Serviço de Neurologia do Hospital dos Capuchos, para lançar as bases de uma valência neurocirúrgica. Em 1943, estagiou, durante cerca de um ano, no “John Hopkins Hospital”, sob a supervisão de Walter Dandy. De regresso, muitas vezes em conflito com Diogo Furtado, bateu-se pela autonomização da Neurocirurgia. Em 1954 prestou provas públicas e tornou-se o primeiro neurocirurgião das Carreiras Hospitalares da Península Ibérica. 
Vasconcelos Marques foi o impulsionador da criação do Serviço de Neurocirurgia do Hospital dos Capuchos e do Pavilhão de Traumatizados Cranianos do Hospital de S. José. Conheceu apreciável reconhecimento internacional. Era senhor de uma personalidade forte e, ao longo da vida, foi fazendo amigos e inimigos. Poucos que o conheceram lhe terão ficado indiferentes.
Recordo o doutor Ataíde como um cirurgião de mão cheia e um homem culto e gentil. Formava com António Marques uma dupla estranha e aparentemente incompatível que, no entanto, funcionava. Tinham sido colegas no Curso de Medicina. Diz-se que, na juventude, varriam bares a murro, prontificando-se, no final das cenas de pancadaria a pagar os estragos produzidos.
Álvaro Ataíde vinha de uma família fidalga dos Açores. Vasconcelos Marques era sobrinho-neto de Brito Camacho, uma das figuras gradas da I República.
Era o doutor Ataíde quem começava as operações. Terá sido assim na cirurgia do hematoma subdural de Oliveira Salazar. O doutor Marques era um homem ocupado com a direção do Serviço. Aparecia na fase “nobre” das intervenções. Coloquei as aspas porque, para mim, todas as fases cirúrgicas têm a mesma nobreza. Discutiam que se fartavam. Depois, o doutor António Marques lá punha o clip no aneurisma, se era caso disso, e deixava-nos a terminar o trabalho.
Tratando-se de duas pessoas inteligentes e com destreza manual acima da média, diferenciavam claramente as funções de cada um. Marques era o organizador e o homem que assumia publicamente a responsabilidade da equipa. Ataíde contribuía com a sua excecional habilidade de mãos e o seu bom juízo cirúrgico. Por mais que ralhassem um com o outro durante a cirurgia, quando tiravam as luvas e as batas relacionavam-se como se nada menos agradável se tivesse passado.
O doutor Álvaro Ataíde, um dos cirurgiões mais hábeis com quem trabalhei, seguiu um percurso profissional pouco comum. Fez Clínica Geral nos Açores, interessou-se pela Radiologia, e acabou por se tornar um dos neurocirurgiões mais brilhantes do País. Introduziu em Portugal a Cirurgia Estereotáxica da doença de Parkinson. Realizaram-se no nosso Serviço cerca de 180 dessas operações, algumas delas com recurso a uma adaptação feita por Ataíde aos aparelhos clássicos.
Álvaro Ataíde era um homem humilde, de bom trato e sorriso fácil, disposto a tolerar os erros e as limitações dos jovens neurocirurgiões que ajudava a formar. Fiquei surpreendido ao saber, pouco antes da sua morte, que chegara a ser Grão-Mestre da Maçonaria. Lembro-me de o ter visto enxugar uma lágrima, ao visitar a sala onde fazíamos neurorradiologia no Serviço 10, após a sua aposentação.


A 6 de Setembro de 1968, Oliveira Salazar foi internado no Hospital de S. José. O diagnóstico foi discutido. Poderia tratar-se de acidente vascular cerebral ou de hematoma intracraniano. Não existia, ao tempo, TAC nem Ressonância Nuclear e a idade do doente contraindicava a realização de angiografia cerebral. Horas depois, foi transferido para o Hospital da Cruz Vermelha e operado. Semanas antes, a 3 de Agosto, sofrera uma pequena queda. Segundo Fernando Dacosta, que cita a governanta Maria de Jesus, Salazar, ao sentar-se, de jornal na mão, calculou mal a distância e tombou ao lado da cadeira de lona, num terraço do Forte de Santo António. Bateu com a cabeça nas lajes do chão. Alguns dias depois, ficou confuso mas apenas a 4 de Setembro admitiu estar realmente doente.
A operação decorreu na Cruz Vermelha, onde Vasconcelos Marques realizava as suas intervenções cirúrgicas particulares. O hospital estava bem apetrechado e dispunha de boas instalações hoteleiras. Maria Cristina da Câmara, a anestesista habitual da equipa, vigiou o doente durante a operação, executada sob anestesia local. O doente colaborou e a cirurgia foi simples e rápida. Encontrou-se e drenou-se um hematoma subdural crónico.
Salazar fez uma boa recuperação imediata. Aos 8 dias da intervenção, porém, sofreu um acidente vascular cerebral. Ainda melhorou, mas perdeu a memória recente e ficou com défices motores importantes.


Vasconcelos Marques bebia com moderação. Ainda assim, no final dos almoços, chegava a soltar a língua. Lembro-me de o ouvir repetir:
Se o Doutor Salazar tivesse feito o acidente vascular no lado a que foi operado, o neurocirurgião tinha sido crucificado. Mal por mal, foi do lado oposto…


Fontes: A Neurocirurgia em Portugal, Serafim Paranhos, S.P.N.,Porto, 2000.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011


        A CEGUEIRA DE CAMILO

     Camilo Castelo Branco sofreu de neuro-sífilis. Para além de problemas locomotores e de diplopia, desenvolveu  atrofia óptica  bilateral que o acabaria por levar à cegueira e ao suicídio. Foi observado por alguns dos melhores oftalmologistas do seu tempo, como Manuel Lopes Santiago, Augusto Sebastião Guerra, Pedro Adriano Van Der Laan, Gama Pinto e outros.
     Terá sido o próprio sofrimento que o inclinou a escrever sobre um cego (O cego de Landim, em Novelas do Minho) e sobre um oftalmologista (O olho de vidro, romance baseado na vida do médico setecentista Brás Luís de Lima, autor de Portugal Médico).
     Existem diversas obras sobre a cegueira de Camilo. Camilo e os médicos, de Maximiano Lemos, e A cegueira de Camilo, de Gomes Costa Filho, serão as mais conhecidas. No entanto, o próprio escritor foi registando por escrito a evolução da sua doença.



    O mal de olhos de Camilo Castelo Branco manifestou-se em 1865, ou mesmo antes. 
     Em 28 de Abril de 1866, Camilo confessou, em carta a José Barbosa e Silva:
        Foi muito grave o prognóstico da minha doença de olhos; mas hoje está averiguado que é efeito de venéreo inveterado. Sofro há 4 meses uma diplopia (visão dupla). É horrível para quem não tem outra distracção além da leitura. Tarde será o meu restabelecimento.

    Em 6 de Junho de 1878, escreveu ao visconde de Ouguela:
     Tenho de volta de mim catorze luzes para ver o que escrevo. Desde que o Sol se esconde estou cego. O pior é que escrevo com um dos olhos fechados para não ver tudo em duplicado.

      Apontou, a 7 de Fevereiro de 1886:
     Os jornais tratam da minha saúde fantasiosamente, como os médicos. A minha enfermidade, ataxia locomotora, não é das que retrocedem, nem sequer estacionam. Hoje ainda me sustento de pé, com dificuldade; amanhã não poderei falar das pernas senão como retórica e luxo de anatomia. A visão segue as perturbações medulares. Tenho cegueiras completas quando passo de um quarto luminoso para outro mal alumiado. O que eu vejo bem é a morte a aproximar-se, e saúdo-a risonhamente, porque a vida do meu filho Jorge também está por pouco.

     Voltou a queixar-se, a 22 de Novembro de 1886:
      Os incuráveis padecimentos que se vão ampliando todos os dias levam-me ao suicídio – único remédio que lhes posso dar. Rodeado de infelicidades de espécie moral, sendo a primeira a insânia de meu filho Jorge e a segunda os desatinos de meu filho Nuno, nada tenho a que me ampare nas consolações da família. A mãe destes dois desgraçados não promete longa vida; e, se eu pudesse arrastar a minha existência até ver Ana Plácido morta, infalivelmente me suicidaria.

     Escreveu, a 13 de Março de 1988:
   Aqui esteve quatro horas o Dr. Gama Pinto, uma cara inteligentíssima revelando um excelente coração. Conheceu rapidamente o meu deplorável estado, e fez-me um bom discurso para me dar paciência e resignação com a cegueira.
     Caíram todos os meus castelos no ar quando o médico, em vez de combater a minha cegueira, tratou de me armar de paciência para tolerá-la. Fez-se na minha alma uma noite escura, que nunca mais terá aurora.

     Lamentou-se, a 22 de Junho de 1888:
     Cada dia, pior. A agudeza da vista central, que ainda tinha em Lisboa, desapareceu. Suspendi tudo que era remédio. Endoideço, porque vou cegar inteiramente.

     A 27 de Novembro de 1888, começava a desesperar:
     Não dou um passo sem que me conduzam, não conheço ninguém, apenas distingo vultos ao aproximarem-se.

     Ainda escreveu, a 29 de Agosto de 1889:
     Atormentam-me os frenesins tabéticos que me não deixam sossegar de noite, e muito pouco de dia. Minha mulher acompanha-me neste calvário e verga ao peso da cruz enorme.

     A 21 de Maio de 1890, Camilo escreve ao oftalmologista Edmundo de Magalhães Machado, de Aveiro, rogando-lhe que o salve da cegueira. O médico desloca-se a Seide a 1 de Junho. Reconhecendo nada ser capaz de fazer pela visão do escritor, diz palavras de circunstância. Enquanto Ana Plácido acompanhava o médico à porta, Camilo suicidou-se, disparando um tiro de revólver na cabeça.


Referências: além do meu livro Eu, Camilo, este artigo apoiou-se em Camilo Castelo Branco – Memórias fotobiográficas, de Viale Moutinho, e no Dicionário de Camilo Castelo Branco, de Alexandre Cabral.

Etiquetas: Camilo Castelo Branco, História da Medicina.


terça-feira, 13 de setembro de 2011


       A DESTRUIÇÃO DO MEU ARQUIVO


No dia em que comecei a destruir o meu arquivo clínico só não chorei porque não sou dado ao choro.
De modo geral, sou impulsivo. Fora da área profissional, acusam-me de tomar decisões em cima do joelho. Quando se trata de questões que têm a ver com o meu futuro e o dos meus, é como se mudasse de feitio. Fico ansioso e torno-me hesitante. Ponderei demoradamente se deveria ou não abandonar o consultório de Setúbal para exercer os últimos anos de carreira no Hospital dos Capuchos em regime de dedicação exclusiva. A intenção era conseguir uma reforma melhor. 
Depois de escolher um rumo, sou teimoso e marro a direito.
Entre a minha candidatura ao novo regime e a sua aprovação decorreram poucas semanas. Lembro-me de ouvir a minha mulher comentar:
− Dizem-te que sim a tudo…
Era verdade. Sei de colegas que aguardaram anos pela resposta, que nem sempre foi positiva. Comentei, com algum orgulho:
− Conhecem-me. Sabem que vou trabalhar mais...
Não tinha onde colocar os armários metálicos em que guardava as fichas clínicas. Ocupavam uns bons metros quadrados de parede.
Era difícil contar as fichas que fui preenchendo ao longo de trinta anos de consulta. Umas eram gordas, com páginas dobradas, e outras elegantes. Fiz uma amostragem e extrapolei-a. Contadas duas gavetas, teria registos de 15.000 a 20.000 doentes.
A maioria deles não deixara marca na minha memória. Tratava-se de pessoas que tinham vindo pedir uma opinião e que não voltaram. Um ou outro paciente não teria gostado do médico. Muitos, contudo, tinham afundado raízes no meu coração. Alguns exigiram o melhor de mim: atenção, inteligência, capacidade de estudo e técnica cirúrgica apurada. Ofereci-lhes tudo o que fui capaz de dar. Nem sempre chegou. Umas vezes ganhei e, outras, perdi. Os homens orgulhosos fixam melhor as derrotas do que as vitórias.
As fichas eram muitas e difíceis de destruir. Provavelmente, no começo do século, os fragmentadores de papel teriam já custos acessíveis. Imaginei-os distantes, para utilização única. Fiz mal. Teria poupado tempo e maçada.
Doeram-me os pulsos de tanta ficha que rasguei em pedaços pequenos e quase deitei fogo à casa ao sobrecarregar a lareira com resmas de papel. Demorei muitos dias a completar a tarefa.
Mesmo sem querer, ia lendo um ou outro nome. Alguns não me diziam nada. Outros faziam parte das minhas preocupações. Houve doentes que julguei perder outra vez, ao destruir-lhes a memória escrita. Pensei que a melhor parte de mim ficava ali, junto às lembranças apagadas. Achei que estava a rasgar o meu passado e que nunca mais seria homem inteiro.
Imaginei-me numa ficha preenchida. Em cima, dizia: Dr. Trabulo. Estava quase cheia. O espaço em branco que ficava em baixo era estreito. Eu tinha percorrido a maior parte do caminho e era impossível lembrá-lo sem doentes.
Perdi registos e até apontamentos de frases de que poderia vir a fazer uso mais tarde, na escrita, mas a vida não parou. 
Hoje, o meu registo clínico pode abrigar-se todo numa “pen”. Cabem lá mais de seis metros quadrados de folhas de papel metidas em gavetas metálicas.

domingo, 4 de setembro de 2011

CURSOS EUROPEUS DE NEUROCIRURGIA

Nos primeiros anos da década de 70, um grupo de ilustres neurocirurgiões europeus agrupados na E.A.N.S. (Associação Europeia de Sociedades Neurocirúrgicas) animou um projecto de ensino pós-graduado que ajudaria a alargar as relações internacionais no âmbito da Especialidade. O primeiro Curso da E.A.N.S. efectuou-se em Bruxelas, em 1974.
A iniciativa não se limitava ao velho continente. Participaram, logo de início, neurocirurgiões em formação provenientes de alguns países do Magrebe e, pouco tempo depois, também de Israel. Recorde-se que, em 1974, a União Europeia se chamava Comunidade Económica Europeia e contava apenas com nove países membros. Destes, o Reino Unido, a Irlanda e a Dinamarca tinham aderido no ano anterior. Pretendia-se, a nível científico, preceder o alargamento político no espaço europeu. A Neurocirurgia deu o contributo que estava ao seu alcance e impulsionou a modernização da Especialidade em diversos países periféricos, como o nosso. Ainda no tempo da chamada “cortina de ferro”, em 1976, foi possível realizar o terceiro curso na cidade universitária húngara de Pecs. 
O francês Bernard Pertuiset, o inglês R. T. Johnson, o alemão Hans Pia e o belga Jean Brihaye constituíram o núcleo duro que impulsionou a iniciativa. 
O projecto foi pensado de forma realista. Assentou em cursos intensivos anuais com uma semana de duração. Para reduzir os custos, utilizaram-se as instalações universitárias onde os docentes trabalhavam. Os internos eram geralmente alojados em residências de estudantes, por altura das férias. O preço das inscrições era acessível.

Manchester, 1978. Reconhecem-se, na primeira fila, Brihaye, Johnson, Pertuiset, Pia e Isamat.

Com alguma heterogeneidade e um ou outro caso de flagrante improviso, as aulas eram bem preparadas. Contaram com a participação interessada e gratuita de muitos dos melhores neurocirurgiões europeus. Alguns deles aliavam ao saber excelente capacidade de comunicação. Os cursos perduram até hoje.
O meu primeiro Director de Serviço, António Vasconcelos Marques, conhecido por ter operado Oliveira Salazar, ficou para a História devido à criação, em Lisboa, de uma unidade pioneira de tratamento de traumatizados crânio-encefálicos. Dava-se melhor com a “alta roda” da Neurocirurgia mundial do que com alguns Colegas portugueses e foi orador em vários dos primeiros cursos.
Vasconcelos Marques, senhor de uma personalidade vincada, viveu a vida de uma forma muito pessoal. Começava a trabalhar depois do almoço e arrastava a sua actividade pela noite dentro. De manhã, que era quando, naquele tempo, os médicos portugueses se ocupavam nos hospitais públicos, dormia. Teve muitos amigos e inimigos. Pessoalmente, recordo-o com saudade.
Por influência dele, foram internos e jovens especialistas do Serviço de Neurocirurgia dos Hospitais Civis de Lisboa que constituíram o primeiro grupo português a frequentar os cursos europeus da Especialidade.

                                           Bruxelas, 1974

As aulas começavam de manhã cedo, geralmente às 8.00 horas. Vasconcelos Marques era pontualíssimo. Dormia olimpicamente na primeira fila da assistência. Quando o orador se calava, abria os olhos e fazia uma pergunta pertinente. Vemo-lo nesta fotografia ao lado de Johnson e do nosso grupo inicial: eu, o Magro Jacinto, o Carlos Maurício e o Costa Oliveira, que já nos deixou. Falta aqui o Oliveira Antunes. Estará sentado lá para trás.
Anos mais tarde, quando o Maurício foi Presidente da Sociedade Portuguesa de Neurocirurgia e me nomeou Coordenador da Comissão de Ensino, reunimos um grupo valioso de colaboradores e demos início aos cursos anuais da Sociedade Portuguesa de Neurocirurgia. Seguiram inicialmente o modelo europeu e atingiram um nível científico interessante. Começaram em 1996 e ainda continuam. Colaborei na organização dos quatro primeiros. O próximo (XV) realiza-se em Outubro, em Montargil.