Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011


            RECORDANDO AMÍLCAR CASTANHINHA

Conheci o doutor Castanhinha no Hospital dos Capuchos e trabalhei com ele durante anos em S. José. Homem inteligente, culto, dotado de fino sentido de humor e de conversa agradável, tinha uma sólida formação neurológica mas não era propriamente um aficionado do trabalho clínico. Quando tínhamos muito que fazer, chegávamos a recear encontrá-lo nos corredores do Hospital. Sendo ele mais velho, não nos ficava bem interromper a conversa e abalar.
Militara ativamente na oposição ao salazarismo e, a dada altura, refugiara-se em Argel, onde foi representante oficial do general Humberto Delgado até ao seu assassinato em 1965. Ocorriam dissidências entre os oposicionistas portugueses no exílio e Castanhinha foi preso, juntamente com um grupo de portugueses, pela polícia argelina. Foi libertado por ordem de Ben Bella, após intercedência de Josie Fanon, esposa do mítico pensador e psiquiatra Frantz Fanon. Não conheço as circunstâncias do seu regresso. Poderá ter feito com o Regime um acordo do género “tu não nos incomodas e nós deixamos-te em paz”, já que pôde voltar ao País e à carreira hospitalar.
Não tenho conhecimento de qualquer atividade política que tenha posteriormente exercido fora do âmbito profissional. Durante anos, foi dos pensadores mais notados a registar as suas reflexões no Boletim da Ordem dos Médicos. Quando a fação a que se aliara foi vencida, reagiu com amargura e com humor, ao seu estilo pessoal: “Aquilo não é uma Ordem! É um Bando!”
Numa tarde do tempo antigo, cruzei-me com ele num corredor do Hospital de S. José. Estava bem-disposto e provocou-me:
−Trabulo! Eu, às vezes, leio a Bíblia. Sabe que o profeta não sei quê (disse-me o nome, mas não o fixei) se zangou quando um jovem lhe chamou careca. Amaldiçoou−o e o rapaz morreu.
Respondi:
− O profeta era ruim…
Sorriu com os olhos e afastou-se.
Encontrei-o pela última vez na sede da Ordem dos Médicos. Terá sido por altura de eleições. Eu cumpria algumas horas de serviço em volta das urnas por conta do Colégio de Neurocirurgia. Por alguma razão que não recordo – eventualmente por ter sido sugerida a possibilidade de vitória de um candidato a bastonário que não nos agradava, bati com os nós dos dedos no tampo de uma mesa. Amílcar Castanhinha questionou-me:
− Sabe donde vem esse seu gesto?
− Não faço ideia. Não sou supersticioso…
− Eu conto-lhe. Nas cruzadas, os cavaleiros cristãos usavam armaduras pesadas que lhes protegiam quase todo o corpo. No entanto, antes dos combates, levantavam o braço para fazer o sinal da cruz e expunham as axilas. Uns tantos foram atingidos pelas flechas muçulmanas. O papa (disse-me o nome, mas esqueci-o) fez sair uma bula que substituía o sinal da cruz por três pancadas na sela do cavalo. As selas, ao tempo, eram de madeira.
A história tanto podia ter sido recolhida como inventada. É bonita à mesma e conto-a muitas vezes.
Nesse dia, o doutor Castanhinha estava feliz por ter finalmente podido dispensar a algália, meses após a cirurgia da próstata. Comentava:
− Sabe, Trabulo? O meu PSA nem era elevado…
Faleceu poucos meses depois. O coração atraiçoou-o. Acho que, tal como eu, fazia coleção de máscaras. Ficou um colecionador a menos. Deixou-nos também um homem bom.


6 comentários:

  1. Boa noite, gostei da sua crónica em memória do meu Avô.
    Cumprimentos, Ricardo Castanhinha

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  2. Obrigado pelo pequeno resumo de vida em memória da pessoa mais culta que conheci em toda a minha vida, saudades do meu Avô ... e da minha Avó idem ...

    Cumprimentos

    António Castanhinha
    (Neto)

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  3. Passados já tantos anos e como ainda me lembro tantas vezes dele. Recordo a palestra de despedida que ele deu no hospital de S.José quando saiu e era realmente impressionante a forma como se comunicava, a sua inteligencia e espirito critico. Que sorte tive em ser neto do Dr.Castanhinha...
    Nuno

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