Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

EPILEPSIA  O MAL SAGRADO

Ninguém esquece facilmente a primeira crise de «grande mal» epilético que presenciou. Não fujo à regra. Aconteceu em Angola. Ia no começo da adolescência e encontrava-me no quintal da casa de um amigo cujo pai era militar. Um soldado negro, «impedido» ao serviço da família, foi bruscamente derrubado por uma força que parecia vir dos céus. O jovem desabou pesadamente no chão de cimento. Depois estrebuchou, sem saber do mundo nem dos outros, como se algum espírito agitado tivesse tomado conta dele. Os gestos tinham força e violência mas nenhuma intenção. Quando as convulsões terminaram, imobilizou-se e parecia morto
A epilepsia afeta espécies de mamíferos filogeneticamente mais antigos que o Homo sapiens sendo, provavelmente, anterior à Humanidade.


É conhecida desde tempos recuados. Em 1700 A.C. o papiro de Smith, proveniente do Egito, relatava uma convulsão num homem que tinha sofrido um traumatismo craniano. A descrição de uma crise tónico-clónica foi fixada na Mesopotâmia, em carateres cuneiformes, há cerca de três mil anos: uma pessoa cujo pescoço se volta para a esquerda, cujas mãos e pés se tornam tensos, os olhos muito abertos, espuma a escorrer da boca e perda da consciência. O mal foi atribuído à mão de um deus. Crises epiléticas foram também descritas noutras civilizações antigas como a China e a Índia.


A palavra epilepsia veio da Grécia. Os gregos acreditavam que uma pessoa com convulsões tinha sido tocada por um deus. O termo original significava abater de surpresa, fulminar. Em inglês, a palavra seizure, que significa ataque ou acesso, vem de «to seize», o verbo que designa agarrar ou pegar. É sinónimo de «take possession of». A epilepsia era considerada o estado de possessão do corpo humano por um espírito alheio. O significado da posse variou com o decorrer do tempo e de acordo com as culturas dos povos que a encaravam. Tratava-se, para uns, de um espírito mau (tradição judaico-cristã) e, para outros, de um antepassado insatisfeito a reclamar atenção e respeito (mitologia de certas tribos africanas).
Ao longo dos tempos, a epilepsia foi associada a maldições e a crenças mágicas. Os nomes que lhe deram foram muitos: doença das quedas, demónio das quedas, mal de S. Paulo, mal de Hércules, morbus sacer (mal sagrado), mal lunático e mal comicial. Esta última designação vem de comicium, a assembleia pública romana, que era dissolvida quando algum dos seus membros caía vítima de uma crise. Júlio César foi um dos epiléticos mais famosos de todos os tempos. Alguns autores atribuem a sua doença à cisticercose cerebral que teria contraído durante as campanhas no Egito.     

   
A literatura antiga reflete os conceitos correntes em cada época. Os textos sagrados não poderiam escapar a esta regra.


Lembremos uma passagem do Evangelho segundo S. Marcos:
  – Mestre, trouxe-te o meu filho, possesso de um espírito mudo;
E este, onde quer que o apanhe, lança-o por terra e ele espuma, rilha os dentes e vai definhando. Roguei a teus discípulos que o expelissem, e eles não puderam.
E trouxeram-lho; quando ele viu a Jesus, o espírito imediatamente o agitou com violência, e, caindo ele por terra, revolvia-se espumando.
Perguntou Jesus ao pai do menino:
– Há quanto tempo isto lhe sucede?
– Desde a infância, respondeu;
E muitas vezes o tem lançado no fogo e na água, para o matar; mas, se tu podes alguma coisa, tem compaixão de nó, e ajuda-nos.
Vendo Jesus que a multidão concorria, repreendeu o espírito imundo, dizendo-lhe:
 – Espírito mudo e surdo, eu te ordeno: sai deste jovem e nunca mais tornes a ele.
E ele, clamando, agitando-se muito, saiu, deixando-o como se estivesse morto, ao ponto de muitos dizerem:
– Morreu.
Mas Jesus, tomando-o pela mão, o ergueu, e ele se levantou.

Foi Hipócrates quem primeiro afirmou que a epilepsia não era sagrada nem divina, mas provocada por um distúrbio do cérebro. O mestre grego foi pouco ouvido. O mal andou envolto em mistério durante muitos séculos.



Os conhecimentos fisiopatológicos capazes de explicar a epilepsia foram nascendo no século XIX com os trabalhos de vários autores. Entre eles será justo destacar Hughlings Jackson, que estabeleceu o conceito de descarga neuronal excessiva para a origem das crises.



 Em 1929, Berger conseguiu registar a atividade elétrica do cérebro humano mediante a aplicação de elétrodos no couro cabeludo e abriu caminho à Eletroencefalografia. Gibbs, Lennox, Penfield e Jaspers contribuíram para a compreensão progressiva dos fenómenos epiléticos.
Sabe-se, desde a antiguidade, que a afeção pode ser hereditária. Houve períodos, na Escócia, em que as grávidas epiléticas eram sacrificadas. Na Alemanha, em época relativamente recente, os epiléticos eram esterilizados. No Estado de Conectticut, nos EUA, o casamento era proibido aos epiléticos e quem assistia à boda era multado.


O diabo criado dentro de nós não se extinguiu de todo. Os epiléticos continuam a carregar alguns estigmas, mesmo nas sociedades modernas.


Imagens: Internet