Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015


 

   Este livro consta de uma história grande, feita há muito, e de quarenta contos curtos escritos ao longo do último ano. 
   Deixo aqui um que fala da morte, de um modo peculiar. É também o mais pequeno de todos.



A PASSAGEM

 Foi tão simples como desaprender de voar.
 Não tive dor. A dor foi antes. Fiquei vazio e sereno.
 Aqui estou, não sei há quanto tempo. Descobri que, deste lado, o tempo não existe. Pelo menos, não se conta.
Até agora, não avistei anjos nem demónios. Ninguém manifestou interesse em me julgar. Acho, até, que não se importam comigo.
Tenho disponibilidade para tudo e até me deu para filosofar. Sei que o “eu” fratura. Depois de pensar bastante, deixei de tentar dividir o que é indivisível e aceitei a pertença ao Ser universal. A conclusão tranquilizou-me. O destino parece-me razoável.
Quererão saber da passagem. Vou contar-vos. Não sei se me faço ouvir daqui. Estou imóvel, desde que cheguei. Tenho alguns palmos de terra em cima.
É como adormecer, mas sem ter sonhos. Dá-se num instante. Primeiro, falta-nos o ar. Depois, a gente percebe que mudou para uma forma antiga. Mal se reconhece.
Choveu, certamente, pois começa a escorrer água pelas frinchas do teto. Eu próprio me sinto um tanto liquefeito. Ainda assim, não me dou mal, e não estou certo de querer sair.
É pena a caixa estar a encher-se de vermes.