Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sábado, 19 de março de 2016


PORCOS, RELIGIÃO E SAÚDE

Entre os animais de que nos alimentamos, o porco é o que apresenta melhor índice de aproveitamento da energia. É capaz de converter em proteínas 35 por cento do conteúdo dos vegetais ingeridos, enquanto a vaca não vai além dos 6,5 por cento. A sua velocidade de reprodução é muito superior à do gado bovino. Ainda assim, o seu consumo foi proscrito tanto pela Bíblia como pelo Corão. O animal era considerado “sujo” e “impuro”.



Maimonides, médico da corte do imperador Saladino, no Egito, manifestou por escrito, no sec. XII, o seu desprezo pelos porcos e pelos cristãos que os comiam.



Habituei-me, há muito, a associar as interdições alimentares religiosos a regras de saúde pública. Poderei estar enganado. As ovelhas, as cabras e até as vacas, transmitem a brucelose e não foram amaldiçoados pela Bíblia nem pelo Corão. Por outro lado, a associação do consumo de carne de porco mal cozinhada à triquinose foi estabelecida apenas em 1859. Malpighi constatara, já em 1697, que o agente da cisticercose era um verme. Contudo, foi somente em 1885 que Kuchenmeister demonstrou que o cisticerco originava o verme adulto do homem.
 É possível que uma ligação empírica entre a alimentação com carne de porco e algumas doenças tivesse sido mais ou menos estabelecida entre os povos que habitavam o Médio Oriente.
Um curioso estudo de Marvin Harris aponta noutras direções. Harris propõe uma explicação de base ecológica para o tabu. 



     Estariam em causa os ecossistemas e a desflorestação e, em particular, a extraordinária capacidade dos ruminantes para digerirem celulose. Os ruminantes não competem com os humanos por comida. Pelo contrário, aumentam a produtividade agrícola ao produzirem estrume e ao serem utilizados como animais de tração.
Os porcos são omnívoros, tal como nós. Quando podem, ingerem os vegetais pobres em celulose de nos alimentamos.
Por outro lado, os porcos estão geneticamente mal preparados para se adaptarem a climas quentes. Não dispõem de glândulas sudoríparas e chafurdam na lama para se refrescarem. Harris atribui à desflorestação o declínio da produção de suínos. Os pastores das regiões áridas, como os judeus antigos, não criavam porcos. O cálculo grosseiro da relação custo/benefício estará na origem da baixa reputação dos suínos no Médio Oriente. Durante longos períodos, os egípcios, os fenícios e os babilónios puseram de lado a pecuária porcina.
As leis alimentares do Levítico e do Corão traduziriam a codificação de preconceitos tradicionais.
Curiosamente, na Europa da Idade Média, o porco é apresentado como indutor de saúde. Embora os unguentos de banha de porco fossem de eficácia discutível no tratamento do ergotismo, o consumo de carne de porco permitiria diminuir a ingestão de pão de centeio infestado pela cravagem. Chamavam-lhe também o Fogo de Santo Antão.


Antão era um eremita egípcio do século III, considerado o fundador da vida monástica. Foi muito popular na Idade Média, sendo visto como protetor contra o Fogo de Santo Antão, ou ergotismo, doença provocada pela cravagem do centeio.


O ergotismo desencadeia perturbações mentais, sensações de queimadura e grangrena isquémica das extremidades, com perdas frequentes de membros.


O santo é muitas vezes representado na companhia de um porco. Comer mais carne e menos pão diminuía a probabilidade de contrair a doença.