Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016


 O CONHECIMENTO CURA




Já falei, neste blogue, do Papiro de Ebers, de que chegou até nós uma cópia com 3.500 anos, escrito em hieróglifos simplificados. Os antigos egípcios elaboraram a primeira Farmacopeia da História Universal.
     Recorriam a produtos diversos para preparar os seus medicamentos. Contavam-se entre eles, além de variadas ervas medicinais, leite de mulher, sangue de lagarto, fezes animais e livros velhos fervidos. É caso para se dizer que o conhecimento cura.
     Não se trata de Medicina assente na evidência, uma vez que não há referência, nessa época, a estudos duplamente cegos com abrangência estatística significativa, mas a notícia fica, mesmo assim.


quinta-feira, 1 de dezembro de 2016


      OS PRIMÓRDIOS DA ANESTESIA



Sou neurocirurgião e interesso-me por História da Medicina. Será fácil entender a minha curiosidade pela História da Anestesia. As publicações recentes de Figueiredo Lima suscitaram-me algumas reflexões breves.
Há cerca de ano e meio, falei neste blogue de Hua Tuo (ou Wá Tó), o "divino cirurgião", alegadamente o primeiro médico da China e do mundo a recorrer à anestesia. Julga-se que a sua fórmula anestésica, denominada “Mafei san”, associava aguardente de arroz a um preparado de ervas que, traduzido à letra, significava “pó de cannabis cozido”.
Tratou-se de uma personagem real que viveu no segundo século antes da era cristã. 
É venerado como uma divindade, nos templos taoistas. Quando davam com um médico extraordinário, diziam os chineses que era Hua Tuo reincarnado.
Hua Tuo terá sido o primeiro cirurgião a realizar uma intervenção cirúrgica sob anestesia, 1600 anos antes da introdução da anestesia nos Estados Unidos da América. Ajudado por esta técnica, terá realizado laparotomias e resseções intestinais. Poderá ter operado com sucesso uma apendicite aguda.
A lenda diz que foi executado, já em avançada idade, por volta de 207, por um nobre descontente com o seu pouco interesse em tratá-lo. Há também quem sugira que o poderoso Cao Cao, que se sentou num dos três tronos que resultaram do desmembramento do império Han, suspeitou de uma tentativa de assassinato quando Hua Tuo lhe sugeriu uma trepanação craniana para tratar as suas severas enxaquecas. Tanto quanto sei, é a primeira vez na História da Medicina que a trepanação aparece associada ao nome do cirurgião que a praticou. A operação foi aprovada por Hipócrates para o tratamento de feridas cranianas, mas não há indícios de que o médico de Cós a tenha praticado pessoalmente.
Os trabalhos do cirurgião chinês perderam-se. Da sua obra resta apenas um método de castração de patos. A tradição adicionou à sua obra uma série de pontos novos para acupuntura e a invenção de suturas, de unguentos anti-inflamatórios e de remédios para a ascaridíase.  
A anestesia demoraria muitos séculos a ser reinventada e a cirurgia chinesa regrediu consideravelmente.
Ao longo dos séculos, repetiram-se as tentativas para aliviar as dores durante os procedimentos cirúrgicos.
Caio Plínio Segundo, ou o Velho, que viveu entre cerca de 23 e 79 da era cristã, recomendou a utilização de Mandragora officinalis para analgesia de traumatismos e para cirurgias.
Lúcio Apuleyo (125-170), com nome latino mas originário da Argélia, aconselhou o uso da Mandrágora para provocar o sono e induzir analgesia suficiente para ser possível amputar um membro sem que o paciente sofresse dor.
Galeno utilizou o ópio como analgésico.
Os antigos médicos árabes recorriam a diversas plantas para reduzir a dor durante a cirurgia. Utilizavam o ópio, a beladona, a mandrágora, o beleno, a cicuta e o haxixe. As formas de administração eram duas: a ingestão de sementes da papoila-dormideira e a aplicação de “esponjas soporíficas”.
   Mais tarde, em Salerno e em Bolonha, a Scopolia carniolica foi utilizada em Medicina, também sob a forma de "esponja soporífica". 
    A partir de 1938, recorreu-se ao hipnotismo para combater a dor durante intervenções cirúrgicas.
    Foi preciso esperar até 1846 para que o dentista americano William Morton levasse a cabo a primeira anestesia com éter. 



Bibliografia
Figueiredo Lima, Joaquim. Plantas Medicinais e Medicina Convencional. Chiado Editora, Lisboa, 2016.
Subhuti Dharmananda, Ph.D., Director, Institute for Traditional Medicine, Portland, Oregon. Hua Tuo.(Internet).

Fotografia: autor.