Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quinta-feira, 25 de outubro de 2018



                          AMADEO


Faz hoje cem anos que morreu, em Espinho, Amadeo de Sousa Cardoso. Foi ceifado pela Gripe Pneumónica, a pandemia mais mortífera de que há registo na História da Humanidade.
Em Portugal, a gripe terá provocado entre 60.000 e 120.000 mortos. Sucumbiam 6 a 8 % do total das pessoas infetadas. A “Pneumónica” atingia preferencialmente o grupo etário situado entre os 20 e os 40 anos. Era o caso de Amadeo, que festejaria o seu 31º aniversário dali a um mês.
       Durante a sua prolongada estadia em Paris, Amadeo de Sousa Cardoso privou com alguns dos nomes mais sonantes da pintura e da escultura da época. Outro Amadeu (Modigliani) tornou-se seu amigo chegado. A I Grande Guerra fê-lo voltar à Pátria.
      Quem olha hoje as obras de Amadeo, fica impressionado pela vitalidade que transmitiu ao pincel. Lê-se ali vontade de experimentar, ambição, bom gosto, desejo de afirmação e uma grande harmonia na mistura das cores. Aqui e além, o artista dá a impressão de tatear, como se percorresse, de olhos vendados, uma vereda pouco conhecida. Pintou centenas de quadros. Em vários deles, parece brilhar a centelha do génio.

                           Procissão do Corpo de Deus
        A pensar em quadros seus, escreveu Pessoa, pela voz de Álvaro de Campos: só tem direito ou o dever de exprimir o que sente, em arte, o indivíduo que sente por vários. O que é preciso é o artista que sinta por um certo número de Outros, uns do passado, outros do presente, outros do futuro.
       O pintor não se fidelizou a qualquer corrente estética. Afirmou, numa entrevista a um jornal português:
 Eu não sigo escola alguma. Nós, os novos, só procuramos a originalidade. Sou impressionista, cubista, futurista, abstracionista? De tudo um pouco.
Alcançou a perfeição em várias dessas correntes, mas não se deteve em nenhuma. Chegou a escrever: 
   Eu, nem a mim mesmo me sigo na visão artística. Tudo o que tenho feito é diferente do precedente e sempre mais perfeito. 


Galgos

Ia outubro de 1918 adiantado, quando Amadeo de Sousa Cardoso escreveu ao irmão António a sua última carta conhecida. Deixo aqui excertos dela.

Meu caro António:
Algumas notícias nossas e são as seguintes: a Gracita continua no mesmo estado. Não tem piorado, mas também as melhoras não são para dar descanso. Na noite passada, o termómetro acusou altíssima temperatura. Hoje, até à hora que escrevo, tem baixado: 39, 39 e meio.
Eu ando constipadíssimo. De vez em quando, sinto bastante opressão no peito. Tenho-me atirado ao vinho do Porto, como prevenção.
Não sei quê que me diz que vae haver grande mudança na vida da nossa família. Será pessimismo meu, oxalá!
Abraça-te teu muito dedicado irmão,
Amadeo

O pintor de Manhufe morreu cedo e o seu valor foi reconhecido tarde.
Ninguém pode saber quanto teria ainda para dar à arte portuguesa e mundial. Embora seja pouco útil conjeturar, alguns dos que o apreciam interrogam-se: teria Amadeo acabado por se encostar a algum dos movimentos estéticos da época, ou viria a criar uma escola própria?

Fontes: Alfaro, Catarina. Amadeo de Souza Cardoso
           Wikipedia.




sábado, 20 de outubro de 2018





  HOMENAGEM
AO DOUTOR MÁRIO BRAGA TEMIDO

                                         



Congratulo-me com o espírito de abertura com que a direção do Ateneu, presidida pelo doutor João Freitas, acolheu esta iniciativa, veiculada pelo nosso colega e amigo comum Fernando Martinho.
Sou presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos há poucos meses. Entendo que a SOPEAM se deve aliar pontualmente a instituições não médicas, para convívio e troca de informação cultural. Tem acontecido assim, no decurso dos dois últimos anos com a Liga de Amigos de Setúbal e Azeitão, e estou aqui hoje. Talvez, para o ano, se encontre um pretexto que nos junte outra vez.  


Evocar o doutor Mário Temido é chamar à memória os anos finais da minha juventude, quando o coração era mais aberto e a generosidade fazia parte natural do nosso quotidiano.
É recordar a Sé Velha, onde vivi durante a maioria dos anos que passei em Coimbra. Morei muito tempo no Beco da Carqueja. A Sé Velha era, e espero que continue a ser, um espaço especial dentro de Coimbra, um lugar de convivência chegada entre estudantes e a população em geral.
Terá havido outros locais no país em que a juventude estudantil se tenha aproximado dos pequenos funcionários públicos e dos empregados de comércio com visões políticas progressivas, mas, aos meus olhos, a experiência da Sé Velha será sempre única.
Por bares e cafés em que toda a gente se conhecia, discutia-se quase abertamente a situação política, geralmente numa perspetiva de Esquerda. Sonhávamos, em conjunto, com um Portugal democrático, moderno, pacífico, livre da herança colonial e em convivência fraterna com os povos das antigas colónias, que deveriam definir livremente os próprios destinos.
Lembrar o doutor Mário Temido é, naturalmente, falar do Ateneu de Coimbra, a cuja Mesa da Assembleia Geral presidiu. O Ateneu desempenhou um papel histórico como polo agregador de pessoas de boa vontade que não se reviam nas vetustas estruturas políticas do Estado Novo e tinham a coragem de afrontar o regime salazarista.
O interesse científico do doutor Mário Temido pela malária é fácil de entender. Nasceu e cresceu no Baixo Mondego, uma região onde o desenvolvimento da cultura do arroz agravou a endemia antiga de paludismo – as sezões. A doença foi erradicada em Portugal nos meados do século XX, mas os mosquitos anopheles continuam aí e é bem possível que as recentes alterações climáticas favoreçam o reaparecimento da malária entre nós.
Quando fundámos o Posto Médico do Ateneu, éramos jovens médicos, cheios de boa vontade, mas inexperientes. O doutor Mário Temido era o companheiro mais velho que nos esclarecia as dúvidas e aconselhava, nos casos mais difíceis, que nem eram tão raros assim.
Como a juventude na profissão não permitia exageros de confiança redobrávamos de cuidados na abordagem dos doentes mais frágeis. É possível que enviássemos para a urgência do hospital, que era logo ali acima, casos clínicos que a poderiam dispensar.


Sem dizer nomes, vou contar um episódio da vida de um senhor cujo filho era proprietário de um pequeno estabelecimento na Rua do Correio. O homem, que teria, à data, os anos que eu conto hoje, possuía um coração muito fraco. De tempos a tempos, ia vê-lo a casa e, quando me parecia necessário, mandava-o para o hospital.
Aconteceu assim numa sexta-feira. Surpreendeu-me que, logo na segunda-feira seguinte, me voltassem a chamar. Contou-me o doente:
− Ó senhor doutor… Eu estava na cama três. Morreu o da cama um e, algumas horas mais tarde, o da cama dois. Domingo de manhã, faleceu o da cama quatro. Ela saltou! A morte saltou por cima de mim! Assinei o pedido de alta e aqui estou!
Eram mais os dias calmos e de convívio. Como disse, o relacionamento dos estudantes com a malta da Sé Velha, era especial.
Eu vivia duma bolsa de estudo e as mesadas chegavam a atrasar-se três, quatro e mais meses. Vivíamos, então, a crédito. Certa vez que me viu preocupado, o Mário Ferreira, proprietário do Café Oásis, a quem já devia três meses de bicas e cigarros, chamou-me de lado. “Doutor Trabulo, disse-me. Não se chateie. Pegue lá cinquenta paus. Leve a esposa a jantar fora e depois vão os dois ao cinema. Quando receber, paga tudo junto…”
Foram anos bons. Vivíamos modestamente, mas tínhamos a alegria própria da juventude. O doutor Mário Temido ia-nos apoiando com a sua amizade e o seu saber. Fico contente por ter surgido esta oportunidade de o recordar.

António Trabulo
(Palestra proferida no Ateneu de Coimbra a 19/10/2018)