Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019


            MARCOS MILIÁRIOS





O número de visitantes deste blogue ultrapassou recentemente a centena de milhar.
Curiosamente, os leitores não provêm maioritariamente do território português, distribuindo-se preferencialmente pela Ásia e pelas Américas. 
    



domingo, 20 de outubro de 2019

Primeiro Prémio Literário da 

Lusofonia atribuído a 

António Trabulo



O autor deste blogue recebeu nova 

distinção literária.


 
Ao seu romance O DIA EM QUE DEUS 

COMEÇOU A DESMONTAR O MUNDO foi 

atribuído o I Prémio Literário da Lusofonia 

Professor Doutor Adriano Moreira.

A cerimónia teve lugar no passado dia 18, 

no Teatro Municipal de Bragança. 

Concorreram 45 trabalhos, 35 de Portugal, 

nove do Brasil e um de Espanha.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019







AMEAÇA DE UMA PANDEMIA
DN/Reuters 18 Setembro 2019 — 19:40

Dada a relevância do tema, partilho o artigo, sem cortes nem acrescentos.

A ameaça de uma pandemia global é real e pode matar milhões, alerta OMS.
Relatório divulgado esta quarta-feira por um painel de especialistas dá o exemplo da "gripe espanhola" que, em 1918, matou cerca de 50 milhões de pessoas. Se esta pandemia acontecesse hoje poderia espalhar-se rapidamente em menos de 36 horas e matar até 80 milhões de pessoas, destruindo quase 5% da economia global.
O mundo não está preparado para enfrentar uma possível pandemia global. Alguns governos e agências internacionais fizeram esforços para estarem vigilantes e preparados para grandes surtos de doenças desde o devastador surto de Ébola de 2014-2016 na África Ocidental - afetou cerca de 29 mil pessoas, das quais 11 310 morreram, principalmente na Guiné, Libéria e Serra Leoa. Mas esses esforços, diz o relatório, são "bastante insuficientes".
O mundo está a enfrentar uma ameaça crescente de doenças pandémicas (com distribuição geográfica muito alargada) que podem matar milhões e devastar a economia global, alertou um painel internacional de especialistas liderado por Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor geral da Organização Mundial de Saúde . Os governos deviam trabalhar para se preparar e minimizar o risco. Na opinião dos especialistas, os países não estão preparados para uma eventual pandemia global.
O Conselho Global de Monitoramento da Preparação (GPMB), convocado pelo Banco Mundial e pela Organização Mundial da Saúde (OMS), alertou esta quarta-feira que doenças virais propensas a epidemias como a Ébola, a gripe e a SARS (síndrome respiratória aguda grave) são cada vez mais difíceis de controlar. A razão tem a ver com o facto de vivermos num mundo dominado por conflitos prolongados, estados frágeis e migração forçada.
"A ameaça de uma pandemia que se espalha pelo globo é real", salienta o painel de especialistas num relatório divulgado esta quarta-feira. "Um agente infeccioso em rápido movimento pode provocar uma doença que se espalha rapidamente e tem o potencial de matar dezenas de milhões de pessoas, perturbar economias e desestabilizar a segurança nacional", enumera o relatório.
Recorde-se que a segunda maior epidemia de ébola no continente africano está a afetar a República Democrática do Congo, onde no último ano morreram duas mil pessoas com a doença.
Em caso de pandemia, os sistemas de saúde, sobretudo dos países mais pobres, entrariam em colapso
Gro Harlem Brundtland, um antigo dirigente da Organização Mundial de Saúde que co-presidiu o Conselho Global de Monitoramento da Preparação afirma que as abordagens atuais para emergências de saúde são "caracterizadas por um ciclo de pânico e negligência".
O relatório cita a pandemia da "gripe espanhola", de 1918, que matou cerca de 50 milhões de pessoas. Com um grande número de pessoas a atravessar o mundo em aviões todos os dias, uma pandemia semelhante podia hoje espalhar-se globalmente em menos de 36 horas e matar até 80 milhões de pessoas, destruindo quase 5% da economia global.
No caso de uma pandemia, muitos sistemas nacionais de saúde, particularmente nos países pobres, entrariam em colapso. "A pobreza e a fragilidade agravam os surtos de doenças infecciosas e ajudam a criar as condições para que as pandemias ocorram", afirmou Axel van Trotsenburg, vice-presidente do Banco Mundial e membro do painel de especialistas.
"A ameaça da gripe pandémica está sempre presente", diz OMS
Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, defende que os governos deviam investir no fortalecimento dos sistemas de saúde, aumentar os fundos para pesquisas em novas tecnologias, melhorar os sistemas de coordenação e comunicação rápida e monitorizar o progresso rapidamente.
A OMS também alertou no início deste ano que outra pandemia de gripe - causada por vírus que se espalha pelo ar - é inevitável e disse que o mundo deveria se preparar para isso.
"A ameaça da gripe pandémica está sempre presente", disse, na altura, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, acrescentando: "O risco contínuo de um novo vírus influenza transmitindo de animais para humanos e potencialmente causando uma pandemia é real. A questão não é se teremos outra pandemia, mas quando".

terça-feira, 9 de julho de 2019



AS CANTÁRIDAS



A cantharis vesicatoria, ou lytta vesicatoria, também conhecida por Mosca de Espanha, é um coleóptero da família das cantaradiae. Trata-se uma espécie de mosca de cor verde-azulada metálica, bonita mas malcheirosa, comum no sul da Europa, onde se encontra em sabugueiros, álamos e freixos. Existe em Portugal.
Em tempos, os insetos eram mortos com vapor de vinagre forte e secos ao sol. Recolhiam-se os que se encontram em melhores condições e reduziam-se a pó.
    O pó é corrosivo e vesicatório. O seu elemento ativo é o terpenoide cantaridina (C10H12O4), substância irritante que provoca localmente rubefação e vesicação. Para obter um bom emplastro, são necessárias três partes de pó, uma de azeite e duas de cera amarela, resina e aguarrás de pinheiro.
     As cantáridas são referidas no Papiro de Ebers, um texto egípcio de 1550 a.C. e no Corpus Hippocraticum.
     A cantaridina foi isolada, em 1810, pelo químico francês Pierre Robiquet. Foi considerada um dos venenos mais violentos até então conhecidos. 
     Ao longo dos séculos, as cantáridas foram responsabilizadas por muitas mortes, tanto em consequência de homicídios como de suicídios. Nos meados do século XVII  ganharam fama as “pastilhas Richelieu”, que terão sido usadas para colher vidas sem deixar rasto.
Ingeridas, as cantáridas são suscetíveis de causar erosão da mucosa digestiva, podendo desencadear hemorragias gastrointestinais severas. Têm sido descritas necrose tubular e glomerular renal, seguidas de insuficiência renal. Pode levar à morte.
Utilizam-se em unguentos e emplastros vesicatórios. “Nunca se hão de administrar interiormente, pelos muitos dados que costumam causar” (Coelho, 1735, 168).
    A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira dá informações interessantes sobre a utilização médica das cantáridas. Hipócrates aconselharia o uso do seu pó na hidropisia, na icterícia e em partos difíceis. Terá sido também utilizada para provocar abortos. Oribásio de Pérgamo, no sec. VI a.C., recomendou o seu emprego como epispástico ou vesicatório. Ribeiro Sanches defende a sua utilização no tratamento de certas lesões cutâneas da sífilis. Curvo Semedo refere casos de disúria como complicação da sua ingestão.
     As cantáridas foram utilizadas durante séculos na medicina tradicional europeia, como vesicatórios, diuréticos e afrodisíacos. Ainda hoje se recorre a elas, como afrodisíacos e para a remoção de verrugas. São utilizadas em homeopatia e publicitadas, para venda livre, na Internet.
Curiosamente, tiveram aplicação culinária no norte de África. Em Marrocos, o tempero conhecido como ras el hanout (“o máximo da minha cozinha”) chegava a contar com mais de 100 ingredientes, incluindo cantáridas. A sua comercialização foi proibido por volta de 1990. O dawamesk, um molho norte-africano complexo, contém ocasionalmente cantáridas.
O uso das cantáridas está associado a algumas histórias interessantes. Em junho de 1772, o marquês de Sade deslocou-se a Marselha para recrutar prostitutas. No regresso, organizou uma orgia em que terá oferecido às mulheres bombons de anis alegadamente recheados com pós de cantáridas, com a intenção de lhes aumentar a libido. A festa correu mal e várias das convidadas adoeceram, com vómitos copiosos. Uma acabou por morrer.


       Em consequência de mais este escândalo, o marquês foi preso e chegou a ser condenado à morte. Evadiu-se, em circunstâncias rocambolescas. Curiosamente, o inquérito levado a cabo pelas autoridades judiciais, com a colaboração de peritos químicos (com os conhecimentos e as tecnologias da época) não detetou, nem nas pastilhas de anis restantes, nem na análise do vómito da vítima, vestígios de substâncias tóxicas.


       Consta que Simão Bolivar, o padrinho de muitas nações que emergiram do império colonial espanhol, morreu de envenenamento acidental por cantáridas, aplicadas por um suposto médico francês na forma de emplastro na nuca. A história é retomada por Gabriel Garcia Marquez, na sua novela “O general no seu labirinto”.


         O rei “Católico” Fernando II de Aragão terá tido também a vida abreviada pelo consumo de cantáridas. Usava-as, juntamente com testículos de touro e outros produtos de reputação afrodisíaca. Pretendia conseguir um filho da sua segunda esposa, a jovem Germana de Foix.
      Curiosamente, algumas constatações recentes sugerem que o efeito das cantáridas resulta em dor e não em prazer.

Fontes:
Coelho, Manoel Rodrigues. 1735. Pharmacopeia Tubalense. Lisboa: Of. António de Sousa da Silva.

Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Editorial Enciclopedia, Lisboa, Rio de Janeiro.
Remy (Pierre Jean). 2001. Le marquis de Sade a-t-il empoisonné des files publiques em 1972? Trésors et secrets du Quay d`Orsay. Paris. J.-C. Lattès.

Sellen, Adam. 2017. Cantáridas mexicanas: una fuente para la historia de la medicina natural. Relaciones: Estudios de História y Sociedade, vol.38, nº1.


sábado, 9 de fevereiro de 2019




RELAÇÃO MÉDICO-DOENTE


NA LITERATURA PORTUGUESA


EPÍLOGO


Sendo médico e escritor, ainda que distante do fulgor das figuras que referi, terei o dever de deixar aqui, também, o meu contributo para o tema que aceitei abordar.
Nasci em Almendra (Foz Coa) em 1943. Pelos seis anos, acompanhei a minha família que se estabeleceu na cidade de Sá da Bandeira (Lubango), no sul de Angola. Aos 17, mudei-me para Coimbra, onde estudei Medicina. Cumpri o serviço militar como médico da Reserva Naval, a bordo do navio hospital Gil Eannes. Sou neurocirurgião aposentado e fiz toda a minha carreira profissional nos hospitais de S. José e dos Capuchos.
Publiquei 14 livros, divididos entre o romance, o conto, a biografia e o ensaio.
Escrevi, no artigo “O Médico do Futuro”, publicado recentemente na Revista da Ordem dos Médicos:
Mesmo com tecnologias novas e revolucionárias, a natureza humana não mudará e será bom tê-la em linha de conta. A relação entre aquele que trata e aquele que sofre, independentemente dos avanços tecnológicos, deverá continuar a ser uma relação humana privilegiada. Desconheço, naturalmente, as maravilhas que a evolução técnica irá pôr à disposição dos nossos Colegas de amanhã. No entanto, a natureza humana não se irá modificar. As pessoas em sofrimento irão continuar a precisar da compaixão de quem os trata. Compaixão, compreensão, afeto, proximidade e capacidade de comunicação. Em suma: empatia.
Provavelmente, o fator mais relevante na aproximação médico doente continuará a ser a disponibilidade para ouvir. Não existem bons médicos que não saibam escutar os seus doentes. Poderá seguir-se a voz, que transmite sentimentos e raciocínio. Os enfermos querem entender o que pensamos. A escolha das palavras e o recurso à prudência são atributos antigos da Arte de Curar. Ontem, como hoje, as palavras e as atitudes têm efeitos terapêuticos.
Um amigo meu disse neste espaço, anos atrás, que o olhar detinha capacidades curativas. O doente pretende que atentemos nele e o modo de olhar pode ajudar a expressar os nossos sentimentos. Mas não é apenas o olhar. Ouvir, falar, sorrir, tocar, são atos terapêuticos que reforçam a ação dos medicamentos e das técnicas. Mesmo em especialidades em que a palpação não seja essencial para a observação clínica, um aperto de mão ou uma palmadinha no ombro ajudam a dizer aos doentes que nos interessamos por eles.
Trata-se de procedimentos objetivos e mensuráveis. Há quem valorize o efeito placebo em cerca de 40%, embora sejam apontados outros números.
Bastará lembrar as medicinas chamadas alternativa que se desenvolvem à nossa volta. Pouco mais do terão a oferecer que esse efeito e, ainda assim, florescem. Tolos serão os médicos que não procurem reforçar a ação curativa com a indução de sentimentos positivos.
Quem não for capaz de sentir verdadeiramente a compaixão e de exercer o seu mister com bondade, deverá escolher outro ofício, em vez de ser médico.

Texto retirado do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, a integrar no livro do Processo de candidatura da Relação médico doente a Património Imaterial da Humanidade.



quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019



RELAÇÃO MÉDICO DOENTE


NA LITERATURA PORTUGUESA


ANTÓNIO LOBO ANTUNES




António Lobo Antunes nasceu em 1942, no seio duma família de médicos ilustres. A par de José Saramago, foi um dos escritores portugueses mais notáveis, no terceiro quartel do século XX e no início do século XXI.
A sua experiência como médico militar em Angola, durante a guerra colonial, centrou os enredos de vários dos seus livros.
No regresso de Angola, António Lobo Antunes especializou-se em Psiquiatria e trabalhou durante muitos anos no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa. A balança dos seus interesses foi-se deslocando da Medicina para a Literatura, até se tornar apenas escritor.
Escreve António Lobo Antunes em “Conhecimento do Inferno”:
Sou médico e vou ser psiquiatra, entender as pessoas, perceber o seu desespero e a sua angústia, tranquilizá-las com o meu sorriso competente de sacerdote laico manejando as hóstias das pastilhas em eucaristias químicas.
E, mais adiante:
Alterando as posições de médico e doente, invertendo a própria condição ao ser confundido com um internado, médicos e pacientes destabilizam os papéis desempenhados por um e outro, a ponto de lhe assaltar a impressão de que eram os doentes quem tratava os psiquiatras com a delicadeza que a aprendizagem da dor lhes traz, que os doentes fingiam ser doentes para ajudar os psiquiatras, iludir um pouco a sua triste condição de cadáveres que se ignoram, de mortos que se supõem vivos e cirandam lentamente pelos corredores na gravidade comedida dos espetros.
António Lobo Antunes não se mostra agradado, nem com a metodologia, nem com os resultados da sua atividade profissional. A dada altura propõe, para os doentes, uma fuga poética:
Devíamos tentar, como as gaivotas, furar o céu de gesso que nos emparedava, quebrar os espelhos, recusar os cartuchos, e partir antes que nos medicassem, nos condicionassem, nos psicanalizassem, nos medissem a inteligência, o raciocínio, a memória, a vontade, as emoções, nos catalogassem e nos atirassem por fim, rotulados, para a escura gaveta de uma enfermaria, aguardando, aterrados, o imenso morcego da noite.
O autor escreveu num artigo da revista Visão, em 2012:
O lugar onde, até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria, onde a elegância dos doentes os transforma em reis. Numa das últimas vezes que lá fui encontrei um homem que conheço há muitos anos. Estava tão magro que demorei a perceber quem era. Disse-me
− Abrace-me porque é o último abraço que me dá! Tenho muita pena de não acabar a tese de doutoramento.
   Ao afastarmo-nos, sorriu. Nunca vi um sorriso com tanta dor entre parêntesis, nunca imaginei que fosse tão bonito.

… A extraordinária delicadeza e atenção dos médicos, dos enfermeiros, comoveu-me. Tropecei no desespero, no mal-estar físico, na presença da morte, na surpresa da dor, na horrível solidão da proximidade do fim, que se me afigura de uma injustiça intolerável. Não fomos feitos para isto, fomos feitos para a vida. O cabelo cresce-me de novo, acho-me, fisicamente, como antes, estou a acabar o livro e o meu pensamento desvia-se constantemente para a voz de um homem no meu ouvido.


Texto retirado do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, do livro a integrar no Processo de candidatura da Relação médico doente a Património Imaterial da Humanidade.



terça-feira, 5 de fevereiro de 2019



         RELAÇÃO MÉDICO DOENTE


             NA LITERATURA PORTUGUESA


                     MÁRIO CLÁUDIO




Mário Cláudio nasceu no Porto em 1941. Licenciou-se em Direito e estudou Artes em Londres. Dedicou-se ao romance, à poesia, ao teatro, ao ensaio e à literatura infantil, tendo publicado meia centena de títulos.
No romance “Gémeos”, uma espécie de biografia paralela, cria uma interação com a vida e a obra do pintor espanhol Francisco Goya.
Mário Cláudio nunca lhe pronuncia o nome todo. Trata-o por “Dom Francisco” e acompanha-o ao longo dos últimos anos de vida, a época em que Goya criou as “Pinturas Negras”, catorze quadros a óleo traçados diretamente nas paredes de duas salas da sua Quinta del Sordo, junto ao rio Manzanares.


O médico Arrieta é o último amigo de Dom Francisco. Doente e sentindo-se ameaçado, o pintor fecha-se no quarto e não quer sair da cama. É Arrieta quem traz a esperança de volta à sua vida.
Estabelecem-se, entre ambos, laços de confiança e amizade: o médico prestava-me a atenção que eu não discernia em mais ninguém.
Como forma de gratidão, Dom Francisco decide pintar Arrieta, ao lado do seu último autorretrato. 
E pintei-o enfim, amparando-me num quase abraço, quando me acamava ainda, e arrepanhava eu o lençol no convulso gesto dos agonizantes, e me chegava ele amorosamente o copo de soluto, e hesito entre a vontade que me assistia, se a de beber o remédio que me ganharia a cura, se a de permanecer sob a proteção de quem me interpelava.

Texto retirado do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, do livro a integrar no Processo de candidatura da Relação médico doente a Património Imaterial da Humanidade.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019



RELAÇÃO MÉDICO-DOENTE


 NA LITERATURA PORTUGUESA


   JOSÉ CARDOSO PIRES




José Cardoso Pires (1925-1998) é um dos escritores portugueses do século XX que mais admiro. Nascido em São João de Peso (Castelo Branco) e filho de um oficial da Marinha Mercante, mudou-se cedo para Lisboa, onde frequentou o Liceu Camões. Matriculou-se, depois, em Matemática, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, mas não terminou o curso. Conheci-lhe uma irmã médica, especializada em Pediatria.
Com vinte anos, Cardoso Pires alistou-se na Marinha Mercante e deu-se mal.
Resolveu, mais tarde, fazer-se jornalista. Depois de participar em vários projetos editoriais, colaborou no Diário de Lisboa e na Gazeta Musical.
Publicou 18 livros de romances, contos, ensaios e crónicas. Andou perto do neorrealismo, mas recebeu influências várias, entre as quais ressalta a de Hemingway, com tendência para uma escrita sucinta, com diálogos concisos. Confesso que bebi da mesma fonte.
O seu “De Profundis, Valsa lenta” não chegará ao brilho de obras como “O delfim”, “O anjo ancorado” ou “O hóspede de Job”, mas tem a característica ímpar de ilustrar o modo como o autor foi capaz de reagir à tragédia pessoal. Em 1996, o escritor foi atingido por um acidente vascular cerebral que o impediu de falar e de escrever. Recuperado, Cardoso Pires abordou, no ano seguinte, com sentido de oportunidade e um toque de génio, a reação ao mal que se abatera bruscamente sobre ele. Tão diferente se achou, a partir desse instante, que falou de si próprio na terceira pessoa.
Assim, também, o foi encontrar uma jovem médica que o veio observar com as primeiras perguntas, no tom de quem vem de recado pensado.
Perguntas a aviar, é bom que se diga, pelo menos foi o que lhe pareceu a ele uma abordagem daquelas, e como tal, com respostas prontas é que a devia despachar. Estropiadas ou não, respostas prontas e o rosto eternamente apontado para uma vastidão qualquer. Seria realmente uma vastidão, um espaço ermo, para onde olhava? Pouco importa. Horizonte, interrogação ou nada, era nessa direção que ele estava a responder ao exame e infelizmente com o descanso e a irresponsabilidade que eram de prever, parecia anotar a médica pela maneira de o escutar, pelo insólito dos desacertos com que ele correspondia ao diagnóstico que lhe tinha sido atribuído, conformava a médica com o silêncio do olhar, claro, tudo certo, tudo conforme, «agora», despediu-se ela, «o que é preciso é pôr-se bom depressa para voltar a escrever. De acordo?»
Escrever?
O que restaria de mim no homem que ficou para ali estendido à espera de coisa nenhuma?
O mal acabaria por vencer. José Cardoso Pires foi atingido, no ano seguinte, por novo acidente vascular cerebral que lhe roubou a vida.

Texto retirado do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, do livro a integrar no Processo de candidatura da Relação médico doente a Património Imaterial da Humanidade.

domingo, 3 de fevereiro de 2019



RELACÃO MÉDICO-DOENTE


NA LITERATURA PORTUGUESA


 FERNANDO NAMORA




Fernando Gonçalves Namora nasceu em Condeixa-a-Nova, em abril de 1919 e faleceu em Lisboa, em janeiro de 1989. Licenciou-se em Medicina, em Coimbra. Como escritor, fez parte da geração de 1940, juntamente com Carlos de Oliveira, Mário Dionísio, Joaquim Namorado e João José Cochofel. Exerceu Medicina em regiões rurais da Beira Baixa e Alentejo. Fixou-se mais tarde em Lisboa, como médico do Instituto Português de Oncologia. 
Foi um dos fundadores da Sociedade Portuguesa de Escritores Médicos.
É autor de uma extensa obra que se repartiu pela poesia, pelo conto, pelo romance e pelas crónicas de viagem. Aventurou-se também pela pintura, chegando a ser premiado nessa forma de arte.
Neste trabalho despretensioso sobre o modo como é tratada a relação entre médicos e doentes na literatura portuguesa, cito quatro prosadores médicos. Deixo, agora, Amato Lusitano de parte, por não ser ficcionista. Entre todos, foi claramente Fernando Namora quem mais se preocupou em aprofundar a questão. Três dos seus romances (Retalhos da vida de um médico (1949), O Homem disfarçado (1957) e Domingo à tarde (1961) têm médicos como protagonistas. No entanto, o relacionamento do clínico com os seus pacientes é bem aparente ao longo de boa parte do resto da sua obra.
Nela, o médico procura olhar-se a si próprio e olhar os doentes e, ainda, ver-se a si mesmo pelos olhos deles. É que somos todos animais de grupo e dependemos da impressão que os outros formam de nós.  Será isso que nos leva a fingir e pretender ser outra coisa, para abrigar a alma de olhares alheios. É a esse tipo de atitude que Fernando Namora designa como o uso da máscara social.
A doença coloca os humanos em situações de fragilidade e leva muitos doentes a pôr de lado as máscaras e a olhar o clínico nos olhos. O abandono do fingimento permite uma aproximação especial entre médicos e doentes.
 … esta relação íntima e o contexto dramático da doença (com a iminência da morte) potenciam a autenticidade, a queda das máscaras sociais e a revelação do verdadeiro “eu”.
O tema é recorrente na sua escrita. Em “Retalhos da vida de um médico”, Fernando Namora relata a sua experiência clínica em pequenas povoações do interior do país. As narrativas correspondem ao início da sua vida profissional.
Eu queria lutar com desespero contra a doença, chamá-la a mim, vigiá-la infatigavelmente; reanimar de vida esse corpo vencido. Mais soro, mais tónicos, tudo o que havia à mão. Foram horas de febre, às vezes de desalento, outras de esperança, ao lado do inimigo que se apoderava irresistivelmente duma vida.
Escreve, mais adiante:
Precisava de persistir. E entreguei-me a cada doente que me procurava com um ardor desesperado. Dias e noites, a horas escusas, faminto de êxito e simpatia, ia rondar o sofrimento, animar os impacientes, oferecer-me inteiro à vida alheia”.
O médico parece sentir a dor dos que lhes pedem ajuda.
Contudo, também ele usa a máscara social. O protagonista de “O homem disfarçado” tem “como principal objetivo ver-se a si próprio com clareza, livrar-se de uma carga de simulações.
Namora escreveu, em “A vacina”:
Tem sido de há muito minha convicção de que ao médico não bastam a sabedoria universitária, as patologias dos livros, a argúcia clínica que as desvenda e subjuga; o humanismo perspicaz, comovido, diligente, do velho médico de família, legenda romântica da nossa infância, continua válido se o pudermos ajustar às coordenadas atuais – e, em muitas circunstâncias, é ele que substitui a droga no seu objetivo de dar esperança e alívio a quem o sofrimento desesperou. Deseja-se ao médico uma sólida consciência profissional, pois não há missão tão eriçada de responsabilidade – mas que não falte, nesse complexo de virtudes, a que advém de um homem lúcido e sensível que se disporá oferecer a outro a simpatia humana que pode traduzir-se sob várias e sempre fecundas expressões. A atmosfera do ato médico é, antes do mais, um diálogo entre dois homens – o que ouve, decifra, decide, em quem se confia, e o que não pode ser repelido ou defraudado na sua necessidade de proteção. O êxito da terapêutica muito depende, pois, da maneira como o médico, mestre desse diálogo, o faz desenrolar.
Em “Domingo à Tarde”, Fernando Namora disserta sobre a incapacidade de comunicação com os doentes. Nesse romance, o seu personagem principal é um médico de um hospital de Lisboa que se refugia na distância e no isolamento. Pouco fala com os enfermos – limita-se a resmungos e a acenos de cabeça.
Trata-se de um oncologista desanimado com a eficácia limitada do seu arsenal terapêutico. Fernando Namora retrata um personagem ao contrário do que ele acredita deverem ser os médicos: um clínico azedo, solitário, cético e pouco esperançoso, mostrando dificuldade em distinguir pieguice de ternura
A redenção do oncologista dá-se pela influência de Clarisse, doente incurável, uma espécie de santa padroeira que o convence da importância da solidariedade e da compreensão da parte de quem socorre os humanos em sofrimento.
Clarisse ajuda o médico a pôr a máscara de lado e a voltar ser ele mesmo. Ela afasta também os seus disfarces. Modifica-se, ao saber que sofre de leucemia. Escreve Namora:
horas depois, quando entrei no laboratório, fui encontrá-la num banquinho baixo, quase aninhada, a fazer perguntas assustadoramente ingénuas à minha assistente.
Ela própria confessa, no seguimento do livro:
Nada tenho dentro de mim a não ser o medo.
O comportamento da doente acaba por alterar a atitude do clínico, que entende que ele e os pacientes navegam na mesma embarcação, enfrentam o mesmo inimigo e têm os destinos chegados. O doente depende do seu doutor, mas o médico compreende que a sua vida só faz sentido enquanto for capaz de transmitir a quem sofre carinho e compaixão. Não se trata apenas de sentir, mas também de mostrar que se sente. O médico deve pôr a máscara de lado.
Em “Estamos no Vento”, Namora retoma um dos seus temas favoritos: a doença põe à mostra a autenticidade humana enquanto a proximidade da morte torna o fingimento quase impossível.
A medicina continua a não se bastar com os manuais, indo sempre mais dentro do homem para o entender na saúde e na doença, sabendo que esta, por lhe afrouxar as resistências, não raro desvenda o que até aí se dissimulara em disfarces.
A prática médica é, fundamentalmente, uma relação entre pessoas.
Em algumas aldeias portuguesas, pouco terá mudado nos três quartos de século que separam os textos de Júlio Dinis e Fernando Namora. O consultório permanece arredado do quotidiano. O internamento hospitalar é uma possibilidade distante. As pessoas adoecem, são tratadas, melhoram ou pioram, e, quando lhes calha a vez, agonizam, nas próprias casas. As consultas médicas são predominantemente domiciliárias. Os meios auxiliares de diagnóstico constituem uma referência afastada. Para o diagnóstico, o médico apoia-se no próprio saber e na observação meticulosa dos doentes.
O contacto com o sofrimento, o desalento e até o desespero, terá tornado confessional a escrita de Fernando Namora.
Segundo Eduardo Lourenço, irmão de um médico que me calhou operar e de quem fui amigo, Namora foi um dos que esteve sempre «em uníssono com as dores do mundo”.
A minha experiência profissional teve início decorridos vinte anos sobre a publicação da primeira edição de “Retalhos da vida de um médico” e desenrolou-se durante quatro décadas. Aconteceu em meio urbano, em ambiente hospitalar, com possibilidades de recurso a meios complementares de diagnóstico cada vez mais sofisticados. Reler Fernando Namora, o escritor português que mais páginas dedicou ao relacionamento entre médicos e doentes, transportou-me a um tempo que me parece pertencer a um mundo mais antigo.
Julgo ter entendido, ao longo da vida, a necessidade de estar perto dos doentes e de lhes fazer sentir a minha solidariedade com palavras, gestos e atitudes. Raramente me terei deparado, contudo, com a tal “máscara social” com que Fernando Namora tanto se preocupou. Poderá faltar-me sensibilidade para esse tipo de visão das relações humanas. Sinto-me, porém, tentado a considerar que ela constitui essencialmente uma realidade literária. Quanto muito, Namora terá feito generalizações a partir de uma ou outra experiência mais marcante da sua vida clínica


Texto retirado do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, do livro a integrar o Processo de candidatura da Relação Médico Doente a Património Imaterial da Humanidade.