Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sábado, 9 de fevereiro de 2019




RELAÇÃO MÉDICO-DOENTE


NA LITERATURA PORTUGUESA


EPÍLOGO


Sendo médico e escritor, ainda que distante do fulgor das figuras que referi, terei o dever de deixar aqui, também, o meu contributo para o tema que aceitei abordar.
Nasci em Almendra (Foz Coa) em 1943. Pelos seis anos, acompanhei a minha família que se estabeleceu na cidade de Sá da Bandeira (Lubango), no sul de Angola. Aos 17, mudei-me para Coimbra, onde estudei Medicina. Cumpri o serviço militar como médico da Reserva Naval, a bordo do navio hospital Gil Eannes. Sou neurocirurgião aposentado e fiz toda a minha carreira profissional nos hospitais de S. José e dos Capuchos.
Publiquei 14 livros, divididos entre o romance, o conto, a biografia e o ensaio.
Escrevi, no artigo “O Médico do Futuro”, publicado recentemente na Revista da Ordem dos Médicos:
Mesmo com tecnologias novas e revolucionárias, a natureza humana não mudará e será bom tê-la em linha de conta. A relação entre aquele que trata e aquele que sofre, independentemente dos avanços tecnológicos, deverá continuar a ser uma relação humana privilegiada. Desconheço, naturalmente, as maravilhas que a evolução técnica irá pôr à disposição dos nossos Colegas de amanhã. No entanto, a natureza humana não se irá modificar. As pessoas em sofrimento irão continuar a precisar da compaixão de quem os trata. Compaixão, compreensão, afeto, proximidade e capacidade de comunicação. Em suma: empatia.
Provavelmente, o fator mais relevante na aproximação médico doente continuará a ser a disponibilidade para ouvir. Não existem bons médicos que não saibam escutar os seus doentes. Poderá seguir-se a voz, que transmite sentimentos e raciocínio. Os enfermos querem entender o que pensamos. A escolha das palavras e o recurso à prudência são atributos antigos da Arte de Curar. Ontem, como hoje, as palavras e as atitudes têm efeitos terapêuticos.
Um amigo meu disse neste espaço, anos atrás, que o olhar detinha capacidades curativas. O doente pretende que atentemos nele e o modo de olhar pode ajudar a expressar os nossos sentimentos. Mas não é apenas o olhar. Ouvir, falar, sorrir, tocar, são atos terapêuticos que reforçam a ação dos medicamentos e das técnicas. Mesmo em especialidades em que a palpação não seja essencial para a observação clínica, um aperto de mão ou uma palmadinha no ombro ajudam a dizer aos doentes que nos interessamos por eles.
Trata-se de procedimentos objetivos e mensuráveis. Há quem valorize o efeito placebo em cerca de 40%, embora sejam apontados outros números.
Bastará lembrar as medicinas chamadas alternativa que se desenvolvem à nossa volta. Pouco mais do terão a oferecer que esse efeito e, ainda assim, florescem. Tolos serão os médicos que não procurem reforçar a ação curativa com a indução de sentimentos positivos.
Quem não for capaz de sentir verdadeiramente a compaixão e de exercer o seu mister com bondade, deverá escolher outro ofício, em vez de ser médico.

Texto retirado do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, a integrar no livro do Processo de candidatura da Relação médico doente a Património Imaterial da Humanidade.



quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019



RELAÇÃO MÉDICO DOENTE


NA LITERATURA PORTUGUESA


ANTÓNIO LOBO ANTUNES




António Lobo Antunes nasceu em 1942, no seio duma família de médicos ilustres. A par de José Saramago, foi um dos escritores portugueses mais notáveis, no terceiro quartel do século XX e no início do século XXI.
A sua experiência como médico militar em Angola, durante a guerra colonial, centrou os enredos de vários dos seus livros.
No regresso de Angola, António Lobo Antunes especializou-se em Psiquiatria e trabalhou durante muitos anos no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa. A balança dos seus interesses foi-se deslocando da Medicina para a Literatura, até se tornar apenas escritor.
Escreve António Lobo Antunes em “Conhecimento do Inferno”:
Sou médico e vou ser psiquiatra, entender as pessoas, perceber o seu desespero e a sua angústia, tranquilizá-las com o meu sorriso competente de sacerdote laico manejando as hóstias das pastilhas em eucaristias químicas.
E, mais adiante:
Alterando as posições de médico e doente, invertendo a própria condição ao ser confundido com um internado, médicos e pacientes destabilizam os papéis desempenhados por um e outro, a ponto de lhe assaltar a impressão de que eram os doentes quem tratava os psiquiatras com a delicadeza que a aprendizagem da dor lhes traz, que os doentes fingiam ser doentes para ajudar os psiquiatras, iludir um pouco a sua triste condição de cadáveres que se ignoram, de mortos que se supõem vivos e cirandam lentamente pelos corredores na gravidade comedida dos espetros.
António Lobo Antunes não se mostra agradado, nem com a metodologia, nem com os resultados da sua atividade profissional. A dada altura propõe, para os doentes, uma fuga poética:
Devíamos tentar, como as gaivotas, furar o céu de gesso que nos emparedava, quebrar os espelhos, recusar os cartuchos, e partir antes que nos medicassem, nos condicionassem, nos psicanalizassem, nos medissem a inteligência, o raciocínio, a memória, a vontade, as emoções, nos catalogassem e nos atirassem por fim, rotulados, para a escura gaveta de uma enfermaria, aguardando, aterrados, o imenso morcego da noite.
O autor escreveu num artigo da revista Visão, em 2012:
O lugar onde, até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria, onde a elegância dos doentes os transforma em reis. Numa das últimas vezes que lá fui encontrei um homem que conheço há muitos anos. Estava tão magro que demorei a perceber quem era. Disse-me
− Abrace-me porque é o último abraço que me dá! Tenho muita pena de não acabar a tese de doutoramento.
   Ao afastarmo-nos, sorriu. Nunca vi um sorriso com tanta dor entre parêntesis, nunca imaginei que fosse tão bonito.

… A extraordinária delicadeza e atenção dos médicos, dos enfermeiros, comoveu-me. Tropecei no desespero, no mal-estar físico, na presença da morte, na surpresa da dor, na horrível solidão da proximidade do fim, que se me afigura de uma injustiça intolerável. Não fomos feitos para isto, fomos feitos para a vida. O cabelo cresce-me de novo, acho-me, fisicamente, como antes, estou a acabar o livro e o meu pensamento desvia-se constantemente para a voz de um homem no meu ouvido.


Texto retirado do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, do livro a integrar no Processo de candidatura da Relação médico doente a Património Imaterial da Humanidade.



terça-feira, 5 de fevereiro de 2019



         RELAÇÃO MÉDICO DOENTE


             NA LITERATURA PORTUGUESA


                     MÁRIO CLÁUDIO




Mário Cláudio nasceu no Porto em 1941. Licenciou-se em Direito e estudou Artes em Londres. Dedicou-se ao romance, à poesia, ao teatro, ao ensaio e à literatura infantil, tendo publicado meia centena de títulos.
No romance “Gémeos”, uma espécie de biografia paralela, cria uma interação com a vida e a obra do pintor espanhol Francisco Goya.
Mário Cláudio nunca lhe pronuncia o nome todo. Trata-o por “Dom Francisco” e acompanha-o ao longo dos últimos anos de vida, a época em que Goya criou as “Pinturas Negras”, catorze quadros a óleo traçados diretamente nas paredes de duas salas da sua Quinta del Sordo, junto ao rio Manzanares.


O médico Arrieta é o último amigo de Dom Francisco. Doente e sentindo-se ameaçado, o pintor fecha-se no quarto e não quer sair da cama. É Arrieta quem traz a esperança de volta à sua vida.
Estabelecem-se, entre ambos, laços de confiança e amizade: o médico prestava-me a atenção que eu não discernia em mais ninguém.
Como forma de gratidão, Dom Francisco decide pintar Arrieta, ao lado do seu último autorretrato. 
E pintei-o enfim, amparando-me num quase abraço, quando me acamava ainda, e arrepanhava eu o lençol no convulso gesto dos agonizantes, e me chegava ele amorosamente o copo de soluto, e hesito entre a vontade que me assistia, se a de beber o remédio que me ganharia a cura, se a de permanecer sob a proteção de quem me interpelava.

Texto retirado do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, do livro a integrar no Processo de candidatura da Relação médico doente a Património Imaterial da Humanidade.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019



RELAÇÃO MÉDICO-DOENTE


 NA LITERATURA PORTUGUESA


   JOSÉ CARDOSO PIRES




José Cardoso Pires (1925-1998) é um dos escritores portugueses do século XX que mais admiro. Nascido em São João de Peso (Castelo Branco) e filho de um oficial da Marinha Mercante, mudou-se cedo para Lisboa, onde frequentou o Liceu Camões. Matriculou-se, depois, em Matemática, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, mas não terminou o curso. Conheci-lhe uma irmã médica, especializada em Pediatria.
Com vinte anos, Cardoso Pires alistou-se na Marinha Mercante e deu-se mal.
Resolveu, mais tarde, fazer-se jornalista. Depois de participar em vários projetos editoriais, colaborou no Diário de Lisboa e na Gazeta Musical.
Publicou 18 livros de romances, contos, ensaios e crónicas. Andou perto do neorrealismo, mas recebeu influências várias, entre as quais ressalta a de Hemingway, com tendência para uma escrita sucinta, com diálogos concisos. Confesso que bebi da mesma fonte.
O seu “De Profundis, Valsa lenta” não chegará ao brilho de obras como “O delfim”, “O anjo ancorado” ou “O hóspede de Job”, mas tem a característica ímpar de ilustrar o modo como o autor foi capaz de reagir à tragédia pessoal. Em 1996, o escritor foi atingido por um acidente vascular cerebral que o impediu de falar e de escrever. Recuperado, Cardoso Pires abordou, no ano seguinte, com sentido de oportunidade e um toque de génio, a reação ao mal que se abatera bruscamente sobre ele. Tão diferente se achou, a partir desse instante, que falou de si próprio na terceira pessoa.
Assim, também, o foi encontrar uma jovem médica que o veio observar com as primeiras perguntas, no tom de quem vem de recado pensado.
Perguntas a aviar, é bom que se diga, pelo menos foi o que lhe pareceu a ele uma abordagem daquelas, e como tal, com respostas prontas é que a devia despachar. Estropiadas ou não, respostas prontas e o rosto eternamente apontado para uma vastidão qualquer. Seria realmente uma vastidão, um espaço ermo, para onde olhava? Pouco importa. Horizonte, interrogação ou nada, era nessa direção que ele estava a responder ao exame e infelizmente com o descanso e a irresponsabilidade que eram de prever, parecia anotar a médica pela maneira de o escutar, pelo insólito dos desacertos com que ele correspondia ao diagnóstico que lhe tinha sido atribuído, conformava a médica com o silêncio do olhar, claro, tudo certo, tudo conforme, «agora», despediu-se ela, «o que é preciso é pôr-se bom depressa para voltar a escrever. De acordo?»
Escrever?
O que restaria de mim no homem que ficou para ali estendido à espera de coisa nenhuma?
O mal acabaria por vencer. José Cardoso Pires foi atingido, no ano seguinte, por novo acidente vascular cerebral que lhe roubou a vida.

Texto retirado do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, do livro a integrar no Processo de candidatura da Relação médico doente a Património Imaterial da Humanidade.

domingo, 3 de fevereiro de 2019



RELACÃO MÉDICO-DOENTE


NA LITERATURA PORTUGUESA


 FERNANDO NAMORA




Fernando Gonçalves Namora nasceu em Condeixa-a-Nova, em abril de 1919 e faleceu em Lisboa, em janeiro de 1989. Licenciou-se em Medicina, em Coimbra. Como escritor, fez parte da geração de 1940, juntamente com Carlos de Oliveira, Mário Dionísio, Joaquim Namorado e João José Cochofel. Exerceu Medicina em regiões rurais da Beira Baixa e Alentejo. Fixou-se mais tarde em Lisboa, como médico do Instituto Português de Oncologia. 
Foi um dos fundadores da Sociedade Portuguesa de Escritores Médicos.
É autor de uma extensa obra que se repartiu pela poesia, pelo conto, pelo romance e pelas crónicas de viagem. Aventurou-se também pela pintura, chegando a ser premiado nessa forma de arte.
Neste trabalho despretensioso sobre o modo como é tratada a relação entre médicos e doentes na literatura portuguesa, cito quatro prosadores médicos. Deixo, agora, Amato Lusitano de parte, por não ser ficcionista. Entre todos, foi claramente Fernando Namora quem mais se preocupou em aprofundar a questão. Três dos seus romances (Retalhos da vida de um médico (1949), O Homem disfarçado (1957) e Domingo à tarde (1961) têm médicos como protagonistas. No entanto, o relacionamento do clínico com os seus pacientes é bem aparente ao longo de boa parte do resto da sua obra.
Nela, o médico procura olhar-se a si próprio e olhar os doentes e, ainda, ver-se a si mesmo pelos olhos deles. É que somos todos animais de grupo e dependemos da impressão que os outros formam de nós.  Será isso que nos leva a fingir e pretender ser outra coisa, para abrigar a alma de olhares alheios. É a esse tipo de atitude que Fernando Namora designa como o uso da máscara social.
A doença coloca os humanos em situações de fragilidade e leva muitos doentes a pôr de lado as máscaras e a olhar o clínico nos olhos. O abandono do fingimento permite uma aproximação especial entre médicos e doentes.
 … esta relação íntima e o contexto dramático da doença (com a iminência da morte) potenciam a autenticidade, a queda das máscaras sociais e a revelação do verdadeiro “eu”.
O tema é recorrente na sua escrita. Em “Retalhos da vida de um médico”, Fernando Namora relata a sua experiência clínica em pequenas povoações do interior do país. As narrativas correspondem ao início da sua vida profissional.
Eu queria lutar com desespero contra a doença, chamá-la a mim, vigiá-la infatigavelmente; reanimar de vida esse corpo vencido. Mais soro, mais tónicos, tudo o que havia à mão. Foram horas de febre, às vezes de desalento, outras de esperança, ao lado do inimigo que se apoderava irresistivelmente duma vida.
Escreve, mais adiante:
Precisava de persistir. E entreguei-me a cada doente que me procurava com um ardor desesperado. Dias e noites, a horas escusas, faminto de êxito e simpatia, ia rondar o sofrimento, animar os impacientes, oferecer-me inteiro à vida alheia”.
O médico parece sentir a dor dos que lhes pedem ajuda.
Contudo, também ele usa a máscara social. O protagonista de “O homem disfarçado” tem “como principal objetivo ver-se a si próprio com clareza, livrar-se de uma carga de simulações.
Namora escreveu, em “A vacina”:
Tem sido de há muito minha convicção de que ao médico não bastam a sabedoria universitária, as patologias dos livros, a argúcia clínica que as desvenda e subjuga; o humanismo perspicaz, comovido, diligente, do velho médico de família, legenda romântica da nossa infância, continua válido se o pudermos ajustar às coordenadas atuais – e, em muitas circunstâncias, é ele que substitui a droga no seu objetivo de dar esperança e alívio a quem o sofrimento desesperou. Deseja-se ao médico uma sólida consciência profissional, pois não há missão tão eriçada de responsabilidade – mas que não falte, nesse complexo de virtudes, a que advém de um homem lúcido e sensível que se disporá oferecer a outro a simpatia humana que pode traduzir-se sob várias e sempre fecundas expressões. A atmosfera do ato médico é, antes do mais, um diálogo entre dois homens – o que ouve, decifra, decide, em quem se confia, e o que não pode ser repelido ou defraudado na sua necessidade de proteção. O êxito da terapêutica muito depende, pois, da maneira como o médico, mestre desse diálogo, o faz desenrolar.
Em “Domingo à Tarde”, Fernando Namora disserta sobre a incapacidade de comunicação com os doentes. Nesse romance, o seu personagem principal é um médico de um hospital de Lisboa que se refugia na distância e no isolamento. Pouco fala com os enfermos – limita-se a resmungos e a acenos de cabeça.
Trata-se de um oncologista desanimado com a eficácia limitada do seu arsenal terapêutico. Fernando Namora retrata um personagem ao contrário do que ele acredita deverem ser os médicos: um clínico azedo, solitário, cético e pouco esperançoso, mostrando dificuldade em distinguir pieguice de ternura
A redenção do oncologista dá-se pela influência de Clarisse, doente incurável, uma espécie de santa padroeira que o convence da importância da solidariedade e da compreensão da parte de quem socorre os humanos em sofrimento.
Clarisse ajuda o médico a pôr a máscara de lado e a voltar ser ele mesmo. Ela afasta também os seus disfarces. Modifica-se, ao saber que sofre de leucemia. Escreve Namora:
horas depois, quando entrei no laboratório, fui encontrá-la num banquinho baixo, quase aninhada, a fazer perguntas assustadoramente ingénuas à minha assistente.
Ela própria confessa, no seguimento do livro:
Nada tenho dentro de mim a não ser o medo.
O comportamento da doente acaba por alterar a atitude do clínico, que entende que ele e os pacientes navegam na mesma embarcação, enfrentam o mesmo inimigo e têm os destinos chegados. O doente depende do seu doutor, mas o médico compreende que a sua vida só faz sentido enquanto for capaz de transmitir a quem sofre carinho e compaixão. Não se trata apenas de sentir, mas também de mostrar que se sente. O médico deve pôr a máscara de lado.
Em “Estamos no Vento”, Namora retoma um dos seus temas favoritos: a doença põe à mostra a autenticidade humana enquanto a proximidade da morte torna o fingimento quase impossível.
A medicina continua a não se bastar com os manuais, indo sempre mais dentro do homem para o entender na saúde e na doença, sabendo que esta, por lhe afrouxar as resistências, não raro desvenda o que até aí se dissimulara em disfarces.
A prática médica é, fundamentalmente, uma relação entre pessoas.
Em algumas aldeias portuguesas, pouco terá mudado nos três quartos de século que separam os textos de Júlio Dinis e Fernando Namora. O consultório permanece arredado do quotidiano. O internamento hospitalar é uma possibilidade distante. As pessoas adoecem, são tratadas, melhoram ou pioram, e, quando lhes calha a vez, agonizam, nas próprias casas. As consultas médicas são predominantemente domiciliárias. Os meios auxiliares de diagnóstico constituem uma referência afastada. Para o diagnóstico, o médico apoia-se no próprio saber e na observação meticulosa dos doentes.
O contacto com o sofrimento, o desalento e até o desespero, terá tornado confessional a escrita de Fernando Namora.
Segundo Eduardo Lourenço, irmão de um médico que me calhou operar e de quem fui amigo, Namora foi um dos que esteve sempre «em uníssono com as dores do mundo”.
A minha experiência profissional teve início decorridos vinte anos sobre a publicação da primeira edição de “Retalhos da vida de um médico” e desenrolou-se durante quatro décadas. Aconteceu em meio urbano, em ambiente hospitalar, com possibilidades de recurso a meios complementares de diagnóstico cada vez mais sofisticados. Reler Fernando Namora, o escritor português que mais páginas dedicou ao relacionamento entre médicos e doentes, transportou-me a um tempo que me parece pertencer a um mundo mais antigo.
Julgo ter entendido, ao longo da vida, a necessidade de estar perto dos doentes e de lhes fazer sentir a minha solidariedade com palavras, gestos e atitudes. Raramente me terei deparado, contudo, com a tal “máscara social” com que Fernando Namora tanto se preocupou. Poderá faltar-me sensibilidade para esse tipo de visão das relações humanas. Sinto-me, porém, tentado a considerar que ela constitui essencialmente uma realidade literária. Quanto muito, Namora terá feito generalizações a partir de uma ou outra experiência mais marcante da sua vida clínica


Texto retirado do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, do livro a integrar o Processo de candidatura da Relação Médico Doente a Património Imaterial da Humanidade.


sábado, 2 de fevereiro de 2019



RELAÇÃO MÉDICO-DOENTE


NA LITERATURA PORTUGUESA


  VIRGÍLIO FERREIRA




Virgílio Ferreira nasceu em Melo, na Serra da Estrela, em 1916, e morreu em Lisboa, em 1996. Chegou a frequentar o seminário do Fundão, mas acabou por se licenciar em Filologia Clássica, em Coimbra. Começou por aderir ao neorrealismo, porém depressa se deixou influenciar pelos existencialistas franceses André Malraux e Jean-Paul Sartre. O existencialismo já está bem patente na sua obra “Mudança”, de 1949.
Virgílio Ferreira escreveu 47 livros. É considerado um dos mais importantes romancistas portugueses do séc. XX, tendo ganho vários prémios de literatura. Foi, ainda, professor de Português e Latim em várias escolas do país.
Em “O nome da terra”, o escritor aborda a questão do consentimento informado. Na decisão da amputação da perna, o personagem, que fala na primeira pessoa, reclama ser ouvido. Considera que os médicos deram pouca importância à sua opinião. “Falam da minha perna com ela não fizesse parte de mim”. Sem o referir expressamente, o escritor deixa transparecer a falta de diálogo entre o médico e o doente.
Estou num quarto de hospital e o médico diz-me:
− Temos de lhe amputar a perna, como sabe. É coisa simples.
− Gostava de ver a minha perna depois.
− Mas é uma tolice. É uma coisa mórbida. Nem vai poder vê-la, ter a compreensão disso.
− Gostava.
Escreve, noutra página:
A gente chega ao fim, que é quando já não tem embalagem para haver mais futuro.
− E como é que começou?
Olhava a minha perna enquanto era minha e tinha uma pena triste.
Um dia fui fazer um eletrocardiograma e o médico perguntou-me?
− Não tem os dedos dos pés enegrecidos?
Que pergunta. Não tenho, doutor. Nunca tinha reparado mas disse não tenho, talvez para inclinar o destino a meu favor.


Texto retirado do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, do livro a integrar no Processo de candidatura da Relação médico doente a Património Imaterial da Humanidade.






sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019



RELACÃO MÉDICO DOENTE


  NA LITERATURA PORTUGUESA


  MIGUEL TORGA




Adolfo Coelho da Rocha, que adotou o pseudónimo literário de Miguel Torga, nasceu em S. Martinho de Anta, em 1907, e morreu em Coimbra, em 1995. Filho de um agricultor modesto, trabalhou durante a adolescência na fazenda do seu tio José, no Brasil. Foi o tio quem lhe pagou os estudos de Medicina, em Coimbra.
Ainda me lembro da placa do seu consultório, no Largo da Portagem, na mesma cidade.
Não são frequentes as referências a médicos nem a doentes nos textos de Miguel Torga. Depois de muito procurar, encontrei no IX Diário a nota que transcrevo. Foi escrita em S. Martinho de Anta, a 26 de dezembro de 1960. Por essa altura eu, caloiro de Medicina, comemorara em Coimbra um Natal triste, frio e chuvoso.
Consultas e mais consultas a esta pobre gente, que parece guardar as mazelas durante o ano para quando eu venho. Ausculto, apalpo, dou os remédios e prometo a cura. Mas acabo por me sentir o verdadeiro beneficiário do bodo clínico. Reencontro nele o gosto do ofício, que a cidade tem progressivamente amortecido. Há um lance no exercício da profissão que sempre me apaixonou: a anamnese. O relato dos padecimentos, feito pelo doente à cordialidade inquisidora do médico. É ele o grande momento humano do ato clínico. O instante em que o abismo se abre ou não abre, a verdade que vem à tona ou não vem, se realiza ou não o encontro da aflição com a piedade. A civilização tornou quase impossível esse rasgar de trevas, essa entrega total e confiada da alma dorida ao desvelo hipocrático. A conjugada ação de mil forças inibidoras invalida a instintiva ânsia reveladora do sofrimento. Cada palavra diz outra coisa, cada queixume vem mascarado. As conveniências sociais, a covardia, a suspicácia e o hábito arreigado de hipocrisia impedem qualquer sinceridade. E o infeliz facultativo cansa-se e degrada-se no consultório a interrogar clientes de má-fé. Nenhum talento, nenhuma cultura, nenhuma autoridade, nenhum ardil conseguem desfazer a ambiguidade da confissão, que acaba sempre por ser uma longa mentira premeditada. Ora, no camponês, tudo se passa doutra maneira. Dono dum campo de consciência restrito, virgem ainda nas reações, quando adoece todo ele se concentra na observação dos sintomas do mal que o rói, e descreve-os depois objetivamente, com a candura dum primário e a precisão dum cientista. Sem falsos pudores, sem perturbadoras interferências, faz um relato leal e vigoroso da enfermidade. E é uma aventura emocionante e dignificadora acompanhá-lo pelas veredas da angústia, o apelo e a solicitude de mãos dadas, fraternos, a caminho da desilusão ou da esperança.
Não deixa de ser curioso anotar a preocupação de Miguel Torga com o abandono das máscaras sociais, tão cara a Fernando Namora, como veremos adiante.

Texto retirado do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, do livro a integrar no Processo de candidatura da Relação médico doente a Património Imaterial da Humanidade.