Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

terça-feira, 21 de abril de 2020



 LIBERDADE

V

 O MEU 25 DE ABRIL

      Volto aqui a apresentar um artigo que publiquei neste blogue em junho de 2011.


                        O MEU 25 DE ABRIL


A 25 de Abril de 1974, levantei-me cedo. A  minha mulher tinha uma visita de estudo marcada para Coimbra e tencionava levar com ela a nossa filha mais velha. A Cláudia, que era mais nova, foi comigo para S. José. 
Cheguei ao hospital por volta das oito e meia. Estranhei ver tantos carros de colegas estacionados junto ao Serviço 10. Quando entrei na sala dos médicos, já lá estava muita gente.
- Não sabes o que se está a passar? - perguntou-me o Ventura.
Eu não tinha ligado o rádio. Disse que não.
- Está a decorrer uma rebelião militar contra o governo. Os revoltosos intitulam-se Movimento das Forças Armadas. Dizem que estão a conseguir tomar conta dos pontos estratégicos de Lisboa.
Seguimos durante alguns minutos as notícias da rádio. A situação parecia indefinida. Eu e o Carlos Durão Maurício tínhamos operações marcadas para essa manhã. Resolvemos deixar uma das marquesas do bloco vaga para uma urgência eventual e fomos trabalhar na outra. A Cláudia ficou entregue às enfermeiras.
Quando acabámos de operar, eram horas do almoço. Ouvimos as notícias. O Movimento das Forças Armadas progredia no terreno. Não tinha dado entrada no Banco de S. José qualquer ferido de guerra.
Como não sabia como estava o caminho, aceitei o convite do Maurício para almoçar em casa dele.
Havia perto um quartel da Guarda Republicana e a situação continuava tensa. Enquanto o Maurício estacionava o automóvel, toquei à campainha. A Marilda perguntou, pelo intercomunicador:
- Quem é?
Perdi uma ocasião magnífica de parecer sensato. Respondi, com voz grossa:
- É a PIDE!
Quando subi ao terceiro andar, arrependi-me da piada. A esposa do meu colega e amigo tinha perdido o controlo dos nervos e estava lavada em lágrimas. Não teria grande coisa a recear da Polícia Política, mas aquele não era um dia como os outros e as pessoas andavam nervosas.


Tentei telefonar para casa, sem êxito. Não sabia da minha mulher e da minha filha mais velha, nem elas de nós. Após um almoço improvisado mas agradável, meti-me no carro e conduzi até perto da ponte sobre o Tejo, para me inteirar das condições de trânsito. O percurso estava livre. Fui buscar a Cláudia e regressei a casa. A viagem foi normal. Parecia nada estar a acontecer no País. 
A São e a Marisa nem tinham chegado a sair de Setúbal. Chegara a notícia do levantamento militar e a visita de estudo fora cancelada.
Acho que, para compensar a gaffe do fim da manhã, me portei bem durante o resto do dia. A perspectiva da queda do velho Estado Novo entusiasmava quase toda a gente. No entanto, em vez de ficar especado em frente à televisão, que era o que me apetecia, cumpri o meu dever e fui trabalhar.Tinha umas tantas visitas domiciliárias a doentes da Caixa de Previdência à minha espera. A festa foi adiada algumas horas.


segunda-feira, 20 de abril de 2020





DEUSA COBRA





Adquiri há algum tempo e contra a opinião da minha mulher uma escultura em pedra julgo que se trata de calcário a um antiquário alentejano. Tem dois palmos de altura por três de largo e é bastante pesada. Foi com esforço que eu e o vendedor a introduzimos no porta-bagagem do automóvel.
Nunca tive uma peça tão bela e não voltarei a ter outra assim. É uma deusa serpente. Tem uma cabeça de mulher e outra de cobra. Raras pessoas terão tido o privilégio de admirar coisa parecida.
 Ao longo dos meses, conforme o tempo disponível, vasculhei a Internet à procura de informação. A bibliografia sobre deusas serpentes na Península Ibérica é abundante, mas não encontrei qualquer imagem de escultura igual ou semelhante.
Os gregos antigos chamavam à Península Ibérica Ofiusa, terra de serpentes. Em Portugal e em Espanha, abundam as lendas sobre cobras, dragões e mouras. Estas mouras (de que são bem conhecidas lendas em Mértola e em Palmela) têm muitas vezes formas híbridas, metade mulher e metade serpente e estão habitualmente relacionadas com a água (fontes e cavernas). Melusina é outra figura conhecida nas lendas europeias. Trata-se de um espírito feminino também híbrido que habita na vizinhança de rios e fontes sagradas.
Julga-se que aos habitantes originais da Península Ibérica se foram juntando, entre o oitavo e o sexto século antes de Cristo, povos indo-europeus de origem celta, conhecedores da metalurgia do ferro. Os celtas trouxeram para cá o seu panteão de deuses, incluindo nele o culto da serpente. No entanto, a serpente era já um mito pan-mediterrâneo. Tratou-se, assim, de uma reinoculação. O culto celta da serpente misturou-se provavelmente com outros rituais há muito estabelecidos na Península.
A serpente é olhada de modos diferentes nas lendas antigas. Representa, em alguns casos a evolução cíclica da Natureza. Trata-se de um animal que aparece e desaparece e que muda de pele. Oculta-se na terra durante o tempo frio, para regressar na primavera. Torna-se um símbolo da morte, antes de se associar à ideia de ressurreição. Será por isso a insígnia da Medicina.
É muitas vezes considerada um símbolo de fecundidade. Tanto é vista como uma figura benéfica (traduzindo eventualmente o culto residual da Deusa Mãe) como é apresentada como representação do diabo, na tradição judaico-cristã. Nas mitologias europeias chega a ocupar o lugar de um deus polivalente. Umas vezes reina sobre o mundo subterrâneo, o lugar dos mortos. Outras, superintende à música e à magia. Noutros locais, ajuda a cuidar do gado e a preservar a saúde.
                                                                         




RELÍQUIAS RADIOLÓGICAS


Material usado nos Capuchos para Neurorradiologia


A quarentena deu tempo para arrumar a garagem. Encontrei estas relíquias. Foram registadas no Serviço de Neurocirurgia do Hospital dos Capuchos, em Lisboa, na década de 60.


                   Aneurismas gigantes


                                        M.A.V.?
Quando entrei para o Internato de Neurocirurgia em julho de 1973, para fazer carreira na Especialidade era necessário, para além das habituais qualidades cirúrgicas, ter jeito para puncionar carótidas.                                                                                         
             Trombose da artéria carótida interna
A instauração da Neurorradiologia, com o trabalho pioneiro do meu amigo Costa Reis, iria tardar alguns anos.



                Selas turcas alargadas por adenomas
Tal como os outros neurocirurgiões da época, executei um número considerável de exames radiológicos.
Estimo o total em cerca de um milhar. Deixei de os registar em 1977, quando já passavam dos 600. Predominavam as angiografias carotídeas, seguidos das mielografias. Executei algumas 50 encefalografias gasosas e um número mais reduzido de ventriculografias e de angiografias da vertebral por punção direta.

Fase arterial




                                      Fase venosa                                                            
 As angiografias vertebrais surgiam por vezes inadvertidamente, quando se procurava puncionar a carótida comum. No entanto, detínhamos muito treino  e lembro-me de ter conseguido obter algumas intencionalmente.
Nós não fazíamos as ventriculografias com ar, mas com contraste positivo




 Era preciso processar as imagens. Julgo que nenhum destes estabelecimentos existe atualmente.



As imagens apresentadas são do tempo dos doutores Moradas Ferreira,  Cunha e Sá, César Freire de Andrade, Alvaro Athaíde e Vasconcelos Marques. Tive o privilégio de trabalhar, durante alguns anos, com os dois últimos.
Algumas películas têm manuscrito nos invólucros o nome dos doentes e os serviços onde estavam internados, mas não sou capaz de identificar as caligrafias.