quinta-feira, 3 de novembro de 2011


                            PAI E FILHO

O senhor Filipe (o nome verdadeiro é outro) teria cerca de 25 anos quando foi internado no Serviço de Neurocirurgia do Hospital dos Capuchos. Vinha da Urgência de S. José, onde fora admitido na véspera por hematoma intracerebral espontâneo.



A anamnese não forneceu dados relevantes e a angiografia não mostrou sinais de anomalia vascular.
Os hematomas temporais têm má fama. Quando o efeito de massa aumenta, leva ao encravamento rápido do uncus e ao coma muitas vezes irreversível. Este era do lado direito e não se acompanhava de alterações do estado de consciência nem de défices neurológicos aparentes. Resolvi intervir e conversei com o doente para obter o seu consentimento. Olhou-me com olhos de carneiro que vai para a degola, mas aceitou a operação.
A cirurgia foi simples e a recuperação rápida. Os exames neurorradiológicos de controlo foram normais. Aos sete dias, dei-lhe alta e passei a segui-lo em consulta externa.
Apesar de casado, vinha sempre acompanhado pela mãe, com quem tinha uma ligação muito forte. Os testes neuropsicológicos detetaram um compromisso da memória recente que, a perdurar, iria comprometer a sua atualização profissional. Estava deprimido e teve de ser medicado nesse sentido.
Apenas na segunda consulta entendi a razão de ser da sua falta de esperança. O homem estava à espera da morte e não acreditava nas minhas palavras quanto ao prognóstico. Achava que eu mentia para o não assustar. Lá me revelou um facto que ocultara na anamnese de entrada: o pai fora operado por mim de glioblastoma cerebral anos antes e falecera em menos de um ano. Contava ter o mesmo destino.
Passou muito tempo, mas ainda aparece na minha consulta de vez em quando. Nunca perdeu o olhar triste.

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