O SÉTIMO CÃO
Levo
cada noite o Sebastião a passear no jardim. É o meu sétimo cão.
Li em
tempos (já não sei onde) que um homem tem seis ou sete cães antes de morrer.
Conto
bastantes anos e não poderei viver muitos mais. Não me aflijo com isso.
Considero que soube viver e tenho esperança de saber também morrer.
Vou
caminhando.
O
vento comunica a própria ansiedade aos ramos dos arbustos. Aprenderam cedo a
dobrar para não quebrarem.
Lembro-me bem dos cães que tive. Estimei-os e fui estimado por eles.
Irei
falar de cada um sem entrar em grandes pormenores para não entediar os leitores.
O Leão
foi o primeiro dos meus cães. Era um Pastor da Serra da Estrela. Por essa
altura, eu ia nos quatro ou cinco anos de idade e morava em Almendra. Morreu
atropelado por um camião. Não haveria muito trânsito na terra e o animal não
chegara a desenvolver as competências que lhe permitiriam evitar esse tipo de
ameaças.
Decorreu
quase uma dezena de anos até que voltássemos a ter outro cão. Tratou-se, aliás,
duma cadela. Era uma Leoa da Rodésia e chamava-se Diana. O meu pai adquiriu-a
na Estação Zootécnica, que ficava próxima do Lubango. Sempre tratámos bem os
animais, mas a Diana chegou-nos já com uma fobia. Se calhava ouvir um tinir de
correntes, fugia para longe e tardava a voltar. Imagino os tratos que lhe deram
quando era pequenina para lhe magoarem tanto a memória.
Perdemo-la
na caça, perto da nossa fazenda do Gando. Dessa vez, não houve tinir de
correntes que a amedrontasse. Esperámos algumas horas por ela, antes de
desistirmos de a chamar. Terá sido atacada por algum animal bravio e poderoso.
Os leopardos, naquele tempo, abundavam na região.
Eu era já
casado e tinha duas filhas quando me ofereceram o Snoopy. Suponho que, à época,
esse seria um dos nomes de cães mais frequentes. Era então muito popular nos
jornais a banda desenhada do Charlie Brown. O Snoopy era vagamente “pequinois”
e foi sempre mais cão das meninas que meu. Acompanhava a minha mulher até à
entrada do mercado. Como não era autorizado a entrar, deitava-se à porta e
esperava que a dona saísse.
Naquele
tempo, os cães andavam soltos na rua. Seriam muitos e causariam incómodos, para
além da sujeira. As câmaras municipais tinham empregados que se ocupavam em os
capturar. Após umas semanas no canil, os que não fossem reclamados eram
abatidos. Os funcionários estendiam redes que iam dum lado ao outro da rua, mas
os animais mais leves e mais ágeis saltavam-lhes facilmente por cima.
O
Snoopy viveu 12 anos. Morreu de leishmaniose, a doença que já o cegara. Quando envelhecera e enxergava pior, deixou-se apanhar duas vezes pela rede da
câmara. Fui busca-o ao canil municipal. Enquanto os “colegas” se entretinham a
brincar ou a discutir, dei ambas as vezes com o cãozinho de focinho encostado à
porta de rede, à espera de que alguém o viesse libertar.
A sua
morte desencadeou em nossa casa uma espécie de tragédia. Imaginei que as minhas
filhas iriam chorar de forma semelhante quando chegasse a minha vez de partir.
O
Brutus era um Boxer com alguns atropelos na linhagem. Tinha o focinho mais
comprido e o corpo mais avantajado que os espécimes de raça pura. Coexistiu com
o Snoopy durante mais de um ano. Embora fosse muito mais corpulento do que ele,
reconhecia-o como chefe. O mais pequeno tinha a hierarquia em grande apreço e
apreciou devidamente a promoção tardia.
Nunca
na vida tinha comido tanto. Empanturrava-se, para deixar ao subalterno a menor
quantidade possível de ração. O Brutus aguardava pacientemente a sua vez.
Na
rua, o cãozinho, que fora sempre humilhado pelos animais mais corpulentos,
assumiu plenamente a qualidade de chefe de matilha e conheceu o seu período de
glória.
Com as
costas quentes, deu em valentão. Provocava ruidosamente os adversários. Quando
a luta começava ele, que já enxergava mal, mordia as pernas que lhe passavam
mais perto dos dentes. Ocasionalmente, eram as do Brutus.
O
Snoopy era um animal inteligente, mas desviava a esperteza essencialmente para
a maldade. Era um delator. Quando eu entrava na sala de estar, dirigia-se a mim
a ladrar furiosamente para fazer queixinhas: o Brutus deitara-se outra vez no
sofá de couro. O Boxer abanava a curta cauda (não fui eu quem lha mandou
cortar) e disfarçava. Se soubesse, assobiaria.
Era um
cão muito manso. Aliás, nunca tive um animal bravio. Cada um tem o seu feitio,
que é depois condicionado pelo modo de vida que lhe é imposto. Se se prende
um animal a um poste e se deixa ficar ali sozinho durante todo o dia, é natural
que acabe por ganhar raiva ao mundo ou, pelo menos, a estranhos.
A dada
altura, a minha sobrinha Mércia atravessou um período difícil na vida e
refugiou-se em nossa casa. Andava angustiada. A ansiedade dos donos
transmite-se facilmente aos animais de estimação.
Certa
tarde, a Mércia saiu com o cão. Naquele tempo, eram raros os animais que
seguiam à trela. Ao cruzar-se no passeio com um transeunte, o homem voltou-se e
gritou:
-
Menina! O seu cão mordeu-me!
- O
cão não morde.
-
Então o que é isto?
E
exibiu indignado a arranhadela provocada pelos dentes do Brutus.
Este
cão morreu cedo, também de leishmaniose.
Adquiri
então um Boxer que os entendidos consideravam puro. Devo deixar claro que,
tanto quanto sei, apenas os humanos se interessam pela pureza das raças
caninas. Os animais contentam-se com a avaliação da estatura e do tamanho dos
dentes dos “colegas”.
As
minhas filhas quiseram que se chamasse também Brutus. Ficou conhecido como
Brutus Segundo. Por essa altura, era já obrigatório o uso de trela. Já nos
tínhamos mudado para a casa dos Arcos e eu andava preocupado por me acusarem de
estar a engordar. Resolvi fazer mais exercício físico. Eu e o cão
atravessávamos em cada começo de noite o jardim da Algodeia e dávamos três
voltas ao Parque do Bonfim. Levaríamos meia hora, em passo apressado.
O
Brutus Segundo era um cão meigo, afetuoso e impulsivo. Se avistava um gato,
procurava atirar-se a ele. Comentava um vizinho, que também costumava levar o
seu cãozinho à rua:
- Não
sei como é que ele não lhe arranca um braço…
Calhou
ganhar medo a dois cães de raça indefinida que pertenciam a um sem-abrigo que
circulava por ali à noite, empurrando um carrinho de supermercado em que
transportava os seus escassos bens. Pernoitava no vão duma casa abandonada no
lado Sul do parque.
Certa
noite, demos com ele caído na calçada do passeio. O carrinho de mão estava ao
lado, mas os cães tinham-se afastado. Aproximei-me. O homem tinha os olhos
abertos, mas não falava. Pareceu-me que mexia com dificuldade os membros
direitos.
Não se
via mais ninguém na rua. Corri até casa para buscar o telemóvel e marquei o
112. Fizeram-me uma série de perguntas. Estariam habituados a brincadeiras de
mau gosto e procuravam certificar-se da veracidade da urgência.
Quando
cheguei de novo ao pé do sem-abrigo doente, já se encontrava a seu lado uma
mulher de meia-idade com quem eu me cruzava frequentemente. Contou-me então que
era religiosa e que dava algum apoio àquele pobre diabo. A carrinha do INEM
pouco tardou e os socorristas transportaram o doente para o hospital. Soube que faleceu um par de meses mais tarde,
sem chegar a ter alta hospitalar. Ignoro o que aconteceu aos seus animais de
estimação.
O
Brutus Segundo ainda durou mais algum tempo. A dada altura, perdeu a alegria e o
viço, como se tivesse envelhecido rapidamente. Até os olhos perderam parte do
brilho. Contava oito anos. O veterinário pouco foi capaz de fazer. O
diagnóstico foi mais uma vez de leishmaniose. Dizem que é a doença que vitima
mais cães e gatos na Península Ibérica. Existe uma vacina, para, para já, não é
tão eficiente quanto seria desejável. Atinge também os humanos. É então mais
conhecida por Kalazar.
Habito
uma moradia e não é apenas o gosto pelos animais que me leva a ter cães.
Contribuem também para a segurança da casa. Dão sinal da presença de estranhos
e têm um efeito dissuasor.
Porcos
meses após a morte do segundo Brutus, um colega meu separou-se da mulher.
Moravam numa vivenda e foram forçados a vendê-la. Tiveram de se desfazer dos
cães. Calhou-me ficar com a Azeitona. Era outra Leoa da Rodésia, mas bem mais
corpulenta do que a Diana.
Foi-me
oferecida, mas antes de chegar a casa já me custara 100 euros. Com a ansiedade
de se afastar do dono, meteu o focinho num dos vidros detrás do automóvel, que
estava entreaberto, e quebrou-o.
Nunca
pensei que se pudesse adaptar à nova casa e aos novos donos com tanta
facilidade. Julguei perceber que os cães respeitam a hierarquia e tem
necessidade de um dono. Tornei-me, quase de imediato, o seu chefe substituto.
A
Azeitona era uma linda cadela. Tratava-se de um animal magnífico, poderoso e
muito meigo. Tivera duas ninhadas de cachorros, antes de ser esterilizada.
Habituou-se
a dormitar no meu gabinete enquanto eu escrevia.
Viveu
feliz connosco (e nós com ela) até desenvolver incontinência urinária. A falta
de higiene e o correspondente mau cheiro levou-nos a evitar a sua entrada em
casa. Ficou confinada ao pequeno quintal.
Soube
por essa altura que a seleção dos Leões da Rodésia se fazia tendo em conta a
presença do redemoinho de pelo na região lombar. Ora, esse vórtice costuma
estar associado à espinha bífida e alguns destes animais sofrem cedo de
incontinência urinária. Dito de outro modo, os criadores escolhem os cães
piores. As gravidezes sucessivas parecem contribuir para agravar o problema.
A
Azeitona morreu por tido engolido ossos inteiros que se alojaram no estômago,
sem que fosse capaz de os digerir ou eliminar. Deixou saudades.
O
sétimo cão é o Sebastião. É filho de uma cadela de raça Spaniel Breton e de um Setter inglês. A Wikipedia, reconhecida
especialista em má-língua, garante que a mãe do cão não é espanhola nem bretã.
A raça é originária do noroeste de França. Será o cão de tiro mais popular
nesse país. Vive em média 11 anos. O meu animal conta já oito.
Embora
me tenha sido oferecido, é, de acordo com a minha mulher, o cão mais caro de
todos os que tive. A opinião dela tem algum suporte: o dono dos pais dele é
antiquário perto de Grândola. Cada vez que passo no Bairro do Isaías, deixo lá
algum dinheiro.
Trata-se
de um cão bonito, de estatura média. Tem por defeito maior ser simpático
demais. Gosta de toda a gente e, especialmente de crianças. Se alguém assaltar o quintal onde pernoita na
sua casota, julgo que não se importará de abanar o rabo ao gatuno. Seria mesmo
capaz de lhe oferecer um cafezinho. A caraterística mais notória que encontro
nele é ser capaz de sorrir. Não conheço outro bicho assim.
Será
curioso referir que não tive um favorito entre os meus cães. Foram todos bons
amigos.
Segundo
as estatísticas, o Sebastião será o último. Não gostaria de morrer antes dele.
Não se trata de egoísmo. Havia de me custar muito deixar o cão sem protetor.