Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

      MÉDICOS: NEM DEUSES, NEM DEMÓNIOS

 

   Foi apresentada no sábado passado no auditório da Ordem dos Médicos em Lisboa  a obra coletiva "Médicos: nem deuses, nem demónios". 

A ideia de produzir este livro nasceu durante uma conversa com o Professor José Manuel Mendes, presidente da Associação Portuguesa de Escritores. Faria falta, ou pelo menos, poderia ser bem-vindo um terceiro volume de “Deuses e Demónios da Medicina” de Fernando Namora. Foram minhas a iniciativa e a coordenação do grupo de trabalho.

Namora, ilustre médico e escritor integrou durante vários anos os corpos gerentes da então SOPEM (Sociedade Portuguesa de Escritores Médicos) a que, em boa hora, se acrescentou o “A” de Artistas. 

Pareceu-nos razoável que a SOPEAM apadrinhasse a obra, que se pretendia ser coletiva. Contatou-se então um grupo de médicos ligados à SOPEAM ou à História de Medicina.

Foram estabelecidas algumas regras muito gerais tendentes a conseguir alguma homogeneidade para o conjunto do livro. Deixou-se, contudo, ao critério de cada autor a escolha do tema a abordar e o sistema ortográfico preferido. Ora, os médicos estão habituados a tomar sozinhos decisões difíceis, o que favorece o desenvolvimento de personalidades fortes. Não surpreende que a pretendida homogeneidade tenha cedido algum espaço à diversidade.

Este projeto levou tempo a implementar e, como acontece em muitos percursos, houve entusiasmos que esmoreceram e colaboradores que ficaram pelo caminho. Para compensar as falhas, dois dos autores redigiram mais de um capítulo.

Apresentamos assim uma obra coletiva de nove escritores médicos que prepararam biografias curtas de onze personagens importantes na História da Medicina. Curiosamente, dois destes não foram médicos: Leonardo da Vinci, o primeiro grande anatomista e o Abade de Faria, que, antes de todos,  procurou  estabelecer as bases científicas do hipnotismo.

 Alguns dos colaboradores deste livro foram professores universitários enquanto outros presidiram à SOPEAM. Um dos nossos articulistas foi Bastonário da Ordem dos Médicos. Todos têm obra publicada. José Manuel Mendes redigiu o prefácio.

Apresento a lista dos autores e os títulos dos capítulos:


     Baltazar Caeiro – Deuses e Demónios… … sempre haverá    

     Mª José Leal – Maimónides e os juramentos médicos                 

     António Trabulo - Leonardo, o Anatomista                             

     David de Morais - Amato Lusitano                                           

     Cristina Moisão - Zacuto Lusitano                                           

     Joaquim Barradas - William Harvey                                         

     Fortuna Campos – Feliciano de Almeida                                

     David de Morais – Abade de Faria                                          

     António Trabulo – Harvey Cushing                                         

     Carlos Vieira Reis – Elysio de Moura                                      

     António Trabulo – Josef Mengele                                           

     Germano de Sousa – Machado Macedo                                  


Excetuando o artigo do Dr. Baltazar Caeiro, que é intemporal, os capítulos foram alinhados por ordem cronológica de nascimento dos personagens estudados.

A publicação da obra foi subsidiada pelo Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos. 





sábado, 14 de outubro de 2023

 


               CAMILO E OS MÉDICOS


 


Por oferta gentil de António Barbedo, Psiquiatra e Poeta, recebi recentemente o grosso volume compilado pelo historiador médico Maximiano Lemos intitulado "Camilo e os Médicos" e publicado no ano de 2012 pela Seção Regional do Norte da Ordem dos Médicos. 

 O centenário do nascimento de Maximiano Lemos, celebrou-se há poucos dias. Teremos oportunidade de o lembrar no decurso da V Semana do Autor Médico, um encontro bienal  de escritores e artistas plásticos médicos que tive a iniciativa de organizar há alguns anos e que promete continuar. Irá decorrer na sede da Ordem dos Médicos, em Lisboa, de 21 a 28 do mês corrente.  Maximiano Lemos será a figura central deste evento.


Esta curta nota não se destina, porém, a homenagear Camilo Castelo Branco, de quem fui biógrafo e sou admirador quase incondicional, nem Maximiano. Pretende apenas registar mais uma referência elogiosa a este blogue. Passo a transcrever uma parte do prefácio da autoria de Miguel Guimarães, então Presidente do Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos e mais tarde Bastonário.  

Atente-se no que conta o ilustre colega António Trabulo que, em tempos de outros meios e de outras tecnologias se dedica, através do seu blogue ( ao qual, já agora aconselhamos uma visita), a continuar a obra de Maximiano Lemos.  “A 21 de maio de 1890, Camilo escreve ao oftalmologista Edmundo de Magalhães Machado, de Aveiro, rogando-lhe que o salve da cegueira. O médico desloca-se a Ceide a 1 de junho. Reconhecendo nada ser capaz de fazer pela visão do escritor, diz palavras de circunstância. Enquanto Ana Plácido acompanhava o médico à porta, Camilo suicidou-se, disparando um tiro de revólver na cabeça.”

Lembro que neste blogue foram já publicados 190 artigos originais e que o número das visitas ultrapassou os 135.000.




 

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

 

                          O SÉTIMO CÃO




Levo cada noite o Sebastião a passear no jardim. É o meu sétimo cão.

Li em tempos (já não sei onde) que um homem tem seis ou sete cães antes de morrer.

Conto bastantes anos e não poderei viver muitos mais. Não me aflijo com isso. Considero que soube viver e tenho esperança de saber também morrer.

Vou caminhando.

O vento comunica a própria ansiedade aos ramos dos arbustos. Aprenderam cedo a dobrar para não quebrarem.

Lembro-me bem dos cães que tive. Estimei-os e fui estimado por eles.

Irei falar de cada um sem entrar em grandes pormenores para não entediar os leitores.

O Leão foi o primeiro dos meus cães. Era um Pastor da Serra da Estrela. Por essa altura, eu ia nos quatro ou cinco anos de idade e morava em Almendra. Morreu atropelado por um camião. Não haveria muito trânsito na terra e o animal não chegara a desenvolver as competências que lhe permitiriam evitar esse tipo de ameaças.

Decorreu quase uma dezena de anos até que voltássemos a ter outro cão. Tratou-se, aliás, duma cadela. Era uma Leoa da Rodésia e chamava-se Diana. O meu pai adquiriu-a na Estação Zootécnica, que ficava próxima do Lubango. Sempre tratámos bem os animais, mas a Diana chegou-nos já com uma fobia. Se calhava ouvir um tinir de correntes, fugia para longe e tardava a voltar. Imagino os tratos que lhe deram quando era pequenina para lhe magoarem tanto a memória.

Perdemo-la na caça, perto da nossa fazenda do Gando. Dessa vez, não houve tinir de correntes que a amedrontasse. Esperámos algumas horas por ela, antes de desistirmos de a chamar. Terá sido atacada por algum animal bravio e poderoso. Os leopardos, naquele tempo, abundavam na região.

Eu era já casado e tinha duas filhas quando me ofereceram o Snoopy. Suponho que, à época, esse seria um dos nomes de cães mais frequentes. Era então muito popular nos jornais a banda desenhada do Charlie Brown. O Snoopy era vagamente “pequinois” e foi sempre mais cão das meninas que meu. Acompanhava a minha mulher até à entrada do mercado. Como não era autorizado a entrar, deitava-se à porta e esperava que a dona saísse.

Naquele tempo, os cães andavam soltos na rua. Seriam muitos e causariam incómodos, para além da sujeira. As câmaras municipais tinham empregados que se ocupavam em os capturar. Após umas semanas no canil, os que não fossem reclamados eram abatidos. Os funcionários estendiam redes que iam dum lado ao outro da rua, mas os animais mais leves e mais ágeis saltavam-lhes facilmente por cima.

O Snoopy viveu 12 anos. Morreu de leishmaniose, a doença que já o cegara. Quando envelhecera e enxergava pior, deixou-se apanhar duas vezes pela rede da câmara. Fui busca-o ao canil municipal. Enquanto os “colegas” se entretinham a brincar ou a discutir, dei ambas as vezes com o cãozinho de focinho encostado à porta de rede, à espera de que alguém o viesse libertar.

A sua morte desencadeou em nossa casa uma espécie de tragédia. Imaginei que as minhas filhas iriam chorar de forma semelhante quando chegasse a minha vez de partir.


O Brutus era um Boxer com alguns atropelos na linhagem. Tinha o focinho mais comprido e o corpo mais avantajado que os espécimes de raça pura. Coexistiu com o Snoopy durante mais de um ano. Embora fosse muito mais corpulento do que ele, reconhecia-o como chefe. O mais pequeno tinha a hierarquia em grande apreço e apreciou devidamente a promoção tardia.

Nunca na vida tinha comido tanto. Empanturrava-se, para deixar ao subalterno a menor quantidade possível de ração. O Brutus aguardava pacientemente a sua vez.

Na rua, o cãozinho, que fora sempre humilhado pelos animais mais corpulentos, assumiu plenamente a qualidade de chefe de matilha e conheceu o seu período de glória.

Com as costas quentes, deu em valentão. Provocava ruidosamente os adversários. Quando a luta começava ele, que já enxergava mal, mordia as pernas que lhe passavam mais perto dos dentes. Ocasionalmente, eram as do Brutus.

O Snoopy era um animal inteligente, mas desviava a esperteza essencialmente para a maldade. Era um delator. Quando eu entrava na sala de estar, dirigia-se a mim a ladrar furiosamente para fazer queixinhas: o Brutus deitara-se outra vez no sofá de couro. O Boxer abanava a curta cauda (não fui eu quem lha mandou cortar) e disfarçava. Se soubesse, assobiaria.

Era um cão muito manso. Aliás, nunca tive um animal bravio. Cada um tem o seu feitio, que é depois condicionado pelo modo de vida que lhe é imposto. Se se prende um animal a um poste e se deixa ficar ali sozinho durante todo o dia, é natural que acabe por ganhar raiva ao mundo ou, pelo menos, a estranhos.

A dada altura, a minha sobrinha Mércia atravessou um período difícil na vida e refugiou-se em nossa casa. Andava angustiada. A ansiedade dos donos transmite-se facilmente aos animais de estimação.

Certa tarde, a Mércia saiu com o cão. Naquele tempo, eram raros os animais que seguiam à trela. Ao cruzar-se no passeio com um transeunte, o homem voltou-se e gritou:

- Menina! O seu cão mordeu-me!

- O cão não morde.

- Então o que é isto?

E exibiu indignado a arranhadela provocada pelos dentes do Brutus.

Este cão morreu cedo, também de leishmaniose.

Adquiri então um Boxer que os entendidos consideravam puro. Devo deixar claro que, tanto quanto sei, apenas os humanos se interessam pela pureza das raças caninas. Os animais contentam-se com a avaliação da estatura e do tamanho dos dentes dos “colegas”.

As minhas filhas quiseram que se chamasse também Brutus. Ficou conhecido como Brutus Segundo. Por essa altura, era já obrigatório o uso de trela. Já nos tínhamos mudado para a casa dos Arcos e eu andava preocupado por me acusarem de estar a engordar. Resolvi fazer mais exercício físico. Eu e o cão atravessávamos em cada começo de noite o jardim da Algodeia e dávamos três voltas ao Parque do Bonfim. Levaríamos meia hora, em passo apressado.

O Brutus Segundo era um cão meigo, afetuoso e impulsivo. Se avistava um gato, procurava atirar-se a ele. Comentava um vizinho, que também costumava levar o seu cãozinho à rua:

- Não sei como é que ele não lhe arranca um braço…

Calhou ganhar medo a dois cães de raça indefinida que pertenciam a um sem-abrigo que circulava por ali à noite, empurrando um carrinho de supermercado em que transportava os seus escassos bens. Pernoitava no vão duma casa abandonada no lado Sul do parque.

Certa noite, demos com ele caído na calçada do passeio. O carrinho de mão estava ao lado, mas os cães tinham-se afastado. Aproximei-me. O homem tinha os olhos abertos, mas não falava. Pareceu-me que mexia com dificuldade os membros direitos.

Não se via mais ninguém na rua. Corri até casa para buscar o telemóvel e marquei o 112. Fizeram-me uma série de perguntas. Estariam habituados a brincadeiras de mau gosto e procuravam certificar-se da veracidade da urgência.

Quando cheguei de novo ao pé do sem-abrigo doente, já se encontrava a seu lado uma mulher de meia-idade com quem eu me cruzava frequentemente. Contou-me então que era religiosa e que dava algum apoio àquele pobre diabo. A carrinha do INEM pouco tardou e os socorristas transportaram o doente para o hospital.  Soube que faleceu um par de meses mais tarde, sem chegar a ter alta hospitalar. Ignoro o que aconteceu aos seus animais de estimação.

O Brutus Segundo ainda durou mais algum tempo. A dada altura, perdeu a alegria e o viço, como se tivesse envelhecido rapidamente. Até os olhos perderam parte do brilho. Contava oito anos. O veterinário pouco foi capaz de fazer. O diagnóstico foi mais uma vez de leishmaniose. Dizem que é a doença que vitima mais cães e gatos na Península Ibérica. Existe uma vacina, para, para já, não é tão eficiente quanto seria desejável. Atinge também os humanos. É então mais conhecida por Kalazar.

Habito uma moradia e não é apenas o gosto pelos animais que me leva a ter cães. Contribuem também para a segurança da casa. Dão sinal da presença de estranhos e têm um efeito dissuasor.

Porcos meses após a morte do segundo Brutus, um colega meu separou-se da mulher. Moravam numa vivenda e foram forçados a vendê-la. Tiveram de se desfazer dos cães. Calhou-me ficar com a Azeitona. Era outra Leoa da Rodésia, mas bem mais corpulenta do que a Diana.

Foi-me oferecida, mas antes de chegar a casa já me custara 100 euros. Com a ansiedade de se afastar do dono, meteu o focinho num dos vidros detrás do automóvel, que estava entreaberto, e quebrou-o.

Nunca pensei que se pudesse adaptar à nova casa e aos novos donos com tanta facilidade. Julguei perceber que os cães respeitam a hierarquia e tem necessidade de um dono. Tornei-me, quase de imediato, o seu chefe substituto. 

A Azeitona era uma linda cadela. Tratava-se de um animal magnífico, poderoso e muito meigo. Tivera duas ninhadas de cachorros, antes de ser esterilizada.

Habituou-se a dormitar no meu gabinete enquanto eu escrevia.

Viveu feliz connosco (e nós com ela) até desenvolver incontinência urinária. A falta de higiene e o correspondente mau cheiro levou-nos a evitar a sua entrada em casa. Ficou confinada ao pequeno quintal.

Soube por essa altura que a seleção dos Leões da Rodésia se fazia tendo em conta a presença do redemoinho de pelo na região lombar. Ora, esse vórtice costuma estar associado à espinha bífida e alguns destes animais sofrem cedo de incontinência urinária. Dito de outro modo, os criadores escolhem os cães piores. As gravidezes sucessivas parecem contribuir para agravar o problema.

A Azeitona morreu por tido engolido ossos inteiros que se alojaram no estômago, sem que fosse capaz de os digerir ou eliminar. Deixou saudades.

O sétimo cão é o Sebastião. É filho de uma cadela de raça Spaniel Breton e de um Setter inglês. A Wikipedia, reconhecida especialista em má-língua, garante que a mãe do cão não é espanhola nem bretã. A raça é originária do noroeste de França. Será o cão de tiro mais popular nesse país. Vive em média 11 anos. O meu animal conta já oito.

Embora me tenha sido oferecido, é, de acordo com a minha mulher, o cão mais caro de todos os que tive. A opinião dela tem algum suporte: o dono dos pais dele é antiquário perto de Grândola. Cada vez que passo no Bairro do Isaías, deixo lá algum dinheiro.

Trata-se de um cão bonito, de estatura média. Tem por defeito maior ser simpático demais. Gosta de toda a gente e, especialmente de crianças.  Se alguém assaltar o quintal onde pernoita na sua casota, julgo que não se importará de abanar o rabo ao gatuno. Seria mesmo capaz de lhe oferecer um cafezinho. A caraterística mais notória que encontro nele é ser capaz de sorrir. Não conheço outro bicho assim.

Será curioso referir que não tive um favorito entre os meus cães. Foram todos bons amigos.

Segundo as estatísticas, o Sebastião será o último. Não gostaria de morrer antes dele. Não se trata de egoísmo. Havia de me custar muito deixar o cão sem protetor.

 

quarta-feira, 10 de maio de 2023

 





  BANHA DE COBRA E TERIAGA




O cirurgião Joaquim Barradas apresentou recentemente o seu terceiro livro. Chamou-lhe Banha de Cobra e Teriaga.

Em centena e meia de páginas passou em revista toda a História da Medicina ocidental.

A escrita é elegante e as opiniões expressas são cuidadosamente fundamentadas. O livro é de leitura fácil e agradável.

A Teriaga remonta ao tempo de Mitrídates e às guerras do Ponto. Incluía mais de meia centena de componentes e terá sido utilizada inicialmente como antídoto para os venenos comuns.  Julgava-se que o efeito final seria superior ao somatório das virtudes de todos os produtos simples que a integravam.

Depressa passou a ser usado como medicamento capaz de combater quase toda a espécie de doenças. Houve quem julgasse que estava ali a panaceia universal. Seria boa para o tratamento das doenças contagiosas, peste, febres malignas, bexigas, mordeduras de animais venenosos, cólica ventosa, paralisias, epilepsia, apoplexia, letargo e ainda para doenças mentais.

Incluía, entre os seus componentes principais, o ópio e a carne de cobra.

É sabido que as serpentes possuem uma quantidade diminuta de gordura. O termo “Banha da Cobra” deriva dos excipientes gordos que os preparadores lhe incorporavam.

Galeno, médico grego instalado em Roma, foi, para o bem e para o mal, uma das personagens que mais influenciaram as Medicinas árabe e europeia. Descreveu em pormenor o método de preparação da carne de cobra, de forma a poder ser incluída na Teriaga.

A Teriaga foi largamente utilizada em toda a Europa até ao final do século XVIII, tendo o seu uso persistido em alguns países no início do século XIX. Foi o médico britânico William Heberden quem, em 1745, publicou um pequeno opúsculo em que questionava a validade do efeito terapêutico da Teriaga. A publicação teve eco na Inglaterra, primeiro país em que a Teriaga deixou de ser usada. Tinha reinado entre os medicamentos administrados a humanos durante dois milénios.

O autor termina o livro com reflexões sobre a validade do conhecimento científico. No seu entender, a verdade é quase sempre provisória e os avanços registados por cada geração de investigadores tendem muitas vezes a pôr em causa as ideias dominantes em épocas anteriores.


sexta-feira, 28 de abril de 2023

 


MARCOS NO CAMINHO 

 

No conjunto, os meus blogues “decaedela” e “historinhasdamedicina” ultrapassaram há dias o quarto de milhão de leitores. A efeméride teria de ser assinalada.

O número de visitas do “historinhasdamedicina” é ligeiramente superior ao registado pelo “decaedela”, embora este seja mais antigo e tenha mais artigos publicados (501 contra 186 de temas médicos históricos).

As nacionalidades dos visitantes diferem consideravelmente de blogue para blogue. No “decaedela” predominam os leitores de Portugal, com 38% das visitas, seguidos de perto pelos Estados Unidos da América. A Holanda vem em terceiro lugar.

No “historinhasdamedicina”, o Brasil figura em primeiro lugar, ligeiramente à frente de Portugal. Seguem-se os E.U.A. e a Rússia. 

Estou em crer que a diáspora dos portugueses apenas em parte explica a origem geográfica dos leitores. Julgo que um número considerável recorre à tradução automática.

Curiosamente, para além do Brasil, o único país lusófono referido como ponto de origem dos meus leitores é Cabo Verde.


quinta-feira, 27 de abril de 2023

 

NOTAS SOBRE A MALÁRIA

A malária tem muitos nomes. Além de lhe chamarem febre terçã e quartã, é também conhecida por paludismo, impaludismo, sezões e maleitas. Tem sido ainda designada por febre dos pântanos, febre dos charcos, febre telúrica, febre perniciosa, maleita, intoxicação palustre, febre palustre ou palúdica e febre da quinquina, entre outras designações menos comuns.

A doença aflige macacos e aves desde a Criação, ou perto disso. Os conhecimentos atuais localizam-na no nosso planeta milhões de anos antes da existência do homem.  Embora a sua prevalência tenha estado geralmente associada a regiões de clima tropical, subtropical e temperado, propagou-se mesmo para norte do Círculo Polar Ártico.  Países tão distanciados como a Rússia, a Índia e os Estados Unidos da América, foram atacados pelo mal.  

O paludismo constituiu um flagelo na Grécia Antiga. O estabelecimento da agricultura na Grécia, cerca de 7.000 anos antes de Cristo, facilitou a difusão da doença, posteriormente exportada para a bacia mediterrânica.  Terá ceifado as vidas de Homero e de Hipócrates. Foi o médico de Cós (c. 460 - c. 370 a.C.) quem primeiro descreveu claramente a enfermidade e a relacionou com os miasmas gerados nos pântanos.



Séculos mais tarde, a malária debilitou os exércitos romanos e terá contribuído para o declínio do seu império.

A malária é associada há muito à permanência em regiões pantanosas. A sua associação com charcos e terrenos alagados levou diversos chefes militares a desviar o percurso das suas tropas em campanha.

Foi atribuída aos “miasmas”, vapores malignos ou partículas invisíveis transmitidas pelo ar danoso resultante da putrefação da matéria vegetal presente no solo das zonas pantanosas.

A associação entre as febres e os mosquitos, abundantes nos locais pantanosos, foi sugerida de tempos a tempos, sem nunca ter chegado a ter grande aceitação entre a comunidade médica. No século XVII, o médico italiano Giovanni Maria Lancisi apontou o dedo aos mosquitos como possíveis responsáveis das febres palustres.  

A prevalência do paludismo nas regiões tropicais foi um dos grandes obstáculos com que a colonização europeia se defrontou. No caso angolano, a cidade de Benguela, que detinha um prestígio antigo por ter o nome ligado ao reino independente do mesmo nome, foi transferida pelos portugueses, em 1617, das vizinhanças de Porto Amboim para a Baía das Vacas onde se situa atualmente. A deslocação para sul foi superior a 270 quilómetros. A razão da mudança assentou na insalubridade do local onde seriam muitas as mortes dos colonos portugueses. Pouco se ganhou com a mudança. A nova Benguela foi construída noutra região pantanosa e continuou a ser conhecida como “cemitério de brancos”. No ano de 1850 o número de habitantes europeus da povoação mal chegava a meia centena.

Para além do seu impacto socioeconómico e do imenso problema de saúde pública que representava, a malária despertava a curiosidade dos médicos, os quais tiveram, durante milhares de anos, dificuldade em entendê-la. Ao processo enigmático de transmissão, aliava-se a sua possível ligação com a febre biliosa e a febre perniciosa.

O microscópio fora inventado no final do século XVI e desenvolvido nas décadas seguintes. No entanto, a transmissão da malaria através de mosquitos infetados com plasmódios teria de esperar pelo início do século XX para ser conhecida.

Foram os escravos africanos que levaram o paludismo para a América. Constituindo novidade para os sistemas imunitários dos habitantes locais, propagou-se rapidamente, atingindo em alguns locais proporções alarmantes.  


sexta-feira, 24 de março de 2023

                                                 
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