A medicina antiga visava a cura, quando ela era possível e o alívio do sofrimento, quando a morte era inevitável. Procurar manter viva uma pessoa em sofrimento, depois de perdida qualquer esperança de recuperação, não era considerada boa prática clínica.
A ideia de prolongar a vida humana a todo o custo é relativamente recente, numa perspectiva histórica. Desenvolveu-se sobretudo a partir da segunda metade do século XX e foi possibilitada pela evolução tecnológica. O progresso da ciência médica permitiu curar muitas doenças e tornou crónicas afecções que anteriormente eram rapidamente mortais. A esperança de vida aumentou e trouxe com ela o envelhecimento da população. Ora, a velhice não se cura e os idosos são caros. Ocorreram também mudanças na apreciação que as pessoas faziam dos factos. Morrer deixou de ser o corolário natural da vida para se tornar um sintoma de fracasso.
Os avanços tecnológicos tornaram possível manter vivas pessoas sem perspectivas de melhoria e com uma existência miserável. Obrigaram médicos e legisladores a repensarem as suas normas, de forma a poderem enfrentar os desafios modernos. A tecnologia é dispendiosa e pouco útil em doentes quase terminais. Ganha-se algum tempo de vida à custa de sofrimento, de despesa e, tantas vezes, de solidão. Aflige-me pensar numa pessoa lúcida e sem esperança sujeita a ventilação assistida durante um período de tempo prolongado.
Encontram-se nos dicionários de língua portuguesa duas palavras comuns que exprimem conceitos que, de algum modo, balizam os nossos procedimentos: perseverança e obstinação. No intervalo variável entre eles hão-de situar-se a arte, a ciência e a ética médicas. Se é erro submeter alguns doentes a medicina a mais, constituirá, noutros casos, um mal maior desistir antes do tempo.
Muitas vezes, é fácil ver claro e tomar decisões adequadas. A experiência ajuda. Existem, em diversas áreas terapêuticas, directrizes mais ou menos consensuais. No entanto, nas franjas da estatística, o conhecimento de excepções às regras continua a ser fonte de angústia para quem tem a responsabilidade de decidir.
Quando é que um médico se deve continuar a esforçar por manter vivo o seu doente e quando é que tem a obrigação de desistir de uma terapêutica inútil e agressiva, susceptível de produzir mais sofrimento do que benefício? A decisão não é simples em todos os casos. Lembremos um aforismo de Hipócrates: a vida é breve, a arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganosa, o juízo difícil. Na dúvida, o médico prefere geralmente pecar por teimosia. No entanto, a futilidade terapêutica tem um preço elevado e todos os profissionais de saúde se devem habituar a fazer contas, sem deixar de resistir à pressão para avaliar os resultados sobretudo em função dos custos.
Ainda que a questão da obstinação terapêutica se coloque em áreas muito diversas da medicina, como a hemodiálise e a quimioterapia da doença oncológica, deu-se por ela mais cedo no campo da medicina intensiva. Será ainda neste capítulo que a necessidade de tomar decisões importantes é mais frequente. A manutenção da ventilação mecânica em doentes terminais constitui um dos exemplos mais conhecidos.
Nem tudo o que é novo é bom e a muitos doentes foi negado o direito a morrerem em paz. A morte, ao contrário do que parece poder inferir-se de alguns telejornais, não resulta obrigatoriamente de erro médico. Somos vulneráveis. A juventude, a beleza, a força de a saúde não duram sempre. Quantas vezes a morte é misericordiosa...
Temos de reaprender os ensinamentos antigos: em dadas circunstâncias, o melhor que se pode fazer por um doente deixa de ser procurar mantê-lo vivo.
Morrer bem é uma aspiração antiga dos humanos. Em Setúbal, existem capelas dedicadas à Senhora da Boa Morte e ao Senhor do Bonfim que, aliás, exportámos para o Brasil. E, se calhar, nem sempre se morre melhor com um médico ao lado.
Imagens:
1- Internet
2- Colecção pessoal.
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