GENEROSIDADE E OBSTINAÇÃO
Aconteceu em 1974, pouco
tempo depois do 25 de abril.
O Granwer era um interno
de Anestesia entusiasta e cheio de vontade de aprender. Curiosamente, tinha
dupla nacionalidade: portuguesa e suíça. Era tutelado pela doutora Cristina da
Câmara, que gostava de repetir:
─ Granwer! Tu és a minha
dor de cabeça.
Eu dava os primeiros
passos na Neurocirurgia, integrado na equipa do dr. Correia de Almeida. O nosso
Serviço era dirigido pelo carismático dr. António Vasconcelos Marques.
Eu e o Granwer
trabalhávamos muitas vezes juntos, tanto no Serviço como na Urgência. Numa
tarde de verão em que havia pouco que fazer, passei pelas salas de observação,
a caminho do bar. Espreitei. O Granwer tentava afanosamente reanimar um idoso
cujo coração desistira de bater instantes antes. Procedia ele próprio à
massagem cardíaca, enquanto orientava os enfermeiros que ventilavam o moribundo
com máscara e balão e iam administrando os medicamentos indicados.
Como não fazia ali falta,
prossegui o meu caminho.
Vinte minutos mais tarde,
depois de beber uma imperial e de trocar alguns dedos de conversa com outros
colegas que esperavam que os doentes chegassem, regressei ao corredor do Banco.
Voltei a espreitar para a mesma sala de observações. Lá estava o Granwer,
banhado em suor, generoso e obstinado na sua tentativa de ressuscitação. O
homem estava mais que morto.
Cheguei-me à porta e
deixei sair uma provocação:
─ És tu dum lado e o S.
Pedro do outro…
Acreditem ou não, o
educadíssimo Granwer interrompeu a massagem cardíaca e chamou-me filho da puta, mesmo em frente dos vivos
e do cadáver.