Há doenças que se reconhecem do outro lado da rua. Na calçada que sobe da Avenida da Liberdade para o Hospital dos Capuchos e que, ao longo dos seus quatrocentos metros de extensão, muda três vezes de nome (Rua das Pretas, Rua do Telhal, Rua de Santo António dos Capuchos), cruzei-me repetidas vezes com um acromegálico. Estive tentado a dirigir-lhe a palavra, mas não fui capaz de o fazer. Educaram-me no preconceito de que deve ser sempre o doente a procurar o médico. Ignoro se chegou a ser tratado.
Apesar dos progressos magníficos que se têm verificado nas técnicas de diagnóstico, continuam a existir patologias que apenas se dão a conhecer através da anamnese. Quem não fala do seu mal, não obtém ajuda. É um caso desses que relato hoje.
Entrou-me no consultório um homem alto e magro que andaria pelos vinte e cinco anos. Vinha acompanhado por uma mãe possessiva. Não se afastava do filho e parecia receosa de lhe tirar a mão da cintura ou do ombro. Os médicos ficam de pé atrás quando um homem feito chega com a mãe. Está-se à espera de alguma fragilidade.
Costumo perguntar: "de que se queixa?", "em que posso ajudá-lo?", ou pedir: "conte-me o que o traz cá".
As dificuldades consistem, muitas vezes, em separar o trigo do joio. Há que filtrar, da profusão de queixas, as que podem ser úteis para nos orientar no processo de diagnóstico. Os médicos têm mentalidades muito arrumadinhas: diagnosticar é um jogo que consiste em sintetizar o essencial de cada caso clínico e enformá-lo, até caber numa gavetinha que tem escrito por fora o nome da doença. Investe-se nisso todo o saber e o potencial necessário dos meios complementares de diagnóstico. Quando não se consegue fazê-lo, recorre-se a um especialista da área. Alguns doentes infelizes que não se prestam a ser arrumados, ficam mal vistos. E quantas vezes nos passa pela cabeça que há gavetas com rótulos demasiado vagos e imprecisos, que no futuro, serão talvez divididas em mais compartimentos...
Voltemos ao caso de hoje. Foi a mãe quem falou:
- Ele já está muito melhor...
- Mas diga-me, minha senhora! Está melhor de quê?
- Muito melhor, senhor doutor! Muito melhor!
Vi que, dali, não conseguia nada e voltei-me para o doente.
- Quem vem ao médico, traz sempre algum problema. O senhor não se quer queixar?
- Não! Eu estou bem.
Intrigado, procedi metodicamente ao exame neurológico, esperando que o gelo se quebrasse e que as queixas acabassem por ser expressas.
Quando apaguei a luz para lhe observar os fundos oculares, o doente recuou bruscamente e deu um berro de medo e ameaça. Coloquei-lhe a mão no ombro direito, para o sossegar, e já lá encontrei a mão da senhora. Acendi a luz e pedi que se sentassem. A história soltou-se.
- Senhor doutor! - Disse a mãe - Isto está quase resolvido. Tento eu como ele temos rezado muito.
- Será bom contarem-me o que há ainda para resolver...
O homem permaneceu calado. A mulher endireitou os ombros e resolveu falar.
- Senhor doutor! É o diabo que o anda a tentar. Manda-o, todos os dias, matar-me a mim e, depois, matar-se ele. Ai, quantos padre-nossos e avemarias rezámos... Mas, graças a Deus, vai estando melhor.
Pensei em esquizofrenia. Pedi licença e telefonei a um psiquiatra, pedindo a observação imediata e a previsão de internamento urgente. Parecia-me estarem duas vidas em risco.
Poucos dias antes, mãe e filho tinham estado no consultório de um colega distinto. Não fornecendo dados que o pudessem orientar, saíram de lá com a prescrição de um ansiolítico ligeiro...
Sem comentários:
Enviar um comentário