DEUSA COBRA
Adquiri há algum tempo e contra
a opinião da minha mulher uma escultura em pedra − julgo que se trata de
calcário − a
um antiquário alentejano. Tem dois palmos de altura por três de largo e é bastante
pesada. Foi com esforço que eu e o vendedor a introduzimos no porta-bagagem do
automóvel.
Nunca tive uma peça tão
bela e não voltarei a ter outra assim. É uma deusa serpente. Tem uma cabeça de
mulher e outra de cobra. Raras pessoas terão tido o privilégio de admirar coisa parecida.
Ao longo dos meses, conforme o tempo
disponível, vasculhei a Internet à procura de informação. A bibliografia sobre
deusas serpentes na Península Ibérica é abundante, mas não encontrei qualquer
imagem de escultura igual ou semelhante.
Os gregos antigos chamavam
à Península Ibérica Ofiusa, terra de serpentes. Em Portugal e em Espanha,
abundam as lendas sobre cobras, dragões e mouras. Estas mouras (de que são bem
conhecidas lendas em Mértola e em Palmela) têm muitas vezes formas híbridas,
metade mulher e metade serpente e estão habitualmente relacionadas com a água
(fontes e cavernas). Melusina é outra figura conhecida nas lendas europeias.
Trata-se de um espírito feminino também híbrido que habita na vizinhança de rios e fontes
sagradas.
Julga-se que aos habitantes
originais da Península Ibérica se foram juntando, entre o oitavo e o sexto
século antes de Cristo, povos indo-europeus de origem celta, conhecedores da
metalurgia do ferro. Os celtas trouxeram para cá o seu panteão de deuses,
incluindo nele o culto da serpente. No entanto, a serpente era já um mito pan-mediterrâneo.
Tratou-se, assim, de uma reinoculação. O culto celta da serpente misturou-se
provavelmente com outros rituais há muito estabelecidos na Península.
A serpente é olhada de
modos diferentes nas lendas antigas. Representa, em alguns casos a evolução
cíclica da Natureza. Trata-se de um animal que aparece e desaparece e que muda
de pele. Oculta-se na terra durante o tempo frio, para regressar na primavera.
Torna-se um símbolo da morte, antes de se associar à ideia de ressurreição.
Será por isso a insígnia da Medicina.
É muitas vezes considerada
um símbolo de fecundidade. Tanto é vista como uma figura benéfica (traduzindo
eventualmente o culto residual da Deusa Mãe) como é apresentada como representação do
diabo, na tradição judaico-cristã. Nas mitologias europeias chega a ocupar o
lugar de um deus polivalente. Umas vezes reina sobre o mundo subterrâneo, o lugar
dos mortos. Outras, superintende à música e à magia. Noutros locais, ajuda a
cuidar do gado e a preservar a saúde.
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