ANTÓNIO VASCONCELOS MARQUES
E ÁLVARO PAIS DE
ATHAYDE
UMA SIMBIOSE NEUROCIRÚRGIA
Conheci os doutores Vasconcelos Marques e
Álvaro Ataíde em 1973, quando entrei para o Internato da Especialidade de
Neurocirurgia, nos Hospitais Civis de Lisboa. Gostaram de mim, e eu deles.
Depois de os ter ajudado algumas vezes no Serviço 10 do Hospital de S. José,
convidaram-me para colaborar numas tantas intervenções particulares no Hospital
da Cruz Vermelha.
O
dinheiro extra dava-me bom jeito, pois tinha já duas filhas. A colaboração foi
interrompida por um protesto. O interno que pertencia oficialmente à equipa
deles sentiu-se discriminado. Teria razão.
António
Vasconcelos Marques licenciou-se em Medicina, em Lisboa, em 1933 (juntamente
com Álvaro Ataíde). Iniciou a sua atividade hospitalar sob a orientação de
Pulido Valente e seguiu uma carreira hospitalar brilhante. Em 1936 concorreu
aos Hospitais Civis de Lisboa e em 1940 terminou o internato de Cirurgia Geral.
Foi chamado por Diogo Furtado, fundador do Serviço de Neurologia do Hospital
dos Capuchos, para lançar as bases de uma valência neurocirúrgica. Em 1943, estagiou,
durante cerca de um ano, no “John Hopkins Hospital”, sob a supervisão de Walter
Dandy. De regresso, muitas vezes em conflito com Diogo Furtado, bateu-se pela
autonomização da Neurocirurgia. Em 1954 prestou provas públicas e tornou-se o
primeiro neurocirurgião das Carreiras Hospitalares da Península Ibérica.
Vasconcelos
Marques foi o impulsionador da criação do Serviço de Neurocirurgia do Hospital
dos Capuchos e do Pavilhão de Traumatizados Cranianos do Hospital de S. José. Conheceu
apreciável reconhecimento internacional. Era senhor de uma personalidade forte
e, ao longo da vida, foi fazendo amigos e inimigos. Poucos que o conheceram lhe
terão ficado indiferentes.
Recordo
o doutor Ataíde como um cirurgião de mão cheia e um homem culto e gentil.
Formava com António Marques uma dupla estranha e aparentemente incompatível
que, no entanto, funcionava. Tinham sido colegas no Curso de Medicina. Diz-se
que, na juventude, varriam bares a murro, prontificando-se, no final das cenas
de pancadaria a pagar os estragos produzidos.
Álvaro
Ataíde vinha de uma família fidalga dos Açores. Vasconcelos Marques era
sobrinho-neto de Brito Camacho, uma das figuras gradas da I República.
Era
o doutor Ataíde quem começava as operações. Terá sido assim na cirurgia do
hematoma subdural de Oliveira Salazar. O doutor Marques era um homem ocupado
com a direção do Serviço. Aparecia na fase “nobre” das intervenções. Coloquei
as aspas porque, para mim, todas as fases cirúrgicas têm a mesma nobreza.
Discutiam que se fartavam. Depois, o doutor António Marques lá punha o clip no aneurisma, se era caso disso, e
deixava-nos a terminar o trabalho.
Tratando-se
de duas pessoas inteligentes e com destreza manual acima da média,
diferenciavam claramente as funções de cada um. Marques era o organizador e o
homem que assumia publicamente a responsabilidade da equipa. Ataíde contribuía
com a sua excecional habilidade de mãos e o seu bom juízo cirúrgico. Por mais
que ralhassem um com o outro durante a cirurgia, quando tiravam as luvas e as
batas relacionavam-se como se nada menos agradável se tivesse passado.
O
doutor Álvaro Ataíde, um dos cirurgiões mais hábeis com quem trabalhei, seguiu
um percurso profissional pouco comum. Fez Clínica Geral nos Açores,
interessou-se pela Radiologia, e acabou por se tornar um dos neurocirurgiões
mais brilhantes do País. Introduziu em Portugal a Cirurgia Estereotáxica da
doença de Parkinson. Realizaram-se no nosso Serviço cerca de 180 dessas
operações, algumas delas com recurso a uma adaptação feita por Ataíde aos
aparelhos clássicos.
Álvaro
Ataíde era um homem humilde, de bom trato e sorriso fácil, disposto a tolerar
os erros e as limitações dos jovens neurocirurgiões que ajudava a formar.
Fiquei surpreendido ao saber, pouco antes da sua morte, que chegara a ser Grão-Mestre da Maçonaria. Lembro-me
de o ter visto enxugar uma lágrima, ao visitar a sala onde fazíamos neurorradiologia
no Serviço 10, após a sua aposentação.
A 6
de Setembro de 1968, Oliveira Salazar foi internado no Hospital de S. José. O
diagnóstico foi discutido. Poderia tratar-se de acidente vascular cerebral ou
de hematoma intracraniano. Não existia, ao tempo, TAC nem Ressonância Nuclear e
a idade do doente contraindicava a realização de angiografia cerebral. Horas
depois, foi transferido para o Hospital da Cruz Vermelha e operado. Semanas
antes, a 3 de Agosto, sofrera uma pequena queda. Segundo Fernando Dacosta, que
cita a governanta Maria de Jesus, Salazar, ao sentar-se, de jornal na mão,
calculou mal a distância e tombou ao lado da cadeira de lona, num terraço do
Forte de Santo António. Bateu com a cabeça nas lajes do chão. Alguns dias depois, ficou confuso mas apenas a 4 de Setembro admitiu estar realmente doente.
A
operação decorreu na Cruz Vermelha, onde Vasconcelos Marques realizava as suas
intervenções cirúrgicas particulares. O hospital estava bem apetrechado e
dispunha de boas instalações hoteleiras. Maria Cristina da Câmara, a anestesista
habitual da equipa, vigiou o doente durante a operação, executada sob anestesia
local. O doente colaborou e a cirurgia foi simples e rápida. Encontrou-se e
drenou-se um hematoma subdural crónico.
Salazar
fez uma boa recuperação imediata. Aos 8 dias da intervenção, porém, sofreu um
acidente vascular cerebral. Ainda melhorou, mas perdeu a memória recente e
ficou com défices motores importantes.
Vasconcelos
Marques bebia com moderação. Ainda assim, no final dos almoços, chegava a
soltar a língua. Lembro-me de o ouvir repetir:
− Se o Doutor Salazar tivesse feito o
acidente vascular no lado a que foi operado, o neurocirurgião tinha sido
crucificado. Mal por mal, foi do lado oposto…
Fontes: A Neurocirurgia em Portugal, Serafim Paranhos, S.P.N.,Porto, 2000.