A DESTRUIÇÃO DO MEU ARQUIVO
No dia em que
comecei a destruir o meu arquivo clínico só não chorei porque não sou dado ao
choro.
De modo geral,
sou impulsivo. Fora da área profissional, acusam-me de tomar decisões em cima
do joelho. Quando se trata de questões que têm a ver com o meu futuro e o dos
meus, é como se mudasse de feitio. Fico ansioso e torno-me hesitante. Ponderei
demoradamente se deveria ou não abandonar o consultório de Setúbal para exercer
os últimos anos de carreira no Hospital dos Capuchos em regime de dedicação
exclusiva. A intenção era conseguir uma reforma melhor.
Depois de
escolher um rumo, sou teimoso e marro a direito.
Entre a minha
candidatura ao novo regime e a sua aprovação decorreram poucas semanas.
Lembro-me de ouvir a minha mulher comentar:
− Dizem-te que
sim a tudo…
Era verdade. Sei
de colegas que aguardaram anos pela resposta, que nem sempre foi positiva.
Comentei, com algum orgulho:
− Conhecem-me.
Sabem que vou trabalhar mais...
Não tinha onde
colocar os armários metálicos em que guardava as fichas clínicas. Ocupavam uns
bons metros quadrados de parede.
Era difícil contar as fichas que fui preenchendo ao longo de trinta anos de consulta. Umas eram gordas, com páginas dobradas, e outras elegantes. Fiz uma amostragem e extrapolei-a. Contadas duas gavetas, teria registos de 15.000 a 20.000 doentes.
Era difícil contar as fichas que fui preenchendo ao longo de trinta anos de consulta. Umas eram gordas, com páginas dobradas, e outras elegantes. Fiz uma amostragem e extrapolei-a. Contadas duas gavetas, teria registos de 15.000 a 20.000 doentes.
A maioria deles
não deixara marca na minha memória. Tratava-se de pessoas que tinham vindo
pedir uma opinião e que não voltaram. Um ou outro paciente não teria gostado do
médico. Muitos, contudo, tinham afundado raízes no meu coração. Alguns exigiram
o melhor de mim: atenção, inteligência, capacidade de estudo e técnica
cirúrgica apurada. Ofereci-lhes tudo o que fui capaz de dar. Nem sempre chegou.
Umas vezes ganhei e, outras, perdi. Os homens orgulhosos fixam melhor as
derrotas do que as vitórias.
As fichas eram
muitas e difíceis de destruir. Provavelmente, no começo do século, os
fragmentadores de papel teriam já custos acessíveis. Imaginei-os distantes,
para utilização única. Fiz mal. Teria poupado tempo e maçada.
Doeram-me os
pulsos de tanta ficha que rasguei em pedaços pequenos e quase deitei fogo à
casa ao sobrecarregar a lareira com resmas de papel. Demorei muitos dias a
completar a tarefa.
Mesmo sem
querer, ia lendo um ou outro nome. Alguns não me diziam nada. Outros faziam
parte das minhas preocupações. Houve doentes que julguei perder outra vez, ao
destruir-lhes a memória escrita. Pensei que a melhor parte de mim ficava ali,
junto às lembranças apagadas. Achei que estava a rasgar o meu passado e que
nunca mais seria homem inteiro.
Imaginei-me numa
ficha preenchida. Em cima, dizia: Dr. Trabulo. Estava quase cheia. O espaço em
branco que ficava em baixo era estreito. Eu tinha percorrido a maior parte do
caminho e era impossível lembrá-lo sem doentes.
Perdi registos e
até apontamentos de frases de que poderia vir a fazer uso mais tarde, na escrita, mas a vida
não parou.
Hoje, o meu registo clínico pode abrigar-se todo numa “pen”. Cabem
lá mais de seis metros quadrados de folhas de papel metidas em gavetas metálicas.
Não é fácil o que fez, mas demonstra coragem, acção.
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