Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

terça-feira, 13 de setembro de 2011


       A DESTRUIÇÃO DO MEU ARQUIVO


No dia em que comecei a destruir o meu arquivo clínico só não chorei porque não sou dado ao choro.
De modo geral, sou impulsivo. Fora da área profissional, acusam-me de tomar decisões em cima do joelho. Quando se trata de questões que têm a ver com o meu futuro e o dos meus, é como se mudasse de feitio. Fico ansioso e torno-me hesitante. Ponderei demoradamente se deveria ou não abandonar o consultório de Setúbal para exercer os últimos anos de carreira no Hospital dos Capuchos em regime de dedicação exclusiva. A intenção era conseguir uma reforma melhor. 
Depois de escolher um rumo, sou teimoso e marro a direito.
Entre a minha candidatura ao novo regime e a sua aprovação decorreram poucas semanas. Lembro-me de ouvir a minha mulher comentar:
− Dizem-te que sim a tudo…
Era verdade. Sei de colegas que aguardaram anos pela resposta, que nem sempre foi positiva. Comentei, com algum orgulho:
− Conhecem-me. Sabem que vou trabalhar mais...
Não tinha onde colocar os armários metálicos em que guardava as fichas clínicas. Ocupavam uns bons metros quadrados de parede.
Era difícil contar as fichas que fui preenchendo ao longo de trinta anos de consulta. Umas eram gordas, com páginas dobradas, e outras elegantes. Fiz uma amostragem e extrapolei-a. Contadas duas gavetas, teria registos de 15.000 a 20.000 doentes.
A maioria deles não deixara marca na minha memória. Tratava-se de pessoas que tinham vindo pedir uma opinião e que não voltaram. Um ou outro paciente não teria gostado do médico. Muitos, contudo, tinham afundado raízes no meu coração. Alguns exigiram o melhor de mim: atenção, inteligência, capacidade de estudo e técnica cirúrgica apurada. Ofereci-lhes tudo o que fui capaz de dar. Nem sempre chegou. Umas vezes ganhei e, outras, perdi. Os homens orgulhosos fixam melhor as derrotas do que as vitórias.
As fichas eram muitas e difíceis de destruir. Provavelmente, no começo do século, os fragmentadores de papel teriam já custos acessíveis. Imaginei-os distantes, para utilização única. Fiz mal. Teria poupado tempo e maçada.
Doeram-me os pulsos de tanta ficha que rasguei em pedaços pequenos e quase deitei fogo à casa ao sobrecarregar a lareira com resmas de papel. Demorei muitos dias a completar a tarefa.
Mesmo sem querer, ia lendo um ou outro nome. Alguns não me diziam nada. Outros faziam parte das minhas preocupações. Houve doentes que julguei perder outra vez, ao destruir-lhes a memória escrita. Pensei que a melhor parte de mim ficava ali, junto às lembranças apagadas. Achei que estava a rasgar o meu passado e que nunca mais seria homem inteiro.
Imaginei-me numa ficha preenchida. Em cima, dizia: Dr. Trabulo. Estava quase cheia. O espaço em branco que ficava em baixo era estreito. Eu tinha percorrido a maior parte do caminho e era impossível lembrá-lo sem doentes.
Perdi registos e até apontamentos de frases de que poderia vir a fazer uso mais tarde, na escrita, mas a vida não parou. 
Hoje, o meu registo clínico pode abrigar-se todo numa “pen”. Cabem lá mais de seis metros quadrados de folhas de papel metidas em gavetas metálicas.

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