CIRURGIA PROTELADA
Por volta de 1983, 1984, a cirurgia dos aneurismas
ainda tinha má reputação. Na minha equipa, apenas eu e o Carlos Maurício a
executávamos com alguma regularidade.
Quem vem de longe chega mais cedo. Não é um provérbio
chinês, mas poderia ser. Como sempre morei em Setúbal, era habitualmente dos
primeiros médicos a entrar no Serviço. As anestesistas sabiam que eu não me
atrasava e iam adiantando o trabalho.
Certa manhã, ao entrar na autoestrada, o meu carro
foi abalroado por outro automóvel e capotou. Percebi que tinha passado para a
faixa de rodagem de sentido contrário e receei um novo choque. Lembro
perfeitamente ter estado à espera que a luz se apagasse.
A luz não se apagou e não me doía nada. Apalpei-me e
achei que estava inteiro. O carro tombara de lado. Desapertei o cinto de
segurança, abri a porta da direita, subi e saltei para o chão.
Juntou-se rapidamente à minha volta um pequeno grupo
de pessoas. Uma viatura da GNR passou por ali e parou. O militar que conduzia
conhecia-me. Comentou, ao ver-me bem disposto:
− O Senhor Doutor é corajoso!
Ri-me. A coragem não era chamada para ali. Eu estava satisfeito por continuar vivo e íntegro.
O condutor do automóvel que provocara o acidente era
muito simpático. Responsabilizou-se e fartou-se de pedir desculpa.
Nesse tempo, ainda não havia telemóveis. Só depois de
ver rebocar o meu carro (que foi direitinho para a sucata) é que me lembrei de
falar para o Bloco Operatório a dizer que não tinha possibilidades de chegar
aos Capuchos a tempo de operar. Passava muito das dez horas da manhã.
O Maurício, que não conhecia o doente, não quis meter
a foice em seara alheia. O Senhor Manuel foi acordado. Não foi fácil
convencê-lo de que não tinha sido operado. Pediu um prazo para recuperar da
ansiedade, antes de voltar ao Bloco.
Operei-o, semanas depois. Tudo correu bem. Até morrer, de outra
doença qualquer, o Senhor Manuel visitou-me com regularidade. Pedia a minha
opinião sobre cada passo da sua vida. Lembro-me de se ter vindo aconselhar
acerca do casamento da filha.
Se viajarem para os lados de Setúbal e virem um
velhote de chapéu a conduzir uma Diane branca fujam, pois o homem, ou
o fantasma dele, apesar de ser muito simpático é um perigo a conduzir.
A imagem é do clássico livro de técnica operatória de Ludwig Kemp
A imagem é do clássico livro de técnica operatória de Ludwig Kemp
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