O MEU TEMPO
DE ESTUDANTE
Eu tinha boa cabeça e pude ser o melhor aluno do meu
Liceu sem me esforçar por aí além. Era minimamente responsável e sentia a
necessidade de estudar mais e melhor. Tardei, contudo, a concretizar esses objetivos.
A verdade é que eu queria ser “marrão” e nunca fui capaz de o conseguir.
Há alguns anos, a minha filha mais velha, médica
também, esteve alguns meses com a AMI em S. Tomé. De volta, contava que os
naturais da terra eram preguiçosos e explicava por quê: quase nem era preciso
sairem do carreiro para estenderem a mão e colherem bananas de um cacho; entravam na
água, lançavam a rede mesmo ali ao pé e obtinham uma refeição para a família.
Provavelmente, quem precisa apenas de molhar os tornozelos ou os joelhos para
conseguir uma boa pescaria nunca se fará grande navegador.
Eu fixava objetivos e, de modo geral, cumpria-os,
ainda que adiasse habitualmente para Outubro os exames mais difíceis.
Como outros cábulas, aprendi cedo o que era
indispensável para passar de ano. Na Anatomia Descritiva, por exemplo, quem se
contentava em chegar aos treze ou catorze valores escusava de estudar o
aparelho urogenital. Eu até estava a fazer um bom exame quando o velho
professor Maximino me mandou descrever a loca prostática. Nunca tinha ouvido
falar de tal coisa. O meu “ Ãn?” foi tão espontâneo e sentido que a assistência
desatou a rir. Saí de lá com treze.
No ano seguinte, estudava, por vezes, num café com um
colega que hoje é Professor Catedrático. Quando fomos a provas, eu
obtive um treze e ele um catorze. Não ficou satisfeito e declarou:
− Entre o meu catorze e o teu treze há um abismo de
sabedoria!
Haveria...
Julgo que em todo o lado há pessoas que ganham tanto
como as outras mas que fazem mais e melhor. O prestígio da Faculdade de
Medicina da Universidade de Coimbra assentava na qualidade de meia dúzia de professores. Renato
Trincão, o “Trinquinhas” era um deles. Ensinava Anatomia Patológica.
Eu tinha boa memória visual e engracei com o
microscópio. No exame prático, o Trinquinhas entusiasmou-se com a minha prova e
fez-me elogios rasgados. Não me deslumbrei. Sabia o que me esperava. Tinha um
conhecimento razoável dos dois primeiros volumes da sebenta. O terceiro estava
reservado a quem ambicionava mais de quinze valores. O meu ficou por abrir.
Poucos dias depois, lá veio a prova oral. O professor Renato Trincão julgava
ter acabado de descobrir um grande aluno e interrogou-me apenas sobre a matéria
que constava do terceiro volume. Para desconsolo do Mestre, não fui capaz de
responder a qualquer pergunta. Ainda assim, deu-me quinze valores.
Um rapaz cresce e faz-se homem. Uns amadurecem mais
cedo e outros mais tarde. Nas duas semanas que se seguiram ao exame de Patologia
Médica, no quinto ano, continuei a estudar durante um par de semanas, estando
já em férias. Tinha finalmente dado conta de que o saber era imprescindível. Um
ou dois anos mais e teria os doentes à porta do consultório. Ai de mim, se não
fosse capaz de os tratar!
Acabei o curso com média de quinze valores, o que me
classificava entre os quinze ou vinte melhores de um curso de cerca de cem.
Soube-me a pouco, mas a verdade é que eu não merecia mais.
Com o tempo, lá fui ganhando hábitos de trabalho e de estudo organizado. Mesmo assim, não me livrei, até hoje, de um pesadelo que se vai repetindo, com
pequenas variações: o exame é daqui a dias e eu não comecei a estudar. Muitas
das vezes, ainda nem sequer comprei a sebenta...
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