RECORDANDO JOSÉ PAULINO PEREIRA
Conheci o
doutor Paulino quando me instalei em Setúbal, finda a minha comissão de serviço
militar a bordo do navio hospital Gil Eannes. Paulino Pereira fazia parte de um
grupo ilustre de médicos que se radicara na cidade duas ou três décadas atrás e contribuíra para
elevar a eficácia e o bom nome do Hospital de São Bernardo, ajudando a
aproximar o nível técnico dos Hospitais Distritais de muito do que de bom se
fazia nos Hospitais Centrais.
No fim da
vida, elaborou um livro de lembranças e de reflexões, muito ao jeito do que
tenho procurado fazer no “historinhasdamedicina”. O destino não quis que visse
a obra publicada. Faleceu semanas antes, no termo de uma vida longa e proveitosa.
Coube-me a honra de representar a Ordem dos
Médicos na cerimónia de apresentação do seu livro “Bisturi do tempo”. Vou
divulgar aqui uma das histórias da sua vida clínica, contada nesse livro.
Recordo alguns momentos emocionantes, como
aquele que vivi, numa noite, quando nos apareceu um rapazinho dos seus vinte
anos, com uma facada no coração. Alguém, numa rixa noturna, à saída duma «boîte»,
lhe vibrara o golpe que o deixara assim, sem acordo, lavado em sangue, entre a
vida e a morte. Não havia tempo a perder. Embora não vocacionado para a
cirurgia torácica, decidi avançar imediatamente. Era o tudo ou o nada. Uma vez
recuperado do estado de choque e enquanto se comprimia a ferida, refleti uns
segundos: aguentará a intervenção de tórax aberto? O anestesista acenava-me
afirmativamente. Atirei-me então para o desconhecido, como se à porta de um
avião, munido de para quedas, me convidassem a saltar para o espaço imenso, onde
jamais mergulhara…! Pela primeira vez na minha vida de cirurgião, senti
palpitar nas minhas mãos aquele órgão vital que marca o ritmo da vida. O meu
ajudante, debaixo da máscara, balbuciava monossílabos que o meu subconsciente
interpretava como incitamento: «Vamos bem… Já sangra menos… Aqui está a ferida…
Falta só suturá-la…»
Sentia a máscara
ensopada de suor e de sangue que, por vezes, esguichava. Era forçoso andar
depressa, pois o coração no seu bater constante, não permitia que os «pontos»
passassem com facilidade. Ao dar o primeiro, aquela torneira diminuiu o seu
débito. O ajudante voltou a balbuciar: «Bom…» Mas a intervenção ainda estava
longe do final. Eu sentia-me mais senhor da situação. Outro «ponto» e tinha a
vitória comigo. E foi mesmo assim. Como por encanto, aquela ferida, quase
mortal, deixou de sangrar. Um olhar vago para o anestesista deu-me a certeza de
que a primeira parte da batalha estava ganha. Apertei então a mão do meu
ajudante, sem dizer palavra…
… Enquanto nos lavávamos, eufórico com o
acontecimento, tão fora do comum, não pude deixar de dizer em voz alta:
− E diz a minha mulher que, lá em
casa, por falta de jeito, nem sou capaz de pregar um prego na parede…
Referências:
José Paulino
Pereira, Bisturi do Tempo, Edição de autor, Setúbal, 2008.
Fotografia:
contracapa do mesmo livro.
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