RECORDANDO AMÍLCAR CASTANHINHA
Conheci o doutor Castanhinha no
Hospital dos Capuchos e trabalhei com ele durante anos em S. José. Homem
inteligente, culto, dotado de fino sentido de humor e de conversa agradável,
tinha uma sólida formação neurológica mas não era propriamente um aficionado do
trabalho clínico. Quando tínhamos muito que fazer, chegávamos a recear
encontrá-lo nos corredores do Hospital. Sendo ele mais velho, não nos ficava
bem interromper a conversa e abalar.
Militara ativamente na oposição ao
salazarismo e, a dada altura, refugiara-se em Argel, onde foi representante
oficial do general Humberto Delgado até ao seu assassinato em 1965. Ocorriam
dissidências entre os oposicionistas portugueses no exílio e Castanhinha foi
preso, juntamente com um grupo de portugueses, pela polícia argelina. Foi
libertado por ordem de Ben Bella, após intercedência de Josie Fanon, esposa do
mítico pensador e psiquiatra Frantz Fanon. Não conheço as circunstâncias do seu
regresso. Poderá ter feito com o Regime um acordo do género “tu não nos incomodas
e nós deixamos-te em paz”, já que pôde voltar ao País e à carreira hospitalar.
Não tenho conhecimento de qualquer
atividade política que tenha posteriormente exercido fora do âmbito profissional. Durante
anos, foi dos pensadores mais notados a registar as suas reflexões no Boletim
da Ordem dos Médicos. Quando a fação a que se aliara foi vencida, reagiu com
amargura e com humor, ao seu estilo pessoal: “Aquilo não é uma Ordem! É um
Bando!”
Numa tarde do tempo antigo,
cruzei-me com ele num corredor do Hospital de S. José. Estava bem-disposto e
provocou-me:
−Trabulo! Eu, às vezes, leio a Bíblia.
Sabe que o profeta não sei quê (disse-me o nome, mas não o fixei) se zangou
quando um jovem lhe chamou careca. Amaldiçoou−o e o rapaz morreu.
Respondi:
− O profeta era ruim…
Sorriu com os olhos e afastou-se.
Encontrei-o pela última vez na sede da
Ordem dos Médicos. Terá sido por altura de eleições. Eu cumpria algumas horas
de serviço em volta das urnas por conta do Colégio de Neurocirurgia. Por alguma
razão que não recordo – eventualmente por ter sido sugerida a possibilidade de
vitória de um candidato a bastonário que não nos agradava, bati com os nós dos
dedos no tampo de uma mesa. Amílcar Castanhinha questionou-me:
− Sabe donde vem esse seu gesto?
− Não faço ideia. Não sou supersticioso…
− Eu conto-lhe. Nas cruzadas, os
cavaleiros cristãos usavam armaduras pesadas que lhes protegiam quase todo o
corpo. No entanto, antes dos combates, levantavam o braço para fazer o sinal da
cruz e expunham as axilas. Uns tantos foram atingidos pelas flechas muçulmanas.
O papa (disse-me o nome, mas esqueci-o) fez sair uma bula que substituía o
sinal da cruz por três pancadas na sela do cavalo. As selas, ao tempo, eram de
madeira.
A história tanto podia ter sido
recolhida como inventada. É bonita à mesma e conto-a muitas vezes.
Nesse dia, o doutor Castanhinha estava
feliz por ter finalmente podido dispensar a algália, meses após a cirurgia da
próstata. Comentava:
− Sabe, Trabulo? O meu PSA nem era
elevado…
Faleceu poucos meses depois. O coração
atraiçoou-o. Acho que, tal como eu, fazia coleção de máscaras. Ficou um colecionador
a menos. Deixou-nos também um homem bom.
Boa noite, gostei da sua crónica em memória do meu Avô.
ResponderEliminarCumprimentos, Ricardo Castanhinha
Obrigado pelo pequeno resumo de vida em memória da pessoa mais culta que conheci em toda a minha vida, saudades do meu Avô ... e da minha Avó idem ...
ResponderEliminarCumprimentos
António Castanhinha
(Neto)
Passados já tantos anos e como ainda me lembro tantas vezes dele. Recordo a palestra de despedida que ele deu no hospital de S.José quando saiu e era realmente impressionante a forma como se comunicava, a sua inteligencia e espirito critico. Que sorte tive em ser neto do Dr.Castanhinha...
ResponderEliminarNuno
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarEste comentário foi removido pelo autor.
EliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminar