Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

domingo, 24 de junho de 2018


O MÉDICO DO FUTURO


Não é possível prever a situação dos nossos colegas dentro de 25 ou 50 anos e muito menos saber como irão desenvolver as suas atividades. É certo que existirão, pois o Homem é vulnerável e terá, mais cedo ou mais tarde, o sofrimento por companhia e a morte por última garantia.
Completei 75 anos e, ao longo da vida, atravessei o que foi provavelmente o período de maiores mudanças na História da Humanidade. Assisti à generalização do saneamento nas aldeias portuguesas, ao começo do uso dos frigoríficos, da televisão, das máquinas de lavar roupa e louça, do plástico, dos computadores e da Internet. As viagens aéreas banalizaram-se e houve até homens que deram passos na lua. No campo profissional, enquanto eu crescia, vulgarizou-se o uso dos antibióticos. Seguiu-se a vacinação em massa contra muitas doenças e a banalização do uso da contraceção. Ocorreram progressos notáveis na imagiologia médica e desenvolveram-se técnicas de tratamento endovascular e de cirurgia minimamente invasiva, enquanto os laboratórios iam lançando no mercado medicamentos cada vez mais eficazes. Pelo menos nos países mais desenvolvidos, reduziram-se substancialmente as taxas de mortalidade infantil e prolongou-se o tempo médio de vida.
A Medicina Científica é uma disciplina recente. Acompanhou, como tinha de ser, a evolução da Ciência em geral. É costume situar as suas raízes no Renascimento, sem esquecer as gerações de médicos ilustres que nos precederam. Como afirmou Bernardo de Chartres (falando do conhecimento em geral) somos anões aos ombros de gigantes.



Hipócrates, Hua Tuo, Galeno e Averróis não podiam ter acesso ao arsenal terapêutico de que dispõem hoje até os mais humildes e menos preparados dos nossos Colegas. No entanto, entenderam bem a profissão médica e granjearam não só o respeito das gentes do seu tempo como o das gerações que lhes sucederam.
Estranhamente, enquanto o conhecimento progredia, as relações médico doente iam-se deteriorando. Tratou-se de um processo social evolutivo em que os “sábios” eram sujeitos a escrutínio e que se desenvolveu no nosso País sobretudo na segunda metade do século XX. O padre, o juiz, o médico e o professor, considerados outrora os expoentes do saber em vilas e cidades, foram sendo postos em causa.
As críticas à profissão médica são antigas e muitas vezes justas. Basta lembrarmos Molière e Bocage.
Bem, a introdução foi longa. Perguntarão os leitores menos pacientes: que sabe um velho do futuro?
A resposta é: mesmo sem ser bruxo, sei alguma coisa.
Desconheço naturalmente as maravilhas que a evolução técnica irá pôr à disposição dos nossos Colegas de amanhã. No entanto, a natureza humana não se irá modificar. As pessoas em sofrimento irão continuar a precisar da compaixão de quem os trata. Compaixão, compreensão, afeto, proximidade e capacidade de comunicação. Em suma: empatia.
Provavelmente, o fator mais relevante na aproximação médico doente continuará a disponibilidade para ouvir. Não existem bons médicos que não saibam escutar os seus doentes. Poderá seguir-se a voz, que transmite sentimentos e raciocínio. Os enfermos querem entender o que pensamos. A escolha das palavras e o recurso à prudência são atributos antigos da Arte de Curar.
Um amigo meu escreveu neste espaço, anos atrás, que o olhar detinha capacidades curativas. O doente pretende que atentemos nele e o modo de olhar pode ajudar a expressar os nossos sentimentos. Mas não é apenas o olhar. Ouvir, falar, sorrir, tocar, são atos terapêuticos que reforçam a ação dos medicamentos e das técnicas. Mesmo em Especialidades em que a palpação não seja essencial para a observação clínica, um aperto de mão ou uma palmadinha no ombro ajudam a dizer aos doentes que nos interessamos por eles.
Trata-se de procedimentos objetivos e mensuráveis. Há quem valorize o efeito placebo em cerca de 40%, embora sejam apontados outros números.
Bastará lembrar as medicinas chamadas alternativa que se desenvolvem à nossa volta. Pouco mais terão a oferecer aos doentes além desse efeito e, ainda assim, florescem. Tolos serão os médicos que não procurem reforçar a ação curativa com os efeitos da empatia.  
Por outro lado, convirá lembrar os começos da nossa profissão, quando a Medicina e a Magia andavam de mãos dadas e os médicos eram considerados intermediários entre os homens e os deuses. Foi sempre útil manter algum distanciamento que induzisse referência. O médico poderá ser como um irmão, mas um irmão mais velho.
Serão técnicas de relações públicas? Em parte, são. Em muitos atos humanos entram, em proporções variáveis, os sentimentos e a razão. No entanto, se não houver sinceridade na abordagem, os doentes acabarão por dar pelo embuste e o efeito adjuvante irá perder-se. Quem não for capaz de sentir verdadeiramente a compaixão e de exercer o seu mister com bondade, deverá escolher outro ofício, em vez de ser médico.
Entendo os constrangimentos que se colocam hoje à nossa atividade profissional. Os patrões querem rentabilizar o que nos pagam e obrigam-nos a consultas em contrarrelógio, quando não à telemedicina. Haverá que contrariar essa tendência. Teremos de nos manter próximos dos doentes.
Hoje, como ontem, as palavras e as atitudes têm efeitos terapêuticos. Tolos serão os médicos que as desprezem.
Mesmo com tecnologias novas e revolucionárias, a natureza humana não mudará e será bom tê-la em linha de conta. A ligação entre aquele que trata e aquele que sofre, independentemente dos avanços tecnológicos, deverá continuar a ser uma relação humana privilegiada.





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