Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

 


       JOSEF MENGELE





I

Não houve deuses entre os médicos. Apolo e Imhotep não se registaram nas nossas associações profissionais. Há conhecimento de alguns santos. Quanto aos demónios, consta que se espalharam pelo mundo. Alguns terão vestido a bata branca.

Vou debruçar-me sobre a figura de Josef Mengele, o Anjo da Morte. O seu percurso profissional constitui provavelmente a nódoa mais negra nos pergaminhos da milenar História da Medicina.  

Mengele nasceu a 16 de março de 1911 em Günzburg, uma pequena cidade da Baviera, situada perto do rio Danúbio. Era o filho mais velho de Karl e Walburga Mengele. Tinha dois irmãos, Karl Jr. e Alois. Morreria afogado no Brasil, na praia de Enseada, próximo de São Paulo, em 1978.

O pai, engenheiro, era proprietário de uma fábrica de equipamentos agrícolas que prosperou entre as duas grandes guerras e acabou por se tornar na principal empregadora da região.

Quando Josef fez dez anos, o pai ofereceu-lhe um microscópio.

       O puto não o largava. Sonhava vir a ser famoso, como o médico Robert Koch que identificara o bacilo da tuberculose, ou o químico August Kekulé que descobrira a tetravalência do carbono e a fórmula do benzeno.

        O rapazito cresceu sem paz no coração. Detestava a mãe, Walburga, mas herdara dela a pobreza das emoções e a frieza nos contactos. Abominava em especial o seu irmão Karl, favorito da mãe.

Josef era um jovem tenaz e ambicioso. Decidiu cedo abrir no mundo o seu próprio trilho. Bom aluno, sem alcançar a distinção, quando chegou a altura de escolher profissão optou pela Antropologia e pela Genética. Em outubro de 1930, deixou a casa paterna e foi estudar para Munique, a capital bávara. Matriculou-se nas Faculdades de Filosofia e de Medicina.

Na altura, Munique era um viveiro de nazis. Hitler era venerado. Culpava repetidamente os judeus corruptos de Berlim pela rendição da Alemanha que pusera termo, de forma vergonhosa, à Primeira Guerra Mundial. Pregava o ultranacionalismo e pretendia exterminar a “praga judaica” e valorizar a superior raça alemã.

Em março de 1931, Mengele aderiu à ala juvenil dos Stahhelm, uma organização de antigos combatentes. Entraria para o partido nazi apenas seis anos mais tarde.

O rapaz descobriu depressa que o estudo das raízes culturais do homem lhe interessava mais do que o tratamento dos doentes.

A eutanásia era vivamente discutida pelos seus colegas e por alguns professores. A noção de que existiam vidas que não mereciam ser vividas ia-se fazendo popular na Universidade.

Tudo o que de importante se passou na sua vida foi delineado nessa altura. Dez anos depois, Mengele fazia experiências com os prisioneiros do campo de concentração como se de cobaias se tratasse.

Uma das pessoas que o influenciou mais cedo foi o Dr. Ernst Rüdin. O psiquiatra proclamava abertamente nas suas palestras que os médicos tinham o dever de destruir as vidas desprovidas de valor. Rudin foi um dos mentores da Lei de Proteção da Saúde Hereditária que seria aprovada pelo governo nazi poucos meses depois da subida de Hitler ao poder. A Lei impunha a esterilização dos doentes que sofriam de uma série de doenças, quase todas de fundo genético. A lista incluía a esquizofrenia, a psicose maníaco-depressiva, a cegueira e a surdez hereditárias, algumas deformidades físicas e, até, a epilepsia e o alcoolismo.

A besta soltou-se e percorreu a Alemanha. Os programas de eutanásia desenvolveram-se. Começaram pela “morte caridosa” dos doentes mentais incuráveis. Evoluíram rapidamente para os assassínios em massa de ciganos, eslavos e judeus, povos que os nazis consideravam biologicamente inferiores. Quando foi anunciado o propósito do extermínio de todos os judeus da Europa, a chamada Solução Final, poucos alemães ficaram surpreendidos com a notícia.

Ao longo da década de 1930, Josef Mengele estudou em Munique, Viena e Frankfurt. Trabalhava muito e deu nas vistas de alguns intelectuais da época, como Eugene Fischer, eugenista que acompanhara o genocídio de hereros e namas da Namíbia (na altura o Sudoeste Africano, protetorado alemão), e do professor Mollinson, especialista em hereditariedade e higiene racial, que acabaria por orientar a sua tese de licenciatura. Mollison recomendou-o ao barão Otmar von Verschuer, especialista no estudo dos gémeos e grande admirador de Adolf Hitler.

Mengele tornou-se o aluno preferido do professor. Aos 26 anos, foi nomeado assistente de pesquisas no Instituto do Terceiro Reich para a Biologia e a Pureza Racial.

O jovem alimentava a ambição de se tornar professor universitário. Pretendia formar-se em Medicina e doutorar-se em Antropologia. No verão de 1936, fez, em Munique, os exames finais de Medicina. Aprovado, empregou-se no Hospital Universitário de Leipzig.

Conheceu então Irene Schoenbein, que se tornaria a sua primeira mulher.

Irene era alta, loira e bonita. Josef Mengele era elegante e media 1,74 de altura, o que não era muito para um alemão do sexo masculino. Tinha a pele relativamente morena, os olhos cor de avelã e o cabelo castanho-escuro. Fisicamente, não correspondia ao arquétipo do ariano puro.

Em maio de 1938, Mengele foi admitido nas SS (Schutzstaffel, força de elite do exército nazi alemão), depois de ver vasculhado o passado de quatro gerações, para garantir que a família Mengele estava livre de sangue judaico. É quase impossível não recordar aqui as leis da pureza da raça implementadas em Portugal quatro séculos atrás. O espírito esclarecido do grande Marquês de Pombal pôs-lhes fim em 1773 e permitiu a pacificação da sociedade portuguesa e o estabelecimento de igualdade de oportunidades para todos os cidadãos nacionais.

A entrada nas SS obrigava a uma formação básica de três meses na Wehrmacht, o exército regular alemão. Sendo vaidoso, Mengele recusou tatuar o grupo sanguíneo na pele, como era costume dos recrutas.

     Terminado o período de formação, e após um estágio com a infantaria de montanha onde pode exibir as habilidades de esquiador, regressou ao Instituto de Frankfurt, para continuar as suas investigações sob a direção do professor Von Verschuer.

     Em julho de 1939, Josef casou com Irene Schoenbein,

   Cinco semanas após o casamento, rebentou a guerra. Mengele parecia ansiar por ela. Em 1940, ingressou no exército. Um problema renal obrigou-o a esperar alguns meses até ser colocado numa unidade regular.

        Em Agosto, entrou para as Waffen SS e foi colocado na Polónia ocupada.

    Experimentaria pela primeira vez a dureza do combate em junho de1941, quando foi transferido para a Ucrânia. Demonstrou valentia e sangue frio. Cedo recebeu a Cruz de Ferro de Segunda Classe.

   Em janeiro de 1942, Mengele ingressou no corpo médico da divisão Viking das Waffen SS. O seu destacamento penetrou profundamente no território soviético. Em julho, a divisão avançou para a frente de combate e ajudou a conquistar Rostov e Bataisk. A batalha foi sangrenta e demorou cinco dias. Mengele retirou dois soldados feridos de um tanque em chamas, sob fogo inimigo, e prestou-lhes os primeiros socorros. Foi então agraciado com a Cruz de Ferro de Primeira Classe.       

   No final desse ano, seria promovido a Haupsturmführer (capitão) e colocado em Berlin.

Alguns meses mais tarde, von Verschuer foi nomeado diretor do Instituto Kaiser Wilhelm de Berlim para a Antropologia, o ensino da Hereditariedade Humana e a Genética.

Verschuer detinha uma influência considerável junto do poder. Conseguiu transferir Mengele da Rússia para Berlim.

Considerou que existiam condições únicas para a investigação prática e enviou o seu discípulo Mengele para Auschwitz. Chamou-lhe “o maior laboratório da História”.

Em Auschwitz funcionara uma instalação militar do exército polaco. Himmler escolheu-a para local de um enorme campo de concentração e de extermínio, por duas razões fundamentais. Em primeiro lugar, figurava a proximidade de grandes vias de comunicação. Em segundo, a sua situação afastada, com uma população dispersa, permitia camuflar até edifícios de dimensão apreciável.  

Mengele chegou ao campo em maio de 1943. Encontrou uma vasta cerca de arame farpado e eletrificado situada num vale, a uma hora de viagem de Cracóvia, no sul da Polónia.




Quando o médico chegou, o campo encerrava perto de 140 mil prisioneiros e dispunha de vários crematórios e câmaras de gás. Rudolf Höss, o comandante do campo, gabava-se de terem sido ali gaseados num único dia nove mil judeus. É desconhecido o número total de prisioneiros assassinados nas suas instalações. Terá sido entre 1,1 e 1,3 milhões.

Ao campo central, Auschwitz I – Stammlager, estavam associadas duas unidades: Auschwitz II – Birkenau e Auschwitz III – Monowitz.

O jovem médico judeu húngaro Miklos Nyiszli foi abordado por Mengele na própria gare da estação, ao descer de um comboio de deportados, em maio de 1944. A sua especialização em Anatomia Patológica tornava-o útil para o médico nazi, que o escolheu para seu assistente pessoal. Nyiszly descreveu assim Auschwitz, à chegada:

Vi uma imensa chaminé em tijolo vermelho, de base quadrada e afunilando para o topo. Fiquei particularmente impressionado pelas enormes línguas de fogo erguendo-se entre as hastes dos para-raios. Tentei imaginar que infernal cozinhado exigiria tão tremendo fogo. Depois, um vento ligeiro soprou o fumo na minha direção. O nariz e depois a garganta encheram-se do nauseante odor de carne queimada e cabelos a arder.

Nyisly escreveu, logo a seguir:

No interior do campo vislumbro homens com o fato listrado dos forçados. Uns transportam pranchas, outros cavam com pás e picaretas. Ao longo das vedações, a espaço de 30 ou 40 metros, erguem-se torres de vigia. Em cada uma delas, encontra-se um soldado SS por detrás de uma metralhadora montada num tripé.

Auschwitz funcionava essencialmente como local de extermínio, mas era também um campo de trabalho escravo que fornecia mão-de-obra às companhias alemãs empenhadas no esforço de guerra. Os prisioneiros mais robustos eram forçados a trabalhar até à exaustão.

Mais de 30 grandes companhias alemãs beneficiaram do trabalho escravo. Entre elas contam-se algumas bem conhecidas: a Krupp, a AEG Telefunken, a Siemens e a Bayer.

Poucos dias depois de chegar, Mengele teve oportunidade de exibir a sua frieza e a sua determinação. Ocorreu um surto de tifo numa das casernas. O médico resolveu o problema fazendo gasear mais de mil ciganos e ciganas suspeitos de serem portadores da doença.

Repetiria a proeza perto do final do ano. Dessa vez, o tifo instalara-se no campo de mulheres, em Birkenau, na altura sob o controlo de Mengele. O procedimento foi descrito pela Dra. Ella Lingens, uma médica austríaca que serviu ali durante algum tempo:

Mengele enviou para a câmara de gás uma camarata inteira de 600 judias e mandou desinfetar as instalações de alto a baixo. Depois, fez colocar banheiras enormes entre essa camarata e a seguinte. As mulheres dessa camarata foram desinfetadas e transferidas para a camarata limpa, onde receberam uma camisa de noite nova. A camarata seguinte foi tratada do mesmo modo e assim por diante, até terem sido todas desinfetadas. Acabou-se o tifo em Birkenau.

O desprezo do médico nazi pela vida humana deu repetidamente nas vistas. No final de 1944, os alimentos escassearam, deixando de ser possível alimentar, mesmo com uma dieta de poucas calorias, as 40.000 mulheres do Campo C de Birkenau.

Mengele resolveu o problema à sua maneira. Cada noite, uma coluna de camiões transportava mulheres para as câmaras de gás. Foram executadas diariamente quatro mil. Os gritos de pavor das condenadas não impressionavam o clínico. Ao fim de dez noites tinham sido assassinadas todas as ocupantes dos pavilhões.

Aos 32 anos, Josef Mengele era um homem preocupado com a aparência pessoal. Apresentava-se bem penteado e com a barba impecavelmente feita. Envergava o dólman verde-escuro cuidadosamente passado a ferro e trazia as botas luzentes de graxa. Usava o quépi com a caveira das SS ligeiramente inclinado para um lado.




Na gare onde eram recebidos e triados os judeus vindos de toda a Europa sob controlo nazi, os encarregados da escolha aceitavam mal a incumbência e apresentavam-se geralmente embriagados. Mengele destoava do conjunto. Mantinha-se sóbrio, a sorrir e a assobiar alguns compassos da Tosca. No seu modo de ver, a piedade era uma fraqueza. Um homem superior não devia permitir que os sentimentos lhe afetassem a ação.

Cultivava, no entanto, a pose. Apoiava a mão esquerda no cinturão e, de pernas um pouco afastadas, passava os prisioneiros em revista. Com um movimento do pingalim empunhado pela sua mão enluvada, decretava a sorte das vítimas. Os recém-chegados não sabiam que estavam a ser sujeitos a um julgamento sem possibilidade de recurso. As sentenças eram salomónicas: morte à esquerda, vida à direita. Indicava a esquerda aos que iriam ser enviados de imediato para as câmaras de gás. À direita ficava a vida ou, pelo menos, a morte lenta, após uns tantos meses em trabalhos forçados.

Ele e os outros médicos do campo mandavam para as câmaras de gás os velhos, os deficientes, os muito jovens e as mulheres com crianças. Os fisicamente aptos trabalhavam até não poderem mais. 

         Outro médico que fazia a triagem entre a vida e a morte sem necessidade de se embrutecer com álcool era o Dr. Fritz Klein. Odiava todos os judeus desde que um, anos antes, lhe seduzira a noiva.

Mengele terá enviado para cremação cerca de 400 mil seres humanos. Incluíam bebés, crianças, rapariguinhas e idosos. Era o principal fornecedor das câmaras de gás e dos crematórios do campo de concentração.

Encaminhava uns tantos para o laboratório. Era, no seu entender, o maior do mundo e alimentava-se de “material humano adequado”: anões, gigantes, malformados, gémeos. Os gémeos eram um dos objetos preferenciais das suas pesquizas e foram submetidos a tormentos inimagináveis. Crianças presas a lajes de mármore eram lancetadas, sujeitas a punções lombares, injetadas nos olhos e nos órgãos internos com produtos químicos mal conhecidos. Não havia preocupações com a anestesia.

       Mengele pretendia aprender a criar gémeos com características arianas geneticamente manipuladas. Desejava conseguir que uma mulher alemã, ao engravidar, pudesse fornecer duas novas crianças da raça superior, em vez de uma. Era necessário tornar os alemães mais fecundos, de modo a poderem, um dia, povoar de camponeses-soldados os territórios do Leste arrancados aos eslavos. A “raça nórdica” deveria multiplicar-se. O médico desejava produzir super-homens. Os anões interessavam-no pela negativa, com a finalidade de proteger o povo germânico daquela aberração.


  Família de irmãos romenos (sete), ao chegarem a Israel em 1949,  depois de terem sobrevivido a Auschwitz


Josef Mengele, guardião da pureza da estirpe, sonhava com uma brilhante carreira académica e, finda a guerra, com o reconhecimento do Reich vitorioso.

O barão Otmar von Verschuer apoiava as suas pesquisas e ajudava a financiá-las. Mengele punha-o ao corrente dos resultados das experiências e enviava-lhe regularmente amostras dos tecidos colhidos: sangue, órgãos diversos, medula óssea e olhos. O zelo do médico estropiador foi compensado com a atribuição de uma cruz de guerra com espadas.

       Há diversos testemunhos de uma imensa crueldade, ou apenas do total desrespeito do médico nazi pela vida humana.

       O doutor Miklos Nyiszli revelou que Mengele chegou a fazer matar 14 gémeos numa só noite. A doutora Olga Lengyel revelou um episódio particularmente sórdido. Josef Mengele supervisionou cuidadosamente o nascimento de uma criança. Uma hora depois, desinteressou-se do caso e enviou a mãe e o bebé para a câmara de gás.

       Mendel confidenciou um dia à Dra. Lingens, médica judia que, no seu entender, só havia no mundo dois povos com aptidões, os alemães e os judeus. A questão era saber quem viria a ser superior. Por isso, os hebreus deveriam ser destruídos.

       De maio de 1943 a janeiro de 1945, Josef Mengele foi o Anjo da Morte em Auchwitz. Procurava ajudar a cumprir os desígnios de Heinrich Himmler, o seu chefe supremo.

       Ao longo do ano de 1944, os SS queimaram homens, mulheres e crianças, por vezes ainda vivas. Os crematórios tinham pouco descanso. Mais de trezentos e vinte mil judeus húngaros foram exterminados em menos de oito semanas.

Húngaro e judeu era o médico-legista Miklós Nyisli. Durante a primavera e o verão de 1944, foi obrigado a recolher as cabeleiras e a arrancar os dentes de ouro dos cadáveres gaseados, antes de serem metidos nos fornos crematórios. Fora alistado nos Sonderkommandos, os mortos-vivos. Foi a mão operante de Mengele. Abria os crânios e os tórax dos escolhidos por Josef Mengele para as suas experiências. O chefe não gostava de sujar muitas vezes as mãos. 

Nyisli sobreviveu ao pesadelo e redigiu as suas memórias. O seu livro intitulou-se “Médico em Auschwitz” e foi publicado primeiro na Hungria. A edição francesa saiu em 1961.

Conta que Mengele considerava um dever patriótico o envio de judeus para as câmaras de gás.

No barracão de experiências do campo cigano eram praticadas nos infelizes ali admitidos todos os exames médicos imagináveis. Faziam-se punções lombares desnecessárias e procedia-se a trocas de sangue entre gémeos. Dava jeito, para o estudo comparativo dos órgãos, que os gémeos morressem ao mesmo tempo. Mengele encarregava-se disso numa das barracas do sector B de Auschwitz. Injetava-lhes clorofórmio no coração. Os órgãos recolhidos eram enviados para o Instituto Kaiser Wilhem de Berlin, dirigido pelo professor Von Verscher.

O nome de Mengele fazia tremer os prisioneiros. O médico mostrava-se geralmente de bom humor e parecia contente com o que fazia.

Quando ocorreu um surto de escarlatina num barracão ocupado por judias húngaras, Mengele mandou enviá-las para o crematório. Eliminava assim, ao mesmo tempo, a doença e os doentes. Recorrera anteriormente a esse procedimento em casos de tifo. Escreveu Nyisli:

Com uma calma gelada, Mengele mandava-me abrir os cadáveres dos inocentes enviados para a morte. As bactérias eram cultivadas em estufas elétricas e alimentadas com carne humana fresca.

Relatou, mais adiante:

Um dia, desceram de um comboio um pai corcunda e um filho coxo, dois judeus do gueto de Lotz. Mal os viu na rampa, Mengele mandou-os sair da fila de despachou-os para o crematório. Depois de medidos por Nyiszli, os judeus tomaram a última refeição, antes de os SS os obrigarem a despir-se, para então os matarem a tiro.

Nem todos os cadáveres eram incinerados. Mengele enviava alguns esqueletos para o Museu de Antropologia. Selecionou aqueles dois. Conheciam-se duas alternativas para libertar os ossos da carne. Os corpos podiam ser mergulhados em cloreto de cálcio, que consumia as partes moles em cerca de duas semanas. A outra escolha era cozê-los em água a ferver até que a carne se desligasse. Depois, os esqueletos eram colocados em tanques com gasolina. O resto das gorduras era dissolvido e os ossos ficavam limpos e brancos.

Mengele preferia a cozedura, que era mais rápida.

       Preparam-se as fogueiras, barricas de ferro são postas sobre o lume e nestes caldeirões cozinham os corpos do corcunda e do coxo, o pai e o filho, esses modestos judeus de Lodz. Ao cabo de cinco horas, as partes separavam-se facilmente dos ossos.

        Nyiszly mandou apagar o lume. As barricas ficaram ali a arrefecer.

Naquele dia, o crematório não funcionou. Era necessário reparar as chaminés. Um grupo de pedreiros internados foi chamado para esse trabalho.

Às tantas, um dos assistentes do médico judeu entrou a correr no aposento.

̶  Doutor! Os polacos estão a comer a carne das barricas!

Nyiszly levantou-se a correr. Quatro prisioneiros com o uniforme às riscas alimentavam-se da carne do corcunda e do seu filho coxo. Esfomeados, julgavam que se tratava de alimentos destinados aos Sonderkommandos. Os polacos ficaram estarrecidos ao saber o que tinham comido.  

No outono de 1944, quando a guerra já estava perdida para a Alemanha, Josef Mengele deixou-se ficar algum tempo no campo de concentração, enquanto os russos avançavam no terreno. Estaria à espera de um milagre. Continuou a entrar pontualmente na sala de exames do crematório. Permanecia horas ao lado do colega judeu, ora de bata branca e de mãos ensanguentadas a trabalhar de pé, na mesa de dissecção, ora atento aos microscópios e às provetas. Era ali que se descontraía. A atmosfera estava carregada do cheiro da carne e dos cabelos que ardiam. Ouviam-se os gritos de morte e o crepitar dos tiros.

Mesmo em dezembro desse ano, ainda fez experiências. No dia 5, levou 16 anãs do hospital para o laboratório e sujeitou-as aos seus perversos processos de experimentação. Sabe-se que cinco sobreviveram. Supõe-se que as restantes tenham morrido.

Josef Mengele abandonou Auschwitz a 17 de janeiro de 1945. Antes, reuniu os seus dados pessoais. Incluíam uma crónica cuidada dos resultados do seu trabalho no campo de concentração. Achava que esses registos seriam a chave para o sucesso e para a fama. Conservou-os consigo enquanto andava escondido, consciente de que a sua divulgação lhe poderia custar a vida.

Quando abalou, os disparos de artilharia do Exército Vermelho já soavam perto.

Mengele fugiu para oeste. Passou pelo campo de concentração de Gross Rosen, na Silésia, e acabou por se juntar a uma unidade da Wehrmacht em retirada.

Esteve algumas semanas na Checoslováquia. Seguiu depois para Saaz, na região dos Sudetas e deu com um hospital de campanha alemão motorizado. Teve a grata surpresa de encontrar o seu colega e amigo Dr. Hans Kahker. Aconteceu no dia 2 de maio de 1945, a data em que a rádio anunciou o suicídio de Adolf Hitler.  

Mengele integrou-se na unidade hospitalar como médico internista. Relacionou-se então intimamente com uma jovem enfermeira alemã. Quando julgou estar prestes a ser capturado, confiou-lhe a guarda dos seus manuscritos.

Foi recuperá-los antes de partir para a América Latina. Considerava-se um cientista com estudos avançados sobre o eugenismo. Acreditou toda a vida na supremacia da raça alemã.

Mengele e os seus companheiros tentaram escapar aos exércitos aliados, mas acabaram por ser capturados pelos norte-americanos perto da cidade de Weiden. Embora o seu nome figurasse desde abril desse ano na lista dos criminosos de guerra, as comunicações oficiais americanas eram deficientes. Com o seu nome verdadeiro, Josef Mengele acabou por ser libertado e conduzido até à cidade bávara de Ingolstadt. Encontrava-se relativamente perto de casa. Dirigiu-se então, de bicicleta, a Donauwörth, à procura de um antigo condiscípulo, o veterinário Albert Miller. Pediu ao amigo que contatasse a família, em Günzburg.

Entretanto, Miller foi preso pelos americanos. Mengele teve muita sorte nesse dia. Estava escondido num compartimento das traseiras da casa, na altura da detenção, e não foi procurado. Assustou-se, mas não em demasia. Ainda teve ânimo para fazer a perigosa viagem até à zona soviética, a fim de recuperar os documentos que deixara à guarda da sua amante enfermeira. Teve o cuidado de não a incriminar, nunca lhe revelando o nome na biografia que mais tarde redigiu.

Irene Mengele não teve notícia do marido durante quase todo o ano. Presumia que ele estivesse aprisionado ou morto.

Mengele dirigiu-se a Munique, onde morava um amigo seu de confiança. Tratava-se de um romeno de etnia alemã, farmacêutico, que tinha servido com ele em 1942, na divisão Viking, quando lutara na frente oriental.

Foi bem recebido e teve tempo de recuperar forças.

De amigo em amigo, Josef Mengele acolheu-se à proteção do médico Vieland e de sua mulher Annalise. São os nomes de código que figurar nos seus registos.

O médico nazi precisava de ganhar a vida. Eram muitas as famílias que tinham perdido homens durante a guerra e as quintas tinham falta de mão-de-obra. A 30 de outubro de 1945, Mengele, com o nome falso de Fritz Hollman, empregou-se como trabalhador agrícola na propriedade de Georg e Maria Fisher, em Rosenheim. Ganhava 10 marcos por semana.

Mostrou-se um bom empregado e demorou-se lá três anos e meio. Terá trabalhado mais durante esse período do que no resto da sua vida. O senhor das triagens de Auschwitz limitou-se, durante esse tempo, a selecionar batatas.

Nessa época, o seu casamento ainda funcionava e Irene deslocava-se a Rosenheim sempre que podia. No entanto, a ligação ia abrindo fissuras. Irene achava que o homem com quem casara e o fugitivo que agora visitava pareciam pessoas diferentes. Escreveu numa carta a uma amiga:

Conheci Josef Mengele como uma pessoa honrada, decente, conscienciosa, encantadora, elegante e divertida. De outro modo, não me teria casado com ele. Venho de uma família boa e rica e tive muitas oportunidades de me casar. Penso que a sua ambição acabou por ser a sua desgraça.

Em 1946, os americanos, no que ficou conhecido com o “Julgamento dos Médicos”, levaram a tribunal em Nuremberga 23 notáveis médicos e cientistas alemães. Foram incriminados por “conspiração, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e filiação em organizações criminosas”. As acusações incluíam experiências em prisioneiros, esterilização em massa e eutanásia sobre grupos raciais indesejáveis. No final, foram proferidas sete sentenças de morte e cinco penas de prisão perpétua.

Mengele entendeu que nunca estaria seguro na Alemanha Federal.

Finda a guerra, muitos dos nazis mais conhecidos foram-se escapando para a América Latina.

A fuga de Josef Mendele através dos Alpes foi organizada e financiada pela sua família, através de contactos com antigos elementos SS da região de Günsburg.

Mengele começou por viajar de comboio até Innsbruck. Seguiu depois para Steinach, junto à fronteira italiana. A seguir, foi conduzido a pé por um guia, através do desfiladeiro de Brenner.

Já em Itália, dirigiu-se à estação ferroviária e apanhou o comboio para Vitipeno. Permaneceu então durante um mês na Estalagem da Cruz Dourada, onde recebeu dinheiro da família e um novo passaporte. Foi ali que Kurt, o seu passador, o contactou. Após várias peripécias, Mengele acabou por embarcar para Buenos Aires. Estava-se em setembro de1949.


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