JOSEF MENGELE
Não
houve deuses entre os médicos. Apolo e Imhotep não se registaram nas nossas associações profissionais. Há conhecimento de alguns santos. Quanto aos
demónios, consta que se espalharam pelo mundo. Alguns terão vestido a bata
branca.
Vou
debruçar-me sobre a figura de Josef Mengele, o Anjo da Morte. O seu percurso
profissional constitui provavelmente a nódoa mais negra nos pergaminhos da
milenar História da Medicina.
Mengele
nasceu a 16 de março de 1911 em Günzburg, uma pequena cidade da Baviera,
situada perto do rio Danúbio. Era o filho mais velho de Karl e Walburga Mengele.
Tinha dois irmãos, Karl Jr. e Alois. Morreria afogado no Brasil, na praia de
Enseada, próximo de São Paulo, em 1978.
O pai,
engenheiro, era proprietário de uma fábrica de equipamentos agrícolas que
prosperou entre as duas grandes guerras e acabou por se tornar na principal
empregadora da região.
Quando
Josef fez dez anos, o pai ofereceu-lhe um microscópio.
O puto não o largava. Sonhava vir a ser famoso, como o médico Robert
Koch que identificara o bacilo da tuberculose, ou o químico August Kekulé que
descobrira a tetravalência do carbono e a fórmula do benzeno.
O rapazito cresceu sem paz no coração. Detestava a mãe, Walburga, mas
herdara dela a pobreza das emoções e a frieza nos contactos. Abominava em
especial o seu irmão Karl, favorito da mãe.
Josef
era um jovem tenaz e ambicioso. Decidiu cedo abrir no mundo o seu próprio
trilho. Bom aluno, sem alcançar a distinção, quando chegou a altura de escolher
profissão optou pela Antropologia e pela Genética. Em outubro de 1930, deixou a
casa paterna e foi estudar para Munique, a capital bávara. Matriculou-se nas
Faculdades de Filosofia e de Medicina.
Na
altura, Munique era um viveiro de nazis. Hitler era venerado. Culpava repetidamente
os judeus corruptos de Berlim pela rendição da Alemanha que pusera termo, de
forma vergonhosa, à Primeira Guerra Mundial. Pregava o ultranacionalismo e
pretendia exterminar a “praga judaica” e valorizar a superior raça alemã.
Em
março de 1931, Mengele aderiu à ala juvenil dos Stahhelm, uma organização de
antigos combatentes. Entraria para o partido nazi apenas seis anos mais tarde.
O rapaz descobriu depressa que o estudo das raízes culturais do homem lhe
interessava mais do que o tratamento dos doentes.
A
eutanásia era vivamente discutida pelos seus colegas e por alguns professores.
A noção de que existiam vidas que não mereciam ser vividas ia-se fazendo
popular na Universidade.
Tudo o
que de importante se passou na sua vida foi delineado nessa altura. Dez anos
depois, Mengele fazia experiências com os prisioneiros do campo de concentração
como se de cobaias se tratasse.
Uma
das pessoas que o influenciou mais cedo foi o Dr. Ernst Rüdin. O psiquiatra proclamava
abertamente nas suas palestras que os médicos tinham o dever de destruir as
vidas desprovidas de valor. Rudin foi um dos mentores da Lei de Proteção da
Saúde Hereditária que seria aprovada pelo governo nazi poucos meses depois da
subida de Hitler ao poder. A Lei impunha a esterilização dos doentes que
sofriam de uma série de doenças, quase todas de fundo genético. A lista incluía
a esquizofrenia, a psicose maníaco-depressiva, a cegueira e a surdez
hereditárias, algumas deformidades físicas e, até, a epilepsia e o alcoolismo.
A
besta soltou-se e percorreu a Alemanha. Os programas de eutanásia
desenvolveram-se. Começaram pela “morte caridosa” dos doentes mentais
incuráveis. Evoluíram rapidamente para os assassínios em massa de ciganos,
eslavos e judeus, povos que os nazis consideravam biologicamente inferiores.
Quando foi anunciado o propósito do extermínio de todos os judeus da Europa, a
chamada Solução Final, poucos alemães ficaram surpreendidos com a notícia.
Ao
longo da década de 1930, Josef Mengele estudou em Munique, Viena e Frankfurt.
Trabalhava muito e deu nas vistas de alguns intelectuais da época, como Eugene
Fischer, eugenista que acompanhara o genocídio de hereros e namas da Namíbia
(na altura o Sudoeste Africano, protetorado alemão), e do professor Mollinson,
especialista em hereditariedade e higiene racial, que acabaria por orientar a
sua tese de licenciatura. Mollison recomendou-o ao barão Otmar von Verschuer,
especialista no estudo dos gémeos e grande admirador de Adolf Hitler.
Mengele
tornou-se o aluno preferido do professor. Aos 26 anos, foi nomeado assistente
de pesquisas no Instituto do Terceiro Reich para a Biologia e a Pureza Racial.
O
jovem alimentava a ambição de se tornar professor universitário. Pretendia
formar-se em Medicina e doutorar-se em Antropologia. No verão de 1936, fez, em
Munique, os exames finais de Medicina. Aprovado, empregou-se no Hospital
Universitário de Leipzig.
Conheceu
então Irene Schoenbein, que se tornaria a sua primeira mulher.
Irene
era alta, loira e bonita. Josef Mengele era elegante e media 1,74 de altura, o
que não era muito para um alemão do sexo masculino. Tinha a pele relativamente
morena, os olhos cor de avelã e o cabelo castanho-escuro. Fisicamente, não
correspondia ao arquétipo do ariano puro.
Em
maio de 1938, Mengele foi admitido nas SS (Schutzstaffel, força de elite do
exército nazi alemão), depois de ver vasculhado o passado de quatro gerações,
para garantir que a família Mengele estava livre de sangue judaico. É quase
impossível não recordar aqui as leis da pureza da raça implementadas em Portugal
quatro séculos atrás. O espírito esclarecido do grande Marquês de Pombal
pôs-lhes fim em 1773 e permitiu a pacificação da sociedade portuguesa e o
estabelecimento de igualdade de oportunidades para todos os cidadãos nacionais.
A
entrada nas SS obrigava a uma formação básica de três meses na Wehrmacht, o
exército regular alemão. Sendo vaidoso, Mengele recusou tatuar o grupo
sanguíneo na pele, como era costume dos recrutas.
Terminado o período de formação, e após um estágio com a infantaria de
montanha onde pode exibir as habilidades de esquiador, regressou ao Instituto
de Frankfurt, para continuar as suas investigações sob a direção do professor
Von Verschuer.
Em julho de 1939, Josef casou com Irene Schoenbein,
Cinco semanas após o casamento, rebentou a guerra. Mengele parecia
ansiar por ela. Em 1940, ingressou no exército. Um problema renal obrigou-o a
esperar alguns meses até ser colocado numa unidade regular.
Em Agosto, entrou para as Waffen SS e foi colocado na Polónia ocupada.
Experimentaria pela primeira vez a dureza do
combate em junho de1941, quando foi transferido para a Ucrânia. Demonstrou
valentia e sangue frio. Cedo recebeu a Cruz de Ferro de Segunda Classe.
Em janeiro de 1942, Mengele ingressou no corpo médico da divisão Viking das Waffen SS. O seu destacamento penetrou profundamente no território soviético. Em julho, a divisão avançou para a frente de combate e ajudou a conquistar Rostov e Bataisk. A batalha foi sangrenta e demorou cinco dias. Mengele retirou dois soldados feridos de um tanque em chamas, sob fogo inimigo, e prestou-lhes os primeiros socorros. Foi então agraciado com a Cruz de Ferro de Primeira Classe.
No final desse ano, seria promovido a Haupsturmführer (capitão) e colocado em Berlin.
Alguns
meses mais tarde, von Verschuer foi nomeado diretor do Instituto Kaiser Wilhelm
de Berlim para a Antropologia, o ensino da Hereditariedade Humana e a Genética.
Verschuer
detinha uma influência considerável junto do poder. Conseguiu transferir
Mengele da Rússia para Berlim.
Considerou
que existiam condições únicas para a investigação prática e enviou o seu
discípulo Mengele para Auschwitz. Chamou-lhe “o maior laboratório da História”.
Em Auschwitz
funcionara uma instalação militar do exército polaco. Himmler escolheu-a para
local de um enorme campo de concentração e de extermínio, por duas razões
fundamentais. Em primeiro lugar, figurava a proximidade de grandes vias de
comunicação. Em segundo, a sua situação afastada, com uma população dispersa,
permitia camuflar até edifícios de dimensão apreciável.
Mengele
chegou ao campo em maio de 1943. Encontrou uma vasta cerca de arame farpado e
eletrificado situada num vale, a uma hora de viagem de Cracóvia, no sul da
Polónia.
Quando
o médico chegou, o campo encerrava perto de 140 mil prisioneiros e dispunha de vários
crematórios e câmaras de gás. Rudolf Höss, o comandante do campo, gabava-se de
terem sido ali gaseados num único dia nove mil judeus. É desconhecido o número total de prisioneiros assassinados nas
suas instalações. Terá sido entre 1,1 e 1,3 milhões.
Ao
campo central, Auschwitz I – Stammlager, estavam associadas duas unidades: Auschwitz
II – Birkenau e Auschwitz III – Monowitz.
O
jovem médico judeu húngaro Miklos Nyiszli foi abordado por Mengele na própria
gare da estação, ao descer de um comboio de deportados, em maio de 1944. A sua
especialização em Anatomia Patológica tornava-o útil para o médico nazi, que o
escolheu para seu assistente pessoal. Nyiszly descreveu assim Auschwitz, à
chegada:
Vi uma imensa chaminé em tijolo
vermelho, de base quadrada e afunilando para o topo. Fiquei particularmente
impressionado pelas enormes línguas de fogo erguendo-se entre as hastes dos
para-raios. Tentei imaginar que infernal cozinhado exigiria tão tremendo fogo.
Depois, um vento ligeiro soprou o fumo na minha direção. O nariz e depois a
garganta encheram-se do nauseante odor de carne queimada e cabelos a arder.
Nyisly escreveu, logo a seguir:
No interior do campo vislumbro homens
com o fato listrado dos forçados. Uns transportam pranchas, outros cavam com
pás e picaretas. Ao longo das vedações, a espaço de 30 ou 40 metros, erguem-se
torres de vigia. Em cada uma delas, encontra-se um soldado SS por detrás de uma
metralhadora montada num tripé.
Auschwitz
funcionava essencialmente como local de extermínio, mas era também um campo de
trabalho escravo que fornecia mão-de-obra às companhias alemãs empenhadas no
esforço de guerra. Os prisioneiros mais robustos eram forçados a trabalhar até
à exaustão.
Mais
de 30 grandes companhias alemãs beneficiaram do trabalho escravo. Entre elas
contam-se algumas bem conhecidas: a Krupp, a AEG Telefunken, a Siemens e a
Bayer.
Poucos
dias depois de chegar, Mengele teve oportunidade de exibir a sua frieza e a sua
determinação. Ocorreu um surto de tifo numa das casernas. O médico resolveu o
problema fazendo gasear mais de mil ciganos e ciganas suspeitos de serem
portadores da doença.
Repetiria
a proeza perto do final do ano. Dessa vez, o tifo instalara-se no campo de
mulheres, em Birkenau, na altura sob o controlo de Mengele. O procedimento foi
descrito pela Dra. Ella Lingens, uma médica austríaca que serviu ali durante algum
tempo:
Mengele enviou para a câmara de gás uma
camarata inteira de 600 judias e mandou desinfetar as instalações de alto a
baixo. Depois, fez colocar banheiras enormes entre essa camarata e a seguinte.
As mulheres dessa camarata foram desinfetadas e transferidas para a camarata
limpa, onde receberam uma camisa de noite nova. A camarata seguinte foi tratada
do mesmo modo e assim por diante, até terem sido todas desinfetadas. Acabou-se
o tifo em Birkenau.
O
desprezo do médico nazi pela vida humana deu repetidamente nas vistas. No final
de 1944, os alimentos escassearam, deixando de ser possível alimentar, mesmo
com uma dieta de poucas calorias, as 40.000 mulheres do Campo C de Birkenau.
Mengele
resolveu o problema à sua maneira. Cada noite, uma coluna de camiões
transportava mulheres para as câmaras de gás. Foram executadas diariamente
quatro mil. Os gritos de pavor das condenadas não impressionavam o clínico. Ao
fim de dez noites tinham sido assassinadas todas as ocupantes dos pavilhões.
Aos 32
anos, Josef Mengele era um homem preocupado com a aparência pessoal.
Apresentava-se bem penteado e com a barba impecavelmente feita. Envergava o
dólman verde-escuro cuidadosamente passado a ferro e trazia as botas luzentes
de graxa. Usava o quépi com a caveira das SS ligeiramente inclinado para um lado.
Na
gare onde eram recebidos e triados os judeus vindos de toda a Europa sob controlo
nazi, os encarregados da escolha aceitavam mal a incumbência e apresentavam-se
geralmente embriagados. Mengele destoava do conjunto. Mantinha-se sóbrio, a sorrir
e a assobiar alguns compassos da Tosca. No seu modo de ver, a piedade era uma
fraqueza. Um homem superior não devia permitir que os sentimentos lhe afetassem
a ação.
Cultivava,
no entanto, a pose. Apoiava a mão esquerda no cinturão e, de pernas um pouco
afastadas, passava os prisioneiros em revista. Com um movimento do pingalim
empunhado pela sua mão enluvada, decretava a sorte das vítimas. Os
recém-chegados não sabiam que estavam a ser sujeitos a um julgamento sem possibilidade
de recurso. As sentenças eram salomónicas: morte à esquerda, vida à direita.
Indicava a esquerda aos que iriam ser enviados de imediato para as câmaras de
gás. À direita ficava a vida ou, pelo menos, a morte lenta, após uns tantos
meses em trabalhos forçados.
Ele e
os outros médicos do campo mandavam para as câmaras de gás os velhos, os
deficientes, os muito jovens e as mulheres com crianças. Os fisicamente aptos
trabalhavam até não poderem mais.
Outro médico que fazia a triagem entre a vida e a morte sem necessidade
de se embrutecer com álcool era o Dr. Fritz Klein. Odiava todos os judeus desde
que um, anos antes, lhe seduzira a noiva.
Mengele
terá enviado para cremação cerca de 400 mil seres humanos. Incluíam bebés,
crianças, rapariguinhas e idosos. Era o principal fornecedor das câmaras de gás
e dos crematórios do campo de concentração.
Encaminhava
uns tantos para o laboratório. Era, no seu entender, o maior do mundo e
alimentava-se de “material humano adequado”: anões, gigantes, malformados,
gémeos. Os gémeos eram um dos objetos preferenciais das suas pesquizas e foram
submetidos a tormentos inimagináveis. Crianças presas a lajes de mármore eram
lancetadas, sujeitas a punções lombares, injetadas nos olhos e nos órgãos
internos com produtos químicos mal conhecidos. Não havia preocupações com a
anestesia.
Mengele pretendia aprender a criar gémeos com características arianas
geneticamente manipuladas. Desejava conseguir que uma mulher alemã, ao
engravidar, pudesse fornecer duas novas crianças da raça superior, em vez de
uma. Era necessário tornar os alemães mais fecundos, de modo a poderem, um dia,
povoar de camponeses-soldados os territórios do Leste arrancados aos eslavos. A
“raça nórdica” deveria multiplicar-se. O médico desejava produzir super-homens.
Os anões interessavam-no pela negativa, com a finalidade de proteger o povo germânico
daquela aberração.
Josef Mengele, guardião da pureza da estirpe,
sonhava com uma brilhante carreira académica e, finda a guerra, com o
reconhecimento do Reich vitorioso.
O
barão Otmar von Verschuer apoiava as suas pesquisas e ajudava a financiá-las.
Mengele punha-o ao corrente dos resultados das experiências e enviava-lhe
regularmente amostras dos tecidos colhidos: sangue, órgãos diversos, medula
óssea e olhos. O zelo do médico estropiador foi compensado com a atribuição de
uma cruz de guerra com espadas.
Há diversos testemunhos de
uma imensa crueldade, ou apenas do total desrespeito do médico nazi pela vida
humana.
O doutor Miklos Nyiszli revelou que Mengele chegou a fazer matar 14
gémeos numa só noite. A doutora Olga Lengyel revelou um episódio
particularmente sórdido. Josef Mengele supervisionou cuidadosamente o
nascimento de uma criança. Uma hora depois, desinteressou-se do caso e enviou a
mãe e o bebé para a câmara de gás.
Mendel confidenciou um dia à Dra. Lingens,
médica judia que, no seu entender, só havia no mundo dois povos com aptidões,
os alemães e os judeus. A questão era saber quem viria a ser superior. Por isso,
os hebreus deveriam ser destruídos.
De maio de 1943 a janeiro de 1945, Josef Mengele foi o Anjo da Morte
em Auchwitz. Procurava ajudar a cumprir os desígnios de Heinrich Himmler, o seu
chefe supremo.
Ao longo do ano de 1944, os SS queimaram homens, mulheres e crianças, por
vezes ainda vivas. Os crematórios tinham pouco descanso. Mais de trezentos e
vinte mil judeus húngaros foram exterminados em menos de oito semanas.
Húngaro
e judeu era o médico-legista Miklós Nyisli. Durante a primavera e o verão de
1944, foi obrigado a recolher as cabeleiras e a arrancar os dentes de ouro dos
cadáveres gaseados, antes de serem metidos nos fornos crematórios. Fora
alistado nos Sonderkommandos, os mortos-vivos. Foi a mão operante de
Mengele. Abria os crânios e os tórax dos escolhidos por Josef Mengele para as suas
experiências. O chefe não gostava de sujar muitas vezes as mãos.
Nyisli
sobreviveu ao pesadelo e redigiu as suas memórias. O seu livro intitulou-se
“Médico em Auschwitz” e foi publicado primeiro na Hungria. A edição francesa
saiu em 1961.
Conta
que Mengele considerava um dever patriótico o envio de judeus para as câmaras
de gás.
No
barracão de experiências do campo cigano eram praticadas nos infelizes ali
admitidos todos os exames médicos imagináveis. Faziam-se punções lombares
desnecessárias e procedia-se a trocas de sangue entre gémeos. Dava jeito, para
o estudo comparativo dos órgãos, que os gémeos morressem ao mesmo tempo.
Mengele encarregava-se disso numa das barracas do sector B de Auschwitz.
Injetava-lhes clorofórmio no coração. Os órgãos recolhidos eram enviados para o
Instituto Kaiser Wilhem de Berlin, dirigido pelo professor Von Verscher.
O nome
de Mengele fazia tremer os prisioneiros. O médico mostrava-se geralmente de bom
humor e parecia contente com o que fazia.
Quando
ocorreu um surto de escarlatina num barracão ocupado por judias húngaras,
Mengele mandou enviá-las para o crematório. Eliminava assim, ao mesmo tempo, a
doença e os doentes. Recorrera anteriormente a esse procedimento em casos de
tifo. Escreveu Nyisli:
Com uma calma gelada, Mengele
mandava-me abrir os cadáveres dos inocentes enviados para a morte. As bactérias
eram cultivadas em estufas elétricas e alimentadas com carne humana fresca.
Relatou, mais adiante:
Um dia, desceram de um comboio um pai
corcunda e um filho coxo, dois judeus do gueto de Lotz. Mal os viu na rampa, Mengele
mandou-os sair da fila de despachou-os para o crematório. Depois de medidos por
Nyiszli, os judeus tomaram a última refeição, antes de os SS os obrigarem a
despir-se, para então os matarem a tiro.
Nem todos
os cadáveres eram incinerados. Mengele enviava alguns esqueletos para o Museu
de Antropologia. Selecionou aqueles dois. Conheciam-se duas alternativas para
libertar os ossos da carne. Os corpos podiam ser mergulhados em cloreto de
cálcio, que consumia as partes moles em cerca de duas semanas. A outra escolha
era cozê-los em água a ferver até que a carne se desligasse. Depois, os
esqueletos eram colocados em tanques com gasolina. O resto das gorduras era
dissolvido e os ossos ficavam limpos e brancos.
Mengele
preferia a cozedura, que era mais rápida.
Preparam-se as fogueiras, barricas de
ferro são postas sobre o lume e nestes caldeirões cozinham os corpos do
corcunda e do coxo, o pai e o filho, esses modestos judeus de Lodz. Ao cabo de
cinco horas, as partes separavam-se facilmente dos ossos.
Nyiszly mandou apagar o lume. As barricas
ficaram ali a arrefecer.
Naquele
dia, o crematório não funcionou. Era necessário reparar as chaminés. Um grupo
de pedreiros internados foi chamado para esse trabalho.
Às
tantas, um dos assistentes do médico judeu entrou a correr no aposento.
̶ Doutor! Os polacos estão a comer a carne das
barricas!
Nyiszly
levantou-se a correr. Quatro prisioneiros com o uniforme às riscas
alimentavam-se da carne do corcunda e do seu filho coxo. Esfomeados, julgavam
que se tratava de alimentos destinados aos Sonderkommandos. Os polacos ficaram
estarrecidos ao saber o que tinham comido.
No
outono de 1944, quando a guerra já estava perdida para a Alemanha, Josef
Mengele deixou-se ficar algum tempo no campo de concentração, enquanto os
russos avançavam no terreno. Estaria à espera de um milagre. Continuou a entrar
pontualmente na sala de exames do crematório. Permanecia horas ao lado do
colega judeu, ora de bata branca e de mãos ensanguentadas a trabalhar de pé, na
mesa de dissecção, ora atento aos microscópios e às provetas. Era ali que se
descontraía. A atmosfera estava carregada do cheiro da carne e dos cabelos que
ardiam. Ouviam-se os gritos de morte e o crepitar dos tiros.
Mesmo
em dezembro desse ano, ainda fez experiências. No dia 5, levou 16 anãs do
hospital para o laboratório e sujeitou-as aos seus perversos processos de
experimentação. Sabe-se que cinco sobreviveram. Supõe-se que as restantes
tenham morrido.
Josef
Mengele abandonou Auschwitz a 17 de janeiro de 1945. Antes, reuniu os seus
dados pessoais. Incluíam uma crónica cuidada dos resultados do seu trabalho no
campo de concentração. Achava que esses registos seriam a chave para o sucesso
e para a fama. Conservou-os consigo enquanto andava escondido, consciente de
que a sua divulgação lhe poderia custar a vida.
Quando
abalou, os disparos de artilharia do Exército Vermelho já soavam perto.
Mengele
fugiu para oeste. Passou pelo campo de concentração de Gross Rosen, na Silésia,
e acabou por se juntar a uma unidade da Wehrmacht em retirada.
Esteve
algumas semanas na Checoslováquia. Seguiu depois para Saaz, na região dos Sudetas
e deu com um hospital de campanha alemão motorizado. Teve a grata surpresa de
encontrar o seu colega e amigo Dr. Hans Kahker. Aconteceu no dia 2 de maio de
1945, a data em que a rádio anunciou o suicídio de Adolf Hitler.
Mengele
integrou-se na unidade hospitalar como médico internista. Relacionou-se então
intimamente com uma jovem enfermeira alemã. Quando julgou estar prestes a ser
capturado, confiou-lhe a guarda dos seus manuscritos.
Foi
recuperá-los antes de partir para a América Latina. Considerava-se um cientista
com estudos avançados sobre o eugenismo. Acreditou toda a vida na supremacia da
raça alemã.
Mengele
e os seus companheiros tentaram escapar aos exércitos aliados, mas acabaram por
ser capturados pelos norte-americanos perto da cidade de Weiden. Embora o seu
nome figurasse desde abril desse ano na lista dos criminosos de guerra, as
comunicações oficiais americanas eram deficientes. Com o seu nome verdadeiro,
Josef Mengele acabou por ser libertado e conduzido até à cidade bávara de
Ingolstadt. Encontrava-se relativamente perto de casa. Dirigiu-se então, de
bicicleta, a Donauwörth, à procura de um antigo condiscípulo, o veterinário
Albert Miller. Pediu ao amigo que contatasse a família, em Günzburg.
Entretanto,
Miller foi preso pelos americanos. Mengele teve muita sorte nesse dia. Estava
escondido num compartimento das traseiras da casa, na altura da detenção, e não
foi procurado. Assustou-se, mas não em demasia. Ainda teve ânimo para fazer a
perigosa viagem até à zona soviética, a fim de recuperar os documentos que
deixara à guarda da sua amante enfermeira. Teve o cuidado de não a incriminar,
nunca lhe revelando o nome na biografia que mais tarde redigiu.
Irene
Mengele não teve notícia do marido durante quase todo o ano. Presumia que ele
estivesse aprisionado ou morto.
Mengele
dirigiu-se a Munique, onde morava um amigo seu de confiança. Tratava-se de um
romeno de etnia alemã, farmacêutico, que tinha servido com ele em 1942, na
divisão Viking, quando lutara na frente oriental.
Foi
bem recebido e teve tempo de recuperar forças.
De
amigo em amigo, Josef Mengele acolheu-se à proteção do médico Vieland e de sua
mulher Annalise. São os nomes de código que figurar nos seus registos.
O médico
nazi precisava de ganhar a vida. Eram muitas as famílias que tinham perdido homens
durante a guerra e as quintas tinham falta de mão-de-obra. A 30 de outubro de
1945, Mengele, com o nome falso de Fritz Hollman, empregou-se como trabalhador
agrícola na propriedade de Georg e Maria Fisher, em Rosenheim. Ganhava 10
marcos por semana.
Mostrou-se
um bom empregado e demorou-se lá três anos e meio. Terá trabalhado mais durante
esse período do que no resto da sua vida. O senhor das triagens de Auschwitz
limitou-se, durante esse tempo, a selecionar batatas.
Nessa
época, o seu casamento ainda funcionava e Irene deslocava-se a Rosenheim sempre
que podia. No entanto, a ligação ia abrindo fissuras. Irene achava que o homem
com quem casara e o fugitivo que agora visitava pareciam pessoas diferentes.
Escreveu numa carta a uma amiga:
Conheci Josef Mengele como uma pessoa
honrada, decente, conscienciosa, encantadora, elegante e divertida. De outro
modo, não me teria casado com ele. Venho de uma família boa e rica e tive
muitas oportunidades de me casar. Penso que a sua ambição acabou por ser a sua
desgraça.
Em
1946, os americanos, no que ficou conhecido com o “Julgamento dos Médicos”,
levaram a tribunal em Nuremberga 23 notáveis médicos e cientistas alemães. Foram
incriminados por “conspiração, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e
filiação em organizações criminosas”. As acusações incluíam experiências em
prisioneiros, esterilização em massa e eutanásia sobre grupos raciais
indesejáveis. No final, foram proferidas sete sentenças de morte e cinco penas
de prisão perpétua.
Mengele
entendeu que nunca estaria seguro na Alemanha Federal.
Finda
a guerra, muitos dos nazis mais conhecidos foram-se escapando para a América
Latina.
A fuga
de Josef Mendele através dos Alpes foi organizada e financiada pela sua
família, através de contactos com antigos elementos SS da região de Günsburg.
Mengele
começou por viajar de comboio até Innsbruck. Seguiu depois para Steinach, junto
à fronteira italiana. A seguir, foi conduzido a pé por um guia, através do
desfiladeiro de Brenner.
Já em Itália,
dirigiu-se à estação ferroviária e apanhou o comboio para Vitipeno. Permaneceu
então durante um mês na Estalagem da Cruz Dourada, onde recebeu dinheiro da
família e um novo passaporte. Foi ali que Kurt, o seu passador, o contactou.
Após várias peripécias, Mengele acabou por embarcar para Buenos Aires. Estava-se
em setembro de1949.
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