HARVEY CUSHING
Como
diversas outras especialidades, a Neurocirurgia nasceu da Cirurgia Geral. Aos
poucos, alguns cirurgiões foram-se interessando pela Neurologia e pela
Neurofisiologia.
Os
vestígios arqueológicos da cirurgia craniana são antigos. Outros ossos terão
sido operados. Desconheço-os, e estariam fora do âmbito deste artigo. Eventuais
cirurgias a partes moles do nosso organismo terão sido apagadas muito cedo pela
decomposição dos órgãos.
Tive
ocasião de observar no Museu Geológico de Lisboa alguns crânios humanos
recolhidos em território nacional e trepanados durante o Período Neolítico. No
museu da Lourinhã está preservado um osso parietal trepanado em que a formação
de “calo” ósseo demonstra que o paciente sobreviveu ao ato cirúrgico. Ocorreram
no nosso País outros achados semelhantes, nomeadamente na gruta da Galinha,
perto de Alcanena.
Encontraram-se
crânios trepanados por povos primitivos de todos os continentes, ainda que, na
Ásia, os achados sejam raros. O período neolítico (c.10.000 a c. 3.000 a.C.) é
também designado por Idade da Pedra Polida. Segue-se ao nomadismo do
Paleolítico. O homem torna-se sedentário. Aprende a cultivar a terra e
domestica alguns animais. Ao mesmo tempo que aperfeiçoa as suas técnicas,
desenvolve também preocupações religiosas e culturais. Levanta estruturas
megalíticas, das quais a mais conhecida entre nós é o Cromeleque dos Almendres,
situado perto de Évora. Torna-se mais aparente o culto dos mortos. Nascem
cemitérios monumentais, como os dólmenes ou antas.
É
por essa altura que têm início as trepanações cranianas. No entanto, o papiro
de Edwin Smith (datado do século 17 a.C.) descreve já a superfície do cérebro,
as suas pulsações, o líquido cefalorraquidiano, as meninges e as suturas
cranianas.
Mais
do que uma época cronológica, o Neolítico é uma fase de cultura e não ocorre
simultaneamente em toda a parte. Na Europa, entrou pela Península Ibérica,
quando povos do Médio Oriente se foram ali estabelecendo. Tanto quanto se sabe,
nenhum crânio pré-histórico trepanado na França, Suíça, Bélgica e Países Baixos
é anterior aos dos exemplares ibéricos. Todos os achados peninsulares de
crânios trepanados podem ser datados entre 2.000 e 1.400 A.C. Os operadores
usavam instrumentos de material duro, como o sílex, para efetuar aberturas nos
ossos da calota craniana. As craniectomias, circulares ou ovais, eram levadas a
cabo por uma técnica de raspagem. A maioria das trepanações tinha diâmetros de
30 a 45 milímetros. Menos frequentemente, nas civilizações peruanas pré-Incas,
pequenos orifícios de trépano eram ligados para levantar um retalho ósseo.
O
trépano já existia no tempo de Hipócrates. O cirurgião rodava-o repetidamente
num sentido ou noutro fazendo deslizar as palmas das mãos. Registaram-se
igualmente vestígios de trepanações em cadáveres. Pretendia-se, nestes casos,
obter amuletos ósseos que afastassem os espíritos maus.
As
aberturas resultantes da trepanação tendem a curar com formação de tecido ósseo
novo. A maioria dos doentes escapava à morte. Estudos feitos no Peru puderam
concluir que 62,5% dos doentes ou vítimas viviam o suficiente para desenvolver
“calo” ósseo.
As
motivações para estes procedimentos eram variadas. No passado, seria difícil traçar uma linha
que separasse claramente a Medicina da Magia. Algumas das razões para a
cirurgia são matéria de especulação, embora seja possível estabelecer paralelos
com as motivações detetadas em povos que a praticaram até épocas relativamente
recentes. Várias afeções cranianas eram atribuídas à entrada de demónios. Um
orifício na cabeça proporcionava-lhes uma porta de saída. A epilepsia, “o mal
sagrado”, terá sido responsável por muitas tentativas de tratamento. Em
Portugal, a primeira intervenção neurocirúrgica documentada data de 1710.
Destinou-se a tratar uma fratura do crânio com afundamento.
A partir
de 1861, com o trabalho do médico francês Pierre Broca, nasceu o conceito do
posicionamento específico de determinadas funções cerebrais. Broca operou um
abcesso cerebral que localizou com base em conhecimentos clínicos.
Como
aconteceu nas outras especialidades cirúrgicas, a melhoria dos resultados
operatórios acompanhou o progresso da anestesia, da antissepsia e da assepsia.
Antes
da emergência das modernas técnicas diagnósticas, ocorreu uma época em que os
neurologistas diagnosticavam as afeções do Sistema Nervoso Central,
limitando-se os cirurgiões aos atos operatórios.
William
Macewen (1848-1924), de Glasgow, foi o primeiro cirurgião a remover com sucesso
um tumor cerebral. Estava-se em 1878. O diagnóstico do local da lesão baseou-se
apenas nas características da fase inicial das crises epiléticas. Tratava-se de
um meningioma frontal. Foi totalmente
removido e a doente sobreviveu. O cirurgião
inglês Victor Horsley (1857-1916), em 1886, foi o primeiro a remover com
sucesso um tumor medular. Executou com êxito diversas outras intervenções
neurocirúrgicas.
No
final do século XIX e no começo do XX, desenvolveram-se diversas técnicas
diagnósticas que permitiram localizações topográficas mais exatas. Foi o caso
da encefalografia gasosa e da ventriculografia. Sicard e Forestier, em 1921,
introduziram no arsenal radiológico a mielografia com lipiodol. Egas Moniz
divulgou os primeiros resultados da angiografia cerebral em 1927. Depois,
durante algum tempo, tudo pareceu progredir mais devagar.
Quando,
há cinco décadas, ingressei no Internato de Neurocirurgia no Hospital de S.
José, ainda não havia neurorradiologistas em Lisboa. Eram os neurocirurgiões
que executavam esses exames. Pessoalmente, terei feito cerca de um milhar.
Tratou-se, na maioria dos casos, de angiografias por punção direta das
carótidas. A Tomo Densitometria chegaria logo a seguir. A Ressonância Magnética
Nuclear iria demorar alguns anos mais.
As
especificidades da cirurgia cerebral ajudam a compreender a modéstia dos
resultados operatórios dos pioneiros. Horsley registou taxas de mortalidade que
rondavam os 22 por cento, enquanto outros cirurgiões relatavam mortalidades de
35 e mesmo de 50 e 65 por cento.
Os maus resultados fizeram esmorecer o entusiasmo dos cirurgiões pelas intervenções sobre o cérebro. No começo do século XX, a Neurocirurgia adquirira uma péssima reputação. A situação seria revertida pelo trabalho de dois neurocirurgiões extraordinários: Harvey Cushing e Walter Dandy.
Harvey Cushing em 1938
O
médico que mais contribuiu para desenvolver a Neurocirurgia até que ela fosse
reconhecida como uma especialidade autónoma e indispensável foi o americano Harvey Cushing
(1869-1939).
Cushing desenvolveu as técnicas de controlo da hemorragia, mediante o recurso à compressão do escalpe, à aplicação de cera nas zonas de corte ósseo e à introdução do uso de clips hemostáticos e de termocoagulação. Por volts de 1915, nas suas mãos, a mortalidade operatória dos tumores cerebrais descera para 8,4 por cento. Introduziu também os registos da tensão arterial durante a cirurgia.
Harvey Cushing trabalhou no hospital Johns Hopkins de Baltimore, antes de se transferir para o hospital Peter Bent Brigham em Boston. Deve-se-lhe a sistematização das técnicas cirúrgicas e o treino de diversos jovens neurocirurgiões.
Um dos seus discípulos no Johns Hopkins foi Walter Dandy (1886-1946). Viria a ter um papel de grande relevo no desenvolvimento da Neurocirurgia.
Dandy será sempre lembrado, a par de Cushing. Quando era ainda interno da especialidade, estabeleceu (juntamente com Kenneth Blackfan) o conceito moderno de hidrocefalia, abrindo caminho para o seu tratamento cirúrgico. O seu arrojo permitiu-lhe praticar em seguida a ablação dos plexos coroideus, a ventriculostomia do III ventrículo e a cateterização do Aqueduto de Sylvius. Outros cirurgiões criaram uma grande variedade de processos suscetíveis de drenar o líquido cefalorraquidiano acumulado em excesso nos ventrículos cerebrais ou no espaço subaracnoideu para onde a imaginação os conduzia. Como seria de esperar, destes procedimentos sobreviveram os mais seguros e eficazes.
Walter Dandy introduziu na Imagiologia a ventriculografia e a encefalografia gasosa, a primeira por injeção direta nos ventrículos e a segunda por introdução de ar através duma agulha de punção lombar. Foi um neurocirurgião extraordinário. Desenvolveu acessos cirúrgicos que permitiram expor e extirpar um tumor da pineal e foi o primeiro a remover na totalidade um neurinoma do acústico. Terá sido também o primeiro cirurgião a "clipar" o colo de um aneurisma intracraniano. Passara a ser poucos os recônditos do cérebro onde os neurocirurgiões fossem incapazes de atuar.
Cushing e Dandy não foram os únicos médicos a dar contributos importantes para o progresso da Neurocirurgia. Charles Elsberg, Frazier, Jefferson, Dott e Cairns (os dois últimos foram discípulos de Cushing). Olivecrona (em Estocolmo), Martel e Clovis Vincent (em França) contribuíram também para o desenvolvimento da especialidade. Haveria muitos mais nomes a indicar. Ficarei por aqui. Mesmo que me alongasse, a lista ficaria sempre incompleta.
Ao tempo, muitos neurologistas não acreditavam na Neurocirurgia e eram raros os que referenciavam doentes para operar. As administrações hospitalares não demonstravam grande consideração por aqueles pioneiros iluminados. Consideravam que exigiam material dispendioso e que obtinham poucos resultados. Ainda por cima, manchavam as reputações dos hospitais com as taxas elevadas de insucesso cirúrgico.
Paul
Bucy, eminente neurocirurgião americano, comenta com graça e agudeza as
personalidades dessas duas figuras tutelares da Neurocirurgia mundial e
descreve as relações atribuladas que foram desenvolvendo.
Na
sua opinião, teriam feitios semelhantes. Confiavam nas próprias capacidades e
eram orgulhosos, determinados, temperamentais e extremamente competitivos. Resumindo,
eram difíceis de aturar.
Os
jovens internos fartavam-se depressa daquelas personalidades autocráticas, da
exigência extrema e dos fáceis e muitas vezes injustificados acessos de fúria.
No
que diz respeito a Cushing, diz-se que apenas um colaborador o suportou até ao
fim da formação. Teria um feitio invulgarmente cordato. Não consta que tenha
sido grande profissional. A maioria dos discípulos afastou-se antes de cumprir
o primeiro ano de treino.
Dandy
não seria muito diferente. No entanto, de vez em quando lembrava-se, de certo
modo, de pedir desculpa aos seus colaboradores pelos maus modos e pelos
excessos de linguagem, oferecendo-lhes jantares ou bilhetes para eventos
desportivos.
Walter
Dandy e Harvey Cushing nunca se deram bem. Ter-se-ão detestado logo deste o
início do relacionamento. Lembre-se que Dandy foi, durante cerca de um ano,
discípulo de Cushing no Johns Hopkins Hospital.
Diz-se
que, quando Cushing deixou Baltimore para se instalar em Boston, arrumou junto
aos seus pertences as indicações dos resultados obtidos por Dandy com as suas
experiências. Walter Dandy deu por isso, insurgiu-se e obrigou o chefe a
devolver-lhe o material. A vingança de Cushing foi declarar que aqueles
apontamentos não tinham qualquer valor.
Anos
mais tarde, quando Dandy publicou o seu relato sobre a primeira remoção total
de um neurinoma do acústico, “esqueceu-se” de referir a monografia que Cushing
dedicara antes ao assunto. A reposta de Harvey Cushing não foi meiga.
Curiosamente,
os dois génios da Neurocirurgia influenciaram-se negativamente nos métodos de
operar e até na escolha do material utilizado. Dandy, durante algum tempo, não
aceitou usar o cauterizador elétrico (termocoagulador) desenvolvido por Bovie e
Cushing, nem os clips de prata que McKenzie e Cushing tinha inventado. Cushing
retribuiu-lhe recusando recorrer à ventriculografia como meio de diagnóstico.
Ambos terão perdido eficiência cirúrgica com a animosidade recíproca.
Mais
tarde, Walter Dandy recusou aderir à Society of Neurological Surgeons apadrinhada
por Cushing e à Sociedade Harvey Cushing, por ter o nome do seu rival.
Foquemo-nos agora na vida e no percurso científico de Harvey Cushing, que constituem o objetivo essencial deste trabalho. Comecemos pela sua família e pelo seu nascimento. Cushing nasceu em Cleveland, no Ohio. Era filho, neto e bisneto de médicos. Filho mais novo de uma família numerosa, fez a formação pré-graduada na Universidade de Yale. Portou-se muito bem em Matemática e Ciências e menos bem em línguas mortas. Jogou basebol, ténis e críquete. Em matéria desportiva, ficou conhecido por ter mau perder. Por volta do terceiro ano da sua estadia em Yale, interessou-se pela Medicina.
De Yale, Harvey Cushing mudou-se para a Harvard Medical School, que frequentou durante quatro anos. Ingressou depois, como interno, no Massachusetts General Hospital. Mo ano seguinte, transferiu-se para o Johns Wilkins Hospital, para trabalhar com William Halsted, um grande cirurgião. Nessa altura, contava 27 anos e já mostrava um espírito brilhante e original. Foi Cushing quem introduziu naquele hospital a utilização diagnóstica dos aparelhos de Raios X, antes de ter decorrido um ano sobre a descoberta de Roentgen.
Durante o internato, Cushing interessou-se pela nevralgia do trigémeo. Procedeu a craniotomias em 30 cadáveres, antes de se aventurar a operar uma doente com dores excruciantes. Extirpou o gânglio de Gasser, devolvendo a doente a uma vida normal. Essa intervenção reforçou o seu interesse pela Neurocirurgia.
Cushing teve muitos admiradores e poucos amigos. Um grande amigo de toda a sua vida foi William Osler. Era vinte anos mais velho do que ele e aconselhou-o a fazer uma estadia na Europa.
A
dada altura, Harvey Cushing interessou-se pelo tratamento cirúrgico dos tumores
cerebrais e, em 1900, viajou para Inglaterra, decidido a aprender Neurocirurgia
com Victor Horsley.
Conta
Paul Bucy que Cushing, no dia seguinte à sua chegada, acompanhou Horsley numa
visita domiciliária. A doente sofria de nevralgia do trigémeo e o cirurgião
inglês operou-a logo ali. Fez um grande buraco no crânio da senhora e
levantou-lhe o lobo temporal. Havia sangue por toda a parte. Horsley removeu o
gânglio e encerrou a ferida.
O
americano ficou dececionado e pôs de lado a ideia de estagiar com Victor
Horsley. Passou algum tempo em França, antes de se mudar para a Suíça (Berna),
onde trabalhou com Theodor Kocher, um dos cirurgiões europeus mais conhecidos
na época. No entanto, Kocher interessava-se pouco pelo sistema nervoso e não
tinha grande coisa a oferecer a Cushing. Encaminhou-o para o fisiologista
Kronecker.
No
laboratório de Kronecker, Cushing dedicou-se à experimentação em animais.
Em
cães sujeitos a anestesia geral, injetava no espaço subaracnoindeu soro
fisiológico. Quando a pressão
intracraniana se aproximava da tensão arterial, esta subia e o pulso
lentificava. Era o reflexo que ficou conhecido como “de Cushing”. Seguiam-se
alterações respiratórias graves e a morte dos animais.
Da
Suíça mudou-se para a Itália, continuando a aprender com quem mais sabia.
Passou
ainda algum tempo em Liverpool, tendo sido o primeiro discípulo americano do
fisiologista Charles Sherrington. Cushing e Sherrington corresponderam-se
durante quase quatro décadas. Contribuíram para estabelecer a distinção entre a
faixa motora pré-rolândica e o córtex sensorial. Mais tarde, em 1909, Cushing
estimulou eletricamente a circunvolução pós central de dois doentes conscientes
que referiram sensações em regiões em que as áreas pré-centrais contíguas
induziam movimentos.
A
prolongada estadia na Europa fazia supor um apoio económico familiar sólido e
sustentado. Em 1901, Cushing abandonou o velho continente e regressou a
Baltimore.
Halsted
apreciava Cushing e ainda tentou dissuadi-lo do seu projeto de encetar uma
carreira neurocirúrgica. Durante algum
tempo, Harvey Cushing praticou cirurgia geral, operando tumores cerebrais ou
meningocelos sempre que podia. Utilizou a anestesia local quando tal era
possível.
Publicou
diversos artigos sobre temas de Cirurgia Geral, mas a sua dedicação à
Neurocirurgia acabou por se tornar exclusiva.
No
início de 1909, o Dr. Arthur Cabot encaminhou o general Leonard Wood para o
hospital Johns Hopkins, a fim de ser tratado por Cushing. Wood contava então 48
anos e fora operado em Boston, quatro anos antes, a um tumor do crânio que não
parecia ultrapassar a dura-máter, mas que lhe causava repetidas crises
convulsivas jacksonianas.
A
frequência das crises aumentara, passando a acompanhar-se de paralisia
pós-ictal nos membros esquerdos.
Até
esse ano, tinha sido publicado apenas um caso de sucesso na cirurgia desse tipo
de tumores e a palavra “meningioma” não existia. Seria criada por Cushing em
1922.
Por
essa altura, era incipiente a imagiologia do cérebro e o diagnóstico e a
localização dos tumores intracranianos assentavam apenas em dados clínicos.
Harvey Cushing optou inicialmente por medidas conservadoras, mas a situação do
doente deteriorou-se e, decorrido um ano, viu-se compelido a operar.
Não
se tratava de um doente qualquer. Leonard
Wood era Major-General e Chefe do Estado Maior do Exército dos Estados Unidos.
Sendo médico de carreira (fora médico pessoal dos presidentes Grover Cleveland
e William McKinley) notabilizara-se como chefe militar, deixando criar lendas
acerca dos seus conflitos com os índios apaches, antes conduzir uma brigada
americana à vitória de San Juan Heights, durante a guerra
hispano-americana. Era amigo pessoal do
presidente Theodore Roosevelt e foi governador de Cuba e, mais tarde, da
Província de Moro, nas Filipinas. Chegaria a ser candidato à presidência dos
E.U.A., em 1920, pretendendo suceder a Woodrow Wilson.
Por
essa altura, Cushing recorria apenas à anestesia local. Lembremos que o cérebro
não possui recetores de dor. Ficava a angústia de sentir o próprio crânio ser
aberto.
A
operação decorreu em duas fases, com quatro dias de intervalo. Na primeira
intervenção, Cushing procedeu à craniotomia. A cirurgia foi suspensa devido a
uma hemorragia profusa.
Na
segunda, o cirurgião incisou a dura-máter e expôs a superfície do cérebro e o
tumor. Foi capaz de aproveitar o plano de clivagem entre as duas estruturas.
Poupou as veias de drenagem e conseguiu o que julgou ser a remoção completa da
lesão.
O
pós-operatório foi excelente.
A
excecional destreza do cirurgião foi testemunhada e o sucesso proporcionou-lhe
o reconhecimento público e o aumento na própria confiança na possibilidade de
operar com sucesso tumores cerebrais.
Espero
que os leitores usem agora de benevolência e perdoem um anacronismo.
O tumor acabaria por recidivar. Cushing reoperou o velho general 17 anos
mais tarde. Wood esteve consciente durante a operação. A dada altura, o
cirurgião teve dúvidas sobra a possibilidade de remover totalmente o tumor e
expressou-as. O general instou-o a prosseguir.
O
doente faleceu no pós-operatório imediato. O cirurgião ficou profundamente
abalado com o insucesso e chegou a pensar em abandonar a profissão.
Retomemos
o calendário. Ainda em 1910, o Doutor Arthur Tracy Cabot, propôs a sua nomeação
para professor de Cirurgia da Universidade de Harvard. Aconteceu a Harvey Cushing
receber no intervalo de pouco tempo outro convite honroso: tornar-se
cirurgião-chefe no hospital Peter Bent Brigham.
O
hospital Brigham ainda estava em construção. Seria inaugurado em abril de 1912.
Nesse
ano, Cushing publicou um livro sobre a Hipófise, sublinhando a importância que
a avaliação dos campos visuais tinha para neurologistas e neurocirurgiões.
A
mortalidade operatória registada por ele nesse tipo de cirurgia durante um
período de dez anos foi de 2,4 por cento. Era uma revolução para os parâmetros
da época e seria apenas suplantada, décadas mais tarde, com a introdução de
corticosteroides no período pós-operatório.
Numa
atualização desse trabalho, publicada em 1932, descreveu o efeito da secreção
exagerada de adrenocorticotrofina pelos tumores basófilos da hipófise. O mal
ficou conhecido na literatura médica mundial como “Doença de Cushing”. O
excesso de produção de cortisol pelo córtex suprarrenal tem manifestações
clínicas semelhantes e é denominado “Síndrome de Cushing”
Tive
oportunidade de operar uns tantos doentes que sofriam da doença de Cushing.
Mesmo no tempo da Ressonância Magnética Nuclear, as imagens induziam em erro, havendo
tumores diminutos (alguns pouco maiores que grãos de arroz) por vezes mais
difíceis de encontrar do que de extirpar.
Durante esse período, Cushing tinha já discípulos que se iriam tornar ilustres, como Naffzinger e Dandy. Iria dispor de pouco tempo para se dedicar às tarefas de cirurgião, articulista e professor. Avizinhava-se a Primeira Grande Guerra.
Quando os Estados Unidos da América entraram no conflito, a Universidade de Harvard criou uma unidade para integrar a American Ambulance Care e Cushing foi para França. Passaria lá os quatro anos seguintes. Iria ganhar uma experiência considerável no tratamento de feridas craniocerebrais por armas de fogo e na organização dos serviços médicos militares.
Durante a guerra, tratou do tenente Edward Revere Osler, filho de Sir William Osler, canadiano considerado por muitos um dos pais da Medicina moderna. O jovem tinha sido ferido com gravidade na batalha de Ypres e não sobreviveu.
Muitos anos mais tarde (em 1926), Cushing recebeu o Prémio Pulitzer pela biografia de Osler. Não foi o seu único trabalho nessa área. Entusiasmado com a figura de André Vesálio, publicou também a sua biografia.
Em
1917, publicou uma monografia sobre os tumores do nervo acústico.
No
outono do ano seguinte, durante a ofensiva Meuse-Argonne, Cushing teve de
interromper uma demonstração cirúrgica por ter sentido bruscamente duplicidade
de visão. Desenvolveu a seguir febre e parestesias nos membros. Durante algum
tempo, não foi capaz de caminhar. Ter-se-á tratado do síndromo de Gillan-Barré.
Cushing chegou a recear que a sua carreira cirúrgica tivesse acabado.
Recuperou, ainda que progressivamente. Terá ficado com algumas sequelas.
Cansava-se com facilidade e tinha alguma instabilidade na marcha, o que não o
impediu de se lançar ao trabalho.
Em
fevereiro de 1919, Harvey Cushing regressou a Boston. Trabalharia durante 13
anos no hospital Brigham e na Universidade de Harvard. Operou um número
impressionante de doentes com tumores cerebrais, com resultados cada vez
melhores.
Cushing
não era apenas médico. Alimentava um fascínio pela literatura que já vinha do
seu pai. Foi bibliófilo, homem de cultura e escritor. Não produziu ficção, mas
publicou trabalhos muito interessantes sobre História da Medicina. As suas
biografias de William Osler e William Harvey foram já referidas. Escreveu um
número considerável de trabalhos científicos. Alguns deles irão ser lembrados
durante séculos.
A
sua vida familiar foi prejudicada pela dedicação quase exclusiva ao trabalho.
Terá sido um pai distante. Mesmo em casa, reservava a maior parte das horas do
dia ao estudo e à investigação.
Conheceu
a glória em vida. Era repetidamente convidado para proferir conferências
científicas. Em 1922/1923, foi presidente do Colégio Americano de Cirurgiões.
Harvey
Cushing comia pouco e consumia pouco álcool, mas fumava muito. Desenvolveu
gangrenas isquémicas nos dedos dos pés. Já tinha de lidar com elas, em 1931,
quando abandonou o leito hospitalar para operar o seu segundo milésimo tumor do
cérebro.
Aposentou-se
em 1932. Contava 63 anos de idade. Publicou, na altura, o artigo Intracranial
tumors: notes upon a series of two thousands verified cases with surgical
mortality percentages.
No
ano seguinte, aceitou o cargo de professor de Neurologia e regressou à
Universidade de Yale, onde tinha feito os estudos secundários.
Como
vimos, o período em que Harvey Cushing se dedicou exclusivamente à
Neurocirurgia foi limitado. Foram, contudo, anos frutuosos. Iniciou a formação
de um número considerável de futuros neurocirurgiões. Muitos deles provinham de
países estrangeiros e impulsionaram o desenvolvimento da nova especialidade nas
suas terras de origem. Para além dos americanos Percival Bailey e Charles
Locke, Cushing iniciou na especialidade o belga Paul Martin, o canadiano
Kenneth McKenzie, o romeno Dimitri Bagdezor, o escocês Norman Dott, os ingleses
George Armitage e Hugh Cairns e muitos outros.
Publicou
uma descrição racional dos tumores cerebrais malignos. A classification
of the tumors of the glioma group on a histogenic basis with a correlative
study of prognosis foi impresso em 1926, com a colaboração de Percival
Bayley.
No
ano de 1938, publicou, juntamente com Louise Eisenhardt a notável monografia
sobre meningiomas. Intitulava-se Meningiomas: Their classification,
regional behaviour, life history and surgical end results. A obra continua a ser reconhecida e
respeitada em todo o mundo.
Harvey
Cushing faleceu em outubro de 1939, no seguimento de um enfarte do miocárdio.
Curiosamente, a sua autópsia revelou a presença de uma lesão neurocirúrgica: um
quisto colide do III ventrículo, que permaneceu assintomático.
Quando,
há meio século, entrei para o internato da especialidade de Neurocirurgia no
Hospital de S. José, em Lisboa, os meus colegas gostavam de comparar Cushing
com Dandy. Walter Dandy era o expoente do cirurgião brilhante e quase heroico.
Abordava sem delongas o objetivo, resolvia a questão rapidamente e encerrava.
Cushing
trabalhava de forma diferente. De certo modo, transferira para a especialidade
nova os ensinamentos de Halsted. Era atento aos pormenores, meticuloso e lento.
Ao longo da minha carreira profissional, procurei seguir o seu exemplo.
A
cirurgia demorada de Harvey Cushing chegou a prestar-se a alguma ironia. Um
cirurgião perguntou-lhe um dia se algum tumor tinha já recidivado enquanto
decorria a operação
Mesmo
no último quartel do século XX a rapidez de execução continuava a ser tida numa
conta exagerada por muitos cirurgiões. Compreende-se que tivesse de ser assim
décadas e séculos atrás, quando a anestesia ainda não existia, a hemorragia era
difícil de controlar e havia que proceder depressa e bem. Esse tempo fora
ultrapassado, mas subsistiam adeptos dessa filosofia cirúrgica gloriosa.
Os
da minha geração tornaram-se pioneiros da microcirurgia no nosso país. As
intervenções tornaram-se mais lentas e as vias de acesso mais pequenas.
Operava-se geralmente por fendas estreitas, procurando limitar o afastamento do
tecido cerebral. Os resultados obtidos foram fechando as portas às antigas
opções.
A
Neurocirurgia nasceu na Europa e ali deu os primeiros passos. Foi, contudo, nos
Estados Unidos da América que atingiu a maturidade. Antes de Cushing, era
praticada por neurologistas que empunhavam o bisturi, ou por cirurgiões que
gostavam de Neurologia. A organização de serviços especificamente
neurocirúrgicos conduziu à queda drástica da morbilidade e da mortalidade
operatórias. Segundo Wilder Penfield, Cushing foi o médico que tornou a
cirurgia do cérebro segura e prestigiada.
BIBLIOGRAFIA
Bucy, Paul: Two Giant: Harvey Cushing and Walter Dandy. Em Neurosurgery, Wilkins and Rengachary, Mcgraw-Hill Book Company, 1985.
Rojo. Isquierdo: Concepto y desarrollo de la Neuroicurugia. Em Fundamientos de Neurocirugia, Distribuidora Interamericana, 1978.
Vieira, Ruy: Historial da trepanação craniana, suplemento do jornal Notícias Médicas, nº 2835.
Trabulo, António: Trepanações em crânios neolíticos Blogue historinhasdamedicina, 30/12/ 2009.
Wilkins, Robert: History of Neurosurgery. Em Neurosurgery, Wilkins anda Rengachary, McGraw-Hill Book Company, 1985.
Imagem 1: Museu de Geologia de Lisboa
Imagem 2: Wikipedia.
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