Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

segunda-feira, 20 de março de 2023

 



HARVEY CUSHING


Como diversas outras especialidades, a Neurocirurgia nasceu da Cirurgia Geral. Aos poucos, alguns cirurgiões foram-se interessando pela Neurologia e pela Neurofisiologia.

Os vestígios arqueológicos da cirurgia craniana são antigos. Outros ossos terão sido operados. Desconheço-os, e estariam fora do âmbito deste artigo. Eventuais cirurgias a partes moles do nosso organismo terão sido apagadas muito cedo pela decomposição dos órgãos. 

 


Tive ocasião de observar no Museu Geológico de Lisboa alguns crânios humanos recolhidos em território nacional e trepanados durante o Período Neolítico. No museu da Lourinhã está preservado um osso parietal trepanado em que a formação de “calo” ósseo demonstra que o paciente sobreviveu ao ato cirúrgico. Ocorreram no nosso País outros achados semelhantes, nomeadamente na gruta da Galinha, perto de Alcanena.

Encontraram-se crânios trepanados por povos primitivos de todos os continentes, ainda que, na Ásia, os achados sejam raros. O período neolítico (c.10.000 a c. 3.000 a.C.) é também designado por Idade da Pedra Polida. Segue-se ao nomadismo do Paleolítico. O homem torna-se sedentário. Aprende a cultivar a terra e domestica alguns animais. Ao mesmo tempo que aperfeiçoa as suas técnicas, desenvolve também preocupações religiosas e culturais. Levanta estruturas megalíticas, das quais a mais conhecida entre nós é o Cromeleque dos Almendres, situado perto de Évora. Torna-se mais aparente o culto dos mortos. Nascem cemitérios monumentais, como os dólmenes ou antas.

É por essa altura que têm início as trepanações cranianas. No entanto, o papiro de Edwin Smith (datado do século 17 a.C.) descreve já a superfície do cérebro, as suas pulsações, o líquido cefalorraquidiano, as meninges e as suturas cranianas.

Mais do que uma época cronológica, o Neolítico é uma fase de cultura e não ocorre simultaneamente em toda a parte. Na Europa, entrou pela Península Ibérica, quando povos do Médio Oriente se foram ali estabelecendo. Tanto quanto se sabe, nenhum crânio pré-histórico trepanado na França, Suíça, Bélgica e Países Baixos é anterior aos dos exemplares ibéricos. Todos os achados peninsulares de crânios trepanados podem ser datados entre 2.000 e 1.400 A.C. Os operadores usavam instrumentos de material duro, como o sílex, para efetuar aberturas nos ossos da calota craniana. As craniectomias, circulares ou ovais, eram levadas a cabo por uma técnica de raspagem. A maioria das trepanações tinha diâmetros de 30 a 45 milímetros. Menos frequentemente, nas civilizações peruanas pré-Incas, pequenos orifícios de trépano eram ligados para levantar um retalho ósseo.

O trépano já existia no tempo de Hipócrates. O cirurgião rodava-o repetidamente num sentido ou noutro fazendo deslizar as palmas das mãos. Registaram-se igualmente vestígios de trepanações em cadáveres. Pretendia-se, nestes casos, obter amuletos ósseos que afastassem os espíritos maus.

As aberturas resultantes da trepanação tendem a curar com formação de tecido ósseo novo. A maioria dos doentes escapava à morte. Estudos feitos no Peru puderam concluir que 62,5% dos doentes ou vítimas viviam o suficiente para desenvolver “calo” ósseo.

As motivações para estes procedimentos eram variadas.  No passado, seria difícil traçar uma linha que separasse claramente a Medicina da Magia. Algumas das razões para a cirurgia são matéria de especulação, embora seja possível estabelecer paralelos com as motivações detetadas em povos que a praticaram até épocas relativamente recentes. Várias afeções cranianas eram atribuídas à entrada de demónios. Um orifício na cabeça proporcionava-lhes uma porta de saída. A epilepsia, “o mal sagrado”, terá sido responsável por muitas tentativas de tratamento. Em Portugal, a primeira intervenção neurocirúrgica documentada data de 1710. Destinou-se a tratar uma fratura do crânio com afundamento.

A partir de 1861, com o trabalho do médico francês Pierre Broca, nasceu o conceito do posicionamento específico de determinadas funções cerebrais. Broca operou um abcesso cerebral que localizou com base em conhecimentos clínicos.

Como aconteceu nas outras especialidades cirúrgicas, a melhoria dos resultados operatórios acompanhou o progresso da anestesia, da antissepsia e da assepsia.

Antes da emergência das modernas técnicas diagnósticas, ocorreu uma época em que os neurologistas diagnosticavam as afeções do Sistema Nervoso Central, limitando-se os cirurgiões aos atos operatórios.

William Macewen (1848-1924), de Glasgow, foi o primeiro cirurgião a remover com sucesso um tumor cerebral. Estava-se em 1878. O diagnóstico do local da lesão baseou-se apenas nas características da fase inicial das crises epiléticas. Tratava-se de um meningioma frontal.  Foi totalmente removido e a doente sobreviveu.  O cirurgião inglês Victor Horsley (1857-1916), em 1886, foi o primeiro a remover com sucesso um tumor medular. Executou com êxito diversas outras intervenções neurocirúrgicas.

No final do século XIX e no começo do XX, desenvolveram-se diversas técnicas diagnósticas que permitiram localizações topográficas mais exatas. Foi o caso da encefalografia gasosa e da ventriculografia. Sicard e Forestier, em 1921, introduziram no arsenal radiológico a mielografia com lipiodol. Egas Moniz divulgou os primeiros resultados da angiografia cerebral em 1927. Depois, durante algum tempo, tudo pareceu progredir mais devagar. 

Quando, há cinco décadas, ingressei no Internato de Neurocirurgia no Hospital de S. José, ainda não havia neurorradiologistas em Lisboa. Eram os neurocirurgiões que executavam esses exames. Pessoalmente, terei feito cerca de um milhar. Tratou-se, na maioria dos casos, de angiografias por punção direta das carótidas. A Tomo Densitometria chegaria logo a seguir. A Ressonância Magnética Nuclear iria demorar alguns anos mais.

As especificidades da cirurgia cerebral ajudam a compreender a modéstia dos resultados operatórios dos pioneiros. Horsley registou taxas de mortalidade que rondavam os 22 por cento, enquanto outros cirurgiões relatavam mortalidades de 35 e mesmo de 50 e 65 por cento.

Os maus resultados fizeram esmorecer o entusiasmo dos cirurgiões pelas intervenções sobre o cérebro. No começo do século XX, a Neurocirurgia adquirira uma péssima reputação. A situação seria revertida pelo trabalho de dois neurocirurgiões extraordinários: Harvey Cushing e Walter Dandy.

                              

                   Harvey Cushing em 1938

O médico que mais contribuiu para desenvolver a Neurocirurgia até que ela fosse reconhecida como uma especialidade autónoma e indispensável foi o americano Harvey Cushing (1869-1939).

Cushing desenvolveu as técnicas de controlo da hemorragia, mediante o recurso à compressão do escalpe, à aplicação de cera nas zonas de corte ósseo e à introdução do uso de clips hemostáticos e de termocoagulação. Por volts de 1915, nas suas mãos, a mortalidade operatória dos tumores cerebrais descera para 8,4 por cento. Introduziu também os registos da tensão arterial durante a cirurgia.

Harvey Cushing trabalhou no hospital Johns Hopkins de Baltimore, antes de se transferir para o hospital Peter Bent Brigham em Boston. Deve-se-lhe a sistematização das técnicas cirúrgicas e o treino de diversos jovens neurocirurgiões. 

Um dos seus discípulos no Johns Hopkins foi Walter Dandy (1886-1946). Viria a ter um papel de grande relevo no desenvolvimento da Neurocirurgia.

Dandy será sempre lembrado, a par de Cushing. Quando era ainda interno da especialidade, estabeleceu (juntamente com Kenneth Blackfan) o conceito moderno de hidrocefalia, abrindo caminho para o seu tratamento cirúrgico. O seu arrojo permitiu-lhe praticar em seguida a ablação dos plexos coroideus, a ventriculostomia do III ventrículo e a cateterização do Aqueduto de Sylvius. Outros cirurgiões criaram uma grande variedade de processos suscetíveis de drenar o líquido cefalorraquidiano acumulado em excesso nos ventrículos cerebrais ou no espaço subaracnoideu para onde a imaginação os conduzia. Como seria de esperar, destes procedimentos sobreviveram os mais seguros e eficazes. 

Walter Dandy introduziu na Imagiologia a ventriculografia e a encefalografia gasosa, a primeira por injeção direta nos ventrículos e a segunda por introdução de ar através duma agulha de punção lombar. Foi um neurocirurgião extraordinário. Desenvolveu acessos cirúrgicos que permitiram expor e extirpar um tumor da pineal e foi o primeiro a remover na totalidade um neurinoma do acústico. Terá sido também o primeiro cirurgião a "clipar" o colo de um aneurisma intracraniano. Passara a ser poucos os recônditos do cérebro onde os neurocirurgiões fossem incapazes de atuar.

Cushing e Dandy não foram os únicos médicos a dar contributos importantes para o progresso da Neurocirurgia. Charles Elsberg, Frazier, Jefferson, Dott e Cairns (os dois últimos foram discípulos de Cushing). Olivecrona (em Estocolmo), Martel e Clovis Vincent (em França) contribuíram também para o desenvolvimento da especialidade. Haveria muitos mais nomes a indicar. Ficarei por aqui. Mesmo que me alongasse, a lista ficaria sempre incompleta.

Ao tempo, muitos neurologistas não acreditavam na Neurocirurgia e eram raros os que referenciavam doentes para operar. As administrações hospitalares não demonstravam grande consideração por aqueles pioneiros iluminados. Consideravam que exigiam material dispendioso e que obtinham poucos resultados. Ainda por cima, manchavam as reputações dos hospitais com as taxas elevadas de insucesso cirúrgico.

Paul Bucy, eminente neurocirurgião americano, comenta com graça e agudeza as personalidades dessas duas figuras tutelares da Neurocirurgia mundial e descreve as relações atribuladas que foram desenvolvendo.

Na sua opinião, teriam feitios semelhantes. Confiavam nas próprias capacidades e eram orgulhosos, determinados, temperamentais e extremamente competitivos. Resumindo, eram difíceis de aturar.

Os jovens internos fartavam-se depressa daquelas personalidades autocráticas, da exigência extrema e dos fáceis e muitas vezes injustificados acessos de fúria.

No que diz respeito a Cushing, diz-se que apenas um colaborador o suportou até ao fim da formação. Teria um feitio invulgarmente cordato. Não consta que tenha sido grande profissional. A maioria dos discípulos afastou-se antes de cumprir o primeiro ano de treino.

Dandy não seria muito diferente. No entanto, de vez em quando lembrava-se, de certo modo, de pedir desculpa aos seus colaboradores pelos maus modos e pelos excessos de linguagem, oferecendo-lhes jantares ou bilhetes para eventos desportivos.

Walter Dandy e Harvey Cushing nunca se deram bem. Ter-se-ão detestado logo deste o início do relacionamento. Lembre-se que Dandy foi, durante cerca de um ano, discípulo de Cushing no Johns Hopkins Hospital.

Diz-se que, quando Cushing deixou Baltimore para se instalar em Boston, arrumou junto aos seus pertences as indicações dos resultados obtidos por Dandy com as suas experiências. Walter Dandy deu por isso, insurgiu-se e obrigou o chefe a devolver-lhe o material. A vingança de Cushing foi declarar que aqueles apontamentos não tinham qualquer valor.

Anos mais tarde, quando Dandy publicou o seu relato sobre a primeira remoção total de um neurinoma do acústico, “esqueceu-se” de referir a monografia que Cushing dedicara antes ao assunto. A reposta de Harvey Cushing não foi meiga.

Curiosamente, os dois génios da Neurocirurgia influenciaram-se negativamente nos métodos de operar e até na escolha do material utilizado. Dandy, durante algum tempo, não aceitou usar o cauterizador elétrico (termocoagulador) desenvolvido por Bovie e Cushing, nem os clips de prata que McKenzie e Cushing tinha inventado. Cushing retribuiu-lhe recusando recorrer à ventriculografia como meio de diagnóstico. Ambos terão perdido eficiência cirúrgica com a animosidade recíproca.

Mais tarde, Walter Dandy recusou aderir à Society of Neurological Surgeons apadrinhada por Cushing e à Sociedade Harvey Cushing, por ter o nome do seu rival.

Foquemo-nos agora na vida e no percurso científico de Harvey Cushing, que constituem o objetivo essencial deste trabalho. Comecemos pela sua família e pelo seu nascimento. Cushing nasceu em Cleveland, no Ohio. Era filho, neto e bisneto de médicos. Filho mais novo de uma família numerosa, fez a formação pré-graduada na Universidade de Yale. Portou-se muito bem em Matemática e Ciências e menos bem em línguas mortas. Jogou basebol, ténis e críquete. Em matéria desportiva, ficou conhecido por ter mau perder. Por volta do terceiro ano da sua estadia em Yale, interessou-se pela Medicina.

De Yale, Harvey Cushing mudou-se para a Harvard Medical School, que frequentou durante quatro anos. Ingressou depois, como interno, no Massachusetts General Hospital. Mo ano seguinte, transferiu-se para o Johns Wilkins Hospital, para trabalhar com William Halsted, um grande cirurgião. Nessa altura, contava 27 anos e já mostrava um espírito brilhante e original. Foi Cushing quem introduziu naquele hospital a utilização diagnóstica dos aparelhos de Raios X, antes de ter decorrido um ano sobre a descoberta de Roentgen. 

Durante o internato, Cushing interessou-se pela nevralgia do trigémeo. Procedeu a craniotomias em 30 cadáveres, antes de se aventurar a operar uma doente com dores excruciantes. Extirpou o gânglio de Gasser, devolvendo a doente a uma vida normal. Essa intervenção reforçou o seu interesse pela Neurocirurgia. 

Cushing teve muitos admiradores e poucos amigos. Um grande amigo de toda a sua vida foi William Osler. Era vinte anos mais velho do que ele e aconselhou-o a fazer uma estadia na Europa. 

A dada altura, Harvey Cushing interessou-se pelo tratamento cirúrgico dos tumores cerebrais e, em 1900, viajou para Inglaterra, decidido a aprender Neurocirurgia com Victor Horsley.

Conta Paul Bucy que Cushing, no dia seguinte à sua chegada, acompanhou Horsley numa visita domiciliária. A doente sofria de nevralgia do trigémeo e o cirurgião inglês operou-a logo ali. Fez um grande buraco no crânio da senhora e levantou-lhe o lobo temporal. Havia sangue por toda a parte. Horsley removeu o gânglio e encerrou a ferida.

O americano ficou dececionado e pôs de lado a ideia de estagiar com Victor Horsley. Passou algum tempo em França, antes de se mudar para a Suíça (Berna), onde trabalhou com Theodor Kocher, um dos cirurgiões europeus mais conhecidos na época. No entanto, Kocher interessava-se pouco pelo sistema nervoso e não tinha grande coisa a oferecer a Cushing. Encaminhou-o para o fisiologista Kronecker. 

No laboratório de Kronecker, Cushing dedicou-se à experimentação em animais.

Em cães sujeitos a anestesia geral, injetava no espaço subaracnoindeu soro fisiológico.  Quando a pressão intracraniana se aproximava da tensão arterial, esta subia e o pulso lentificava. Era o reflexo que ficou conhecido como “de Cushing”. Seguiam-se alterações respiratórias graves e a morte dos animais. 

Da Suíça mudou-se para a Itália, continuando a aprender com quem mais sabia.

Passou ainda algum tempo em Liverpool, tendo sido o primeiro discípulo americano do fisiologista Charles Sherrington. Cushing e Sherrington corresponderam-se durante quase quatro décadas. Contribuíram para estabelecer a distinção entre a faixa motora pré-rolândica e o córtex sensorial. Mais tarde, em 1909, Cushing estimulou eletricamente a circunvolução pós central de dois doentes conscientes que referiram sensações em regiões em que as áreas pré-centrais contíguas induziam movimentos. 

A prolongada estadia na Europa fazia supor um apoio económico familiar sólido e sustentado. Em 1901, Cushing abandonou o velho continente e regressou a Baltimore.

Halsted apreciava Cushing e ainda tentou dissuadi-lo do seu projeto de encetar uma carreira neurocirúrgica.  Durante algum tempo, Harvey Cushing praticou cirurgia geral, operando tumores cerebrais ou meningocelos sempre que podia. Utilizou a anestesia local quando tal era possível.

Publicou diversos artigos sobre temas de Cirurgia Geral, mas a sua dedicação à Neurocirurgia acabou por se tornar exclusiva.

No início de 1909, o Dr. Arthur Cabot encaminhou o general Leonard Wood para o hospital Johns Hopkins, a fim de ser tratado por Cushing. Wood contava então 48 anos e fora operado em Boston, quatro anos antes, a um tumor do crânio que não parecia ultrapassar a dura-máter, mas que lhe causava repetidas crises convulsivas jacksonianas.

A frequência das crises aumentara, passando a acompanhar-se de paralisia pós-ictal nos membros esquerdos.

Até esse ano, tinha sido publicado apenas um caso de sucesso na cirurgia desse tipo de tumores e a palavra “meningioma” não existia. Seria criada por Cushing em 1922.

Por essa altura, era incipiente a imagiologia do cérebro e o diagnóstico e a localização dos tumores intracranianos assentavam apenas em dados clínicos. Harvey Cushing optou inicialmente por medidas conservadoras, mas a situação do doente deteriorou-se e, decorrido um ano, viu-se compelido a operar.

Não se tratava de um doente qualquer. Leonard Wood era Major-General e Chefe do Estado Maior do Exército dos Estados Unidos. Sendo médico de carreira (fora médico pessoal dos presidentes Grover Cleveland e William McKinley) notabilizara-se como chefe militar, deixando criar lendas acerca dos seus conflitos com os índios apaches, antes conduzir uma brigada americana à vitória de San Juan Heights, durante a guerra hispano-americana.  Era amigo pessoal do presidente Theodore Roosevelt e foi governador de Cuba e, mais tarde, da Província de Moro, nas Filipinas. Chegaria a ser candidato à presidência dos E.U.A., em 1920, pretendendo suceder a Woodrow Wilson. 

Por essa altura, Cushing recorria apenas à anestesia local. Lembremos que o cérebro não possui recetores de dor. Ficava a angústia de sentir o próprio crânio ser aberto.

A operação decorreu em duas fases, com quatro dias de intervalo. Na primeira intervenção, Cushing procedeu à craniotomia. A cirurgia foi suspensa devido a uma hemorragia profusa.

Na segunda, o cirurgião incisou a dura-máter e expôs a superfície do cérebro e o tumor. Foi capaz de aproveitar o plano de clivagem entre as duas estruturas. Poupou as veias de drenagem e conseguiu o que julgou ser a remoção completa da lesão.

O pós-operatório foi excelente.

A excecional destreza do cirurgião foi testemunhada e o sucesso proporcionou-lhe o reconhecimento público e o aumento na própria confiança na possibilidade de operar com sucesso tumores cerebrais.

Espero que os leitores usem agora de benevolência e perdoem um anacronismo.

        O tumor acabaria por recidivar. Cushing reoperou o velho general 17 anos mais tarde. Wood esteve consciente durante a operação. A dada altura, o cirurgião teve dúvidas sobra a possibilidade de remover totalmente o tumor e expressou-as. O general instou-o a prosseguir.

O doente faleceu no pós-operatório imediato. O cirurgião ficou profundamente abalado com o insucesso e chegou a pensar em abandonar a profissão.  

Retomemos o calendário. Ainda em 1910, o Doutor Arthur Tracy Cabot, propôs a sua nomeação para professor de Cirurgia da Universidade de Harvard. Aconteceu a Harvey Cushing receber no intervalo de pouco tempo outro convite honroso: tornar-se cirurgião-chefe no hospital Peter Bent Brigham.

O hospital Brigham ainda estava em construção. Seria inaugurado em abril de 1912.

Nesse ano, Cushing publicou um livro sobre a Hipófise, sublinhando a importância que a avaliação dos campos visuais tinha para neurologistas e neurocirurgiões.

A mortalidade operatória registada por ele nesse tipo de cirurgia durante um período de dez anos foi de 2,4 por cento. Era uma revolução para os parâmetros da época e seria apenas suplantada, décadas mais tarde, com a introdução de corticosteroides no período pós-operatório.

Numa atualização desse trabalho, publicada em 1932, descreveu o efeito da secreção exagerada de adrenocorticotrofina pelos tumores basófilos da hipófise. O mal ficou conhecido na literatura médica mundial como “Doença de Cushing”. O excesso de produção de cortisol pelo córtex suprarrenal tem manifestações clínicas semelhantes e é denominado “Síndrome de Cushing”

Tive oportunidade de operar uns tantos doentes que sofriam da doença de Cushing. Mesmo no tempo da Ressonância Magnética Nuclear, as imagens induziam em erro, havendo tumores diminutos (alguns pouco maiores que grãos de arroz) por vezes mais difíceis de encontrar do que de extirpar.

Durante esse período, Cushing tinha já discípulos que se iriam tornar ilustres, como Naffzinger e Dandy. Iria dispor de pouco tempo para se dedicar às tarefas de cirurgião, articulista e professor. Avizinhava-se a Primeira Grande Guerra.

Quando os Estados Unidos da América entraram no conflito, a Universidade de Harvard criou uma unidade para integrar a American Ambulance Care e Cushing foi para França. Passaria lá os quatro anos seguintes. Iria ganhar uma experiência considerável no tratamento de feridas craniocerebrais por armas de fogo e na organização dos serviços médicos militares. 

       Durante a guerra, tratou do tenente Edward Revere Osler, filho de Sir William Osler, canadiano considerado por muitos um dos pais da Medicina moderna. O jovem tinha sido ferido com gravidade na batalha de Ypres e não sobreviveu. 

        Muitos anos mais tarde (em 1926), Cushing recebeu o Prémio Pulitzer pela biografia de Osler. Não foi o seu único trabalho nessa área. Entusiasmado com a figura de André Vesálio, publicou também a sua biografia.

Em 1917, publicou uma monografia sobre os tumores do nervo acústico.

No outono do ano seguinte, durante a ofensiva Meuse-Argonne, Cushing teve de interromper uma demonstração cirúrgica por ter sentido bruscamente duplicidade de visão. Desenvolveu a seguir febre e parestesias nos membros. Durante algum tempo, não foi capaz de caminhar. Ter-se-á tratado do síndromo de Gillan-Barré. Cushing chegou a recear que a sua carreira cirúrgica tivesse acabado. Recuperou, ainda que progressivamente. Terá ficado com algumas sequelas. Cansava-se com facilidade e tinha alguma instabilidade na marcha, o que não o impediu de se lançar ao trabalho.

Em fevereiro de 1919, Harvey Cushing regressou a Boston. Trabalharia durante 13 anos no hospital Brigham e na Universidade de Harvard. Operou um número impressionante de doentes com tumores cerebrais, com resultados cada vez melhores.

Cushing não era apenas médico. Alimentava um fascínio pela literatura que já vinha do seu pai. Foi bibliófilo, homem de cultura e escritor. Não produziu ficção, mas publicou trabalhos muito interessantes sobre História da Medicina. As suas biografias de William Osler e William Harvey foram já referidas. Escreveu um número considerável de trabalhos científicos. Alguns deles irão ser lembrados durante séculos.

A sua vida familiar foi prejudicada pela dedicação quase exclusiva ao trabalho. Terá sido um pai distante. Mesmo em casa, reservava a maior parte das horas do dia ao estudo e à investigação. 

Conheceu a glória em vida. Era repetidamente convidado para proferir conferências científicas. Em 1922/1923, foi presidente do Colégio Americano de Cirurgiões.

Harvey Cushing comia pouco e consumia pouco álcool, mas fumava muito. Desenvolveu gangrenas isquémicas nos dedos dos pés. Já tinha de lidar com elas, em 1931, quando abandonou o leito hospitalar para operar o seu segundo milésimo tumor do cérebro.

Aposentou-se em 1932. Contava 63 anos de idade. Publicou, na altura, o artigo Intracranial tumors: notes upon a series of two thousands verified cases with surgical mortality percentages. 

No ano seguinte, aceitou o cargo de professor de Neurologia e regressou à Universidade de Yale, onde tinha feito os estudos secundários. 

Como vimos, o período em que Harvey Cushing se dedicou exclusivamente à Neurocirurgia foi limitado. Foram, contudo, anos frutuosos. Iniciou a formação de um número considerável de futuros neurocirurgiões. Muitos deles provinham de países estrangeiros e impulsionaram o desenvolvimento da nova especialidade nas suas terras de origem. Para além dos americanos Percival Bailey e Charles Locke, Cushing iniciou na especialidade o belga Paul Martin, o canadiano Kenneth McKenzie, o romeno Dimitri Bagdezor, o escocês Norman Dott, os ingleses George Armitage e Hugh Cairns e muitos outros.

Publicou uma descrição racional dos tumores cerebrais malignos. A classification of the tumors of the glioma group on a histogenic basis with a correlative study of prognosis foi impresso em 1926, com a colaboração de Percival Bayley.

No ano de 1938, publicou, juntamente com Louise Eisenhardt a notável monografia sobre meningiomas. Intitulava-se Meningiomas: Their classification, regional behaviour, life history and surgical end results. A obra continua a ser reconhecida e respeitada em todo o mundo.

Harvey Cushing faleceu em outubro de 1939, no seguimento de um enfarte do miocárdio. Curiosamente, a sua autópsia revelou a presença de uma lesão neurocirúrgica: um quisto colide do III ventrículo, que permaneceu assintomático.

 

Quando, há meio século, entrei para o internato da especialidade de Neurocirurgia no Hospital de S. José, em Lisboa, os meus colegas gostavam de comparar Cushing com Dandy. Walter Dandy era o expoente do cirurgião brilhante e quase heroico. Abordava sem delongas o objetivo, resolvia a questão rapidamente e encerrava.

Cushing trabalhava de forma diferente. De certo modo, transferira para a especialidade nova os ensinamentos de Halsted. Era atento aos pormenores, meticuloso e lento. Ao longo da minha carreira profissional, procurei seguir o seu exemplo.

A cirurgia demorada de Harvey Cushing chegou a prestar-se a alguma ironia. Um cirurgião perguntou-lhe um dia se algum tumor tinha já recidivado enquanto decorria a operação

Mesmo no último quartel do século XX a rapidez de execução continuava a ser tida numa conta exagerada por muitos cirurgiões. Compreende-se que tivesse de ser assim décadas e séculos atrás, quando a anestesia ainda não existia, a hemorragia era difícil de controlar e havia que proceder depressa e bem. Esse tempo fora ultrapassado, mas subsistiam adeptos dessa filosofia cirúrgica gloriosa.

Os da minha geração tornaram-se pioneiros da microcirurgia no nosso país. As intervenções tornaram-se mais lentas e as vias de acesso mais pequenas. Operava-se geralmente por fendas estreitas, procurando limitar o afastamento do tecido cerebral. Os resultados obtidos foram fechando as portas às antigas opções.

A Neurocirurgia nasceu na Europa e ali deu os primeiros passos. Foi, contudo, nos Estados Unidos da América que atingiu a maturidade. Antes de Cushing, era praticada por neurologistas que empunhavam o bisturi, ou por cirurgiões que gostavam de Neurologia. A organização de serviços especificamente neurocirúrgicos conduziu à queda drástica da morbilidade e da mortalidade operatórias. Segundo Wilder Penfield, Cushing foi o médico que tornou a cirurgia do cérebro segura e prestigiada.

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA 

Bucy, Paul: Two Giant: Harvey Cushing and Walter Dandy. Em Neurosurgery, Wilkins and Rengachary, Mcgraw-Hill Book Company, 1985.

Rojo. Isquierdo: Concepto y desarrollo de la Neuroicurugia. Em Fundamientos de Neurocirugia, Distribuidora Interamericana, 1978.

Vieira, Ruy: Historial da trepanação craniana, suplemento do jornal Notícias Médicas, nº 2835.

Trabulo, António: Trepanações em crânios neolíticos Blogue historinhasdamedicina, 30/12/ 2009.

Wilkins, Robert: History of Neurosurgery. Em Neurosurgery, Wilkins anda Rengachary, McGraw-Hill Book Company, 1985.


Imagem 1: Museu de Geologia de Lisboa

Imagem 2: Wikipedia.

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