A REFORMA POMBALINA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
Quando
se esvaziou do componente mágico, a Arde de Curar passou a compor-se de três
disciplinas: a medicina, a cirurgia e a farmácia.
Os
médicos detiveram durante séculos um estatuto social superior ao de cirurgiões
e boticários. A medicina era tida como “arte doutrinal”. Os médicos possuíam
melhor preparação teórica, o que lhes permitia formular diagnósticos e propor
terapêuticas. A cirurgia e a farmácia eram consideradas “artes mecânicas”,
portanto menores. Cirurgiões e boticários executavam na prática os tratamentos
determinados pelos médicos, sendo considerado menos relevante na sua formação o
componente teórico. Esta situação perdurou até ao final do século XVII. A
partir daí os procedimentos começaram lentamente a modificar-se.
Eram
exigidos aos cirurgiões certos conhecimentos anatómicos, mas pretendia-se
essencialmente que manejassem os instrumentos para cumprirem com eficácia as
orientações médicas.
Era
conveniente que os boticários conhecessem as plantas medicinais. Deveriam,
porém, ser peritos em praticar as técnicas que transformavam as drogas isoladas
em medicamentos.
Situados
hierarquicamente abaixo desses grupos, exerciam funções ao serviço da saúde os
sangradores e os barbeiros.
A
reforma dita pombalina da Universidade de Coimbra teve início em 1772 e apenas
reverteu parcialmente essa discriminação. Reformulou o ensino da medicina,
procurando aproximar a formação dos médicos portugueses da dos seus congéneres
dos países mais desenvolvidos da Europa.
Os
pilares mais importantes da reforma institucional foram a criação, na Faculdade
de Medicina, de três novos estabelecimentos: o Hospital Escolar, o Teatro
Anatómico e o Dispensatório Farmacêutico.
O
Hospital Escolar pretendia aproximar dos enfermos estudantes e professores.
Passaram a ser ministradas ali as aulas práticas de Clínica Médica. Os
hospitais que serviam até então a população da cidade situavam-se longe da
Universidade, em locais “baixos, húmidos e pouco saudáveis”.
Ao
tempo, funcionavam em Coimbra o Hospital Real, o Hospital da Convalescença e o
Hospital dos Lázaros. Foi necessário preparar um hospital novo, gerido pela
Faculdade.
O
Teatro Anatómico destinava-se naturalmente ao ensino da anatomia, tendo em
conta que a prática da dissecação em cadáveres humanos era indispensável à aprendizagem
da cirurgia. Os Estatutos de 1772 previam a fusão entre medicina e cirurgia. A
Faculdade de Medicina passava a acreditar os profissionais nas duas áreas. A
cirurgia tornava-se parte integrante da medicina e era exercida pelos mesmos
licenciados.
Um
sinal do espírito claramente pós-galénico dos redatores dos Estatutos foi a
indicação de que as autópsias deveriam servir também para determinar as causas
da morte “para se proceder com melhor sucesso em outras moléstias
semelhantes”.
O
Dispensatório Farmacêutico tornava-se o local privilegiado para o ensino de
farmácia aos alunos de medicina, enquanto formava também boticários. Fornecia
medicamentos tanto aos doentes internados no hospital como aos que eram
tratados em regime ambulatório. Estas novas instituições não se isolavam dentro
dos muros da Universidade. Estavam abertas à comunidade coimbrã, prestando um
serviço público valioso.
Tratava-se
de reformular os paradigmas do ensino e da prática médica. Os tempos tinham
mudado. A tradição galénica, que impregnara a formação dos médicos europeus
durante milénio e meio, era agora vivamente contestada. Mais que nos velhos
textos gregos e latinos, era na experiência que assentavam agora as esperanças
de melhoria do saber médico.
As
palavras de abertura dos Estatutos eram devastadoras para a prática tradicional
da medicina: “ Tendo a Medicina por objeto duas cousas de tão grande
importância como são a conservação e o restabelecimento da saúde dos homens,
tem infelizmente sucedido não se fazerem nela os progressos que convinham,
chegando muitos a desconfiar de que pudesse já haver Ciência na Medicina; e
outros a desprezar a que atualmente existe; e ainda a temê-la, como perigosa e
nociva, por ser muitas vezes ministrada cegamente pelas mãos da ignorância”.
A
partir de certa altura, a utilidade da Faculdade de Filosofia da Universidade
de Coimbra passou a ser vivamente contestada. Um grande número dos alunos que a
frequentavam pretendia seguir medicina. O curso de filosofia era, aliás,
obrigatório para os futuros médicos. Por que não a integrar então na Faculdade
de Medicina? A polémica arrastou-se durante anos.
Os
Estatutos previam que os lentes criassem ciência e elaborassem tratados para
uso dos alunos. No entanto, tal como agora, Portugal era bem mais um país
receptor do que produtor do saber científico.
Os estudantes matriculavam-se na
Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, depois de terem cumprido os
estudos preparatórios na Faculdade de Filosofia. Curiosamente, era nessa
Faculdade que os alunos frequentavam o Gabinete de História Natural, o
Laboratório Químico e o Gabinete de Física.
Fachada do Laboratório de Química.
É
curioso constatar que a reestruturação da Universidade de Coimbra, que foi
acompanhada pela contratação de professores estrangeiros de mérito e pela
aquisição de material científico atualizado, coincidiu com uma redução drástica
do número de alunos da Instituição que, de cerca de 4.500 caiu para meio
milhar. Não foram os critérios de admissão que se tornaram mais exigentes. O
que aconteceu foi a brusca diminuição da oferta de ensino pré-universitário,
resultante da expulsão dos jesuítas.
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