segunda-feira, 31 de maio de 2010
domingo, 23 de maio de 2010
HISTORINHAS DA MEDICINA

Numa tarde de quinta-feira, eu estava de banco em S. José.
Ao percorrer um dos longos corredores do hospital encontrei-me com o Vítor. Era cirurgião geral e teria dois ou três anos mais do que eu. Dávamo-nos bem.
Dessa vez, saudou-me de modo esfuziante. Era como se tivessem passado anos sem nos vermos, quando tínhamos estado juntos na Urgência da semana anterior.
Deu-me um grande abraço. Mal me deixou respirar, perguntou:
- Trabulo! Estás mesmo bem?
Eu ficara espantado com o ênfase da recepção.
- Estou. E tu?
Trocámos algumas frases e seguimos os nossos caminhos. Encontrei-o de novo, um par de horas mais tarde, no bar. Era outra vez o Vítor de sempre, bem-humorado e tranquilo.
- Desculpa lá, Trabulo, a minha reacção de há pouco. Tinham-me dito que tinhas morrido.
Ri-me. Não era a primeira vez que aquilo acontecia. Alguns anos antes, em Setúbal, tinha corrido largamente o boato da minha morte. Uma doente pouco sensata telefonou mesmo lá para casa e perguntou à minha mulher:
- É verdade que o Senhor Doutor morreu?
Felizmente, eu tinha acabado de sair, cheio de saúde.
Ao entrar no Posto Médico julguei surpreender expressões de assombro em alguns rostos. Era como se estivessem a ver um fantasma, mas eu não podia adivinhá-lo.
Contaram-me a história mais tarde. Sei de velhinhas que choraram por mim. Não consta que raparigas novas tenham vertido alguma lágrima.
Foto: Internet.
segunda-feira, 10 de maio de 2010
A PESTE EM PORTUGAL NOS SÉCULOS XIV E XV
A primeira epidemia de que tenho notícia no território português ficou registada nas memórias do convento de Seiça:"no anno de 1310 foi a pestilencia grande, e morrerom entom em dous mezes 150 religiosos".
Anos mais tarde, o Chronicon Conimbricense fala da mortandade ligada à doença e à fome:"e neste anno de 1333 morrerom muitas gentes de fame quanta nunca os homes viron morrer por esta razon; è tantos fueron los passados que fueron soterrados en os adros das Egrejas, que non cabian en elles, è os soterraban fora dos adros è deitavanos nas covas quatro à quatro, è seis à seis, assi como os achavam mortos por nas ruas".
A visita da peste a Portugal em 1348 ficou registada por escrito:"morria-se quase em saúde e os que hoje estavam sãos, iam amanhã a caminho da sepultura". O mal não tinha imaginação: os sintomas repetiam-se de forma previsível: febre elevada, hemoptises, delírio, coma e morte. Quando esta tardava alguns dias, desenvolviam-se abcessos nas axilas e virilhas. O contágio era imediato e a piedade sumia-se: Os filhos abandonavam os pais e os cônjuges separavam-se. Morria-se sozinho.
Havia, entre nós, fés destinadas ao martírio: os judeus, acusados de envenenarem poços e fontes, iam sendo periodicamente massacrados.
Em 1384, o rei de Castela cercou Lisboa. O exército invasor foi atacado pela peste. Conta Fernão Lopes:"começarão de morrer de peste allgûus do arrayall da gente de pequena condição. E quando allgûu caualeyro ou escudeyro acertaua de se finar, leuavão-nos os seus a Cyntra ou Alanquer ou a allgûu dos outros logares que por Castela tinhão voz, e ally os abrião e sallgauão e punhão em ataudes do ar, ou os cozião e goardavam os ossos para os depois leuarem pera donde erão". Supõe-se que esta epidemia foi do chamado "tifo dos exércitos".
Em 1414, quando se preparava a armada que deveria conquistar Ceuta, foram contratados navios estrangeiros que trouxeram o mal com eles. A peste vitimou a rainha Dona Filipa de Lencastre. A "ínclita geração" partiu orfã para o Norte de África.
Registaram-se, em Portugal, epidemias mortíferas em 1423, 1432, 1435 e 1437. Algumas delas encontraram os portugueses com as resistências diminuídas pela fome. O rei D. Duarte foi levado pela peste em 1438.
As epidemias assolaram diversas regiões de Portugal nos anos de 1448, 1458, 1464 e 1469. Em 1477, a peste devastou Coimbra e propagou-se a Lisboa. As cidades procuravam defender-se do mal. Os vereadores do Porto, assustados, estabeleceram um plano de defesa. Foi interdita a entrada na cidade a quem não jurasse sobre os santos Evangelhos não vir de Coimbra nem de qualquer outro lugar onde a peste grassasse."E per esta mesma guiza se gardara a barca de Gaya a qual gardaron os moradores de Miragaya". As providências falharam e a peste entrou no burgo nortenho.
Alguns mecanismos de propagação das epidemias começavam a ser compreendidos. Em 1486, morreram de peste alguns habitantes da Porta do Olival, no Porto. A zona foi isolada. Estabeleceu-se um período de trinta dias de proibição de entrada na cidade a quem viesse de zonas infectadas. Organizou-se ainda, na margem Sul do Douro, um hospital destinado ao isolamento dos doentes. Foi localizado no Senhor do Além. As medidas tomadas produziram efeito e o Porto, dessa vez, foi poupado.
As epidemias foram-se repetindo, um pouco por todo o País. A utilidade das medidas de saúde pública foi-se tornando evidente. Em 1484, o rei D. João II mandou que se limpassem as canalizações e os monturos e esterqueiras e proibiu que se vazassem as imundices fora dos locais determinados. Ainda não se conheciam bactérias nem vírus, mas as causas da doença eram já atribuídas ao desrespeito das normas de higiene.
A última epidemia do século XV durou muito tempo. A sua natureza é difícil de determinar, podendo estar em causa surtos sucessivos de doenças diferentes. No final do século, deve ter predominado o tabardilho ou febre punctiforme, que alastrou em Espanha e foi trazida para Portugal pelos judeus forçados a refugiar-se no nosso País.
Fontes: Lemos, Maximiano. História da Medicina em Portugal. Publicações Dom Quixote/Ordem dos Médicos, Lisboa, 1991.
Imagem: O Triunfo da Morte. Obra não assinada, existente na Galeria Nacional da Sicília, em Palermo. A grande História da Arte, Público, 2006.
Também publicado em O BAR DO OSSIAN.
sábado, 17 de abril de 2010
HISTORINHAS DA MEDICINA
Apesar dos progressos magníficos que se têm verificado nas técnicas de diagnóstico, continuam a existir patologias que apenas se dão a conhecer através da anamnese. Quem não fala do seu mal, não obtém ajuda. É um caso desses que relato hoje.
Entrou-me no consultório um homem alto e magro que andaria pelos vinte e cinco anos. Vinha acompanhado por uma mãe possessiva. Não se afastava do filho e parecia receosa de lhe tirar a mão da cintura ou do ombro. Os médicos ficam de pé atrás quando um homem feito chega com a mãe. Está-se à espera de alguma fragilidade.
Costumo perguntar: "de que se queixa?", "em que posso ajudá-lo?", ou pedir: "conte-me o que o traz cá".
As dificuldades consistem, muitas vezes, em separar o trigo do joio. Há que filtrar, da profusão de queixas, as que podem ser úteis para nos orientar no processo de diagnóstico. Os médicos têm mentalidades muito arrumadinhas: diagnosticar é um jogo que consiste em sintetizar o essencial de cada caso clínico e enformá-lo, até caber numa gavetinha que tem escrito por fora o nome da doença. Investe-se nisso todo o saber e o potencial necessário dos meios complementares de diagnóstico. Quando não se consegue fazê-lo, recorre-se a um especialista da área. Alguns doentes infelizes que não se prestam a ser arrumados, ficam mal vistos. E quantas vezes nos passa pela cabeça que há gavetas com rótulos demasiado vagos e imprecisos, que no futuro, serão talvez divididas em mais compartimentos...
Voltemos ao caso de hoje. Foi a mãe quem falou:
- Ele já está muito melhor...
- Mas diga-me, minha senhora! Está melhor de quê?
- Muito melhor, senhor doutor! Muito melhor!
Vi que, dali, não conseguia nada e voltei-me para o doente.
- Quem vem ao médico, traz sempre algum problema. O senhor não se quer queixar?
- Não! Eu estou bem.
Intrigado, procedi metodicamente ao exame neurológico, esperando que o gelo se quebrasse e que as queixas acabassem por ser expressas.
Quando apaguei a luz para lhe observar os fundos oculares, o doente recuou bruscamente e deu um berro de medo e ameaça. Coloquei-lhe a mão no ombro direito, para o sossegar, e já lá encontrei a mão da senhora. Acendi a luz e pedi que se sentassem. A história soltou-se.
- Senhor doutor! - Disse a mãe - Isto está quase resolvido. Tento eu como ele temos rezado muito.
- Será bom contarem-me o que há ainda para resolver...
O homem permaneceu calado. A mulher endireitou os ombros e resolveu falar.
- Senhor doutor! É o diabo que o anda a tentar. Manda-o, todos os dias, matar-me a mim e, depois, matar-se ele. Ai, quantos padre-nossos e avemarias rezámos... Mas, graças a Deus, vai estando melhor.
Pensei em esquizofrenia. Pedi licença e telefonei a um psiquiatra, pedindo a observação imediata e a previsão de internamento urgente. Parecia-me estarem duas vidas em risco.
Poucos dias antes, mãe e filho tinham estado no consultório de um colega distinto. Não fornecendo dados que o pudessem orientar, saíram de lá com a prescrição de um ansiolítico ligeiro...
sexta-feira, 9 de abril de 2010
AMATO LUSITANO
João Rodrigues foi um entre milhares de judeus portugueses que o fanatismo da In
quisição e a insuficiente visão política do rei Manuel empurraram para longe da terra natal. Manuel I herdou a empresa fabulosa das Descobertas mas permitiu cedo que os seus alicerces fossem abalados. Os portugueses glorificam a Expansão. Orgulham-se dos seus marinheiros mas lembram poucas vezes os mercadores que financiavam as caravelas. Entre os burgueses ricos de Lisboa, havia judeus. Ajudaram também a tecer as malhas do Império. Ao partirem, emprestaram prosperidade a outras nações e empobreceram a nossa. Alguns conservaram, até à morte, orgulho em serem portugueses. Foi o caso do médico João Rodrigues de Castelo Branco que, na idade madura, assinou os seus trabalhos científicos com o nome de Amato Lusitano.

Amato Lusitano nasceu em Castelo Branco, em 1511, numa família de marranos. O seu apelido, Chabib,vertido para latim, deu Amatus. Muito novo, foi estudar para Salamanca. Aprendeu Letras, Medicina e Cirurgia. Aparentemente, era aplicado em Espanha, nessa época, um protocolo ainda mais revolucionário que o de Bolonha, pois o cristão-novo, aos dezoito anos, já estava autorizado a praticar Medicina.
Em 1529, voltou a Portugal. Viajou pelo País e exerceu clínica em Lisboa durante algum tempo.
O ano de 1531 ficou debruado a negro na nossa História. Foi assinada a bula que instituía a Inquisição em Portugal. A insegurança forçou muitos judeus a emigrar. O País foi dessangrado de mercadores e de quadros.
Em 1534, João Rodrigues estava em Antuérpia, onde iria permanecer durante sete anos. Depois, andou de terra em terra. Ensinou Anatomia e Botânica na Universidade de Ferrara. Os seus trabalhos de dissecção em cadáveres humanos permitiram-lhe descrever uma válvula na veia ázigo e perceber que ela direccionava o fluxo de sangue. Abriu assim as portas para o conhecimento da circulação sanguínea, que só viria a ser bem entendida muitos anos mais tarde. 

Amato Lusitano passou por Ancona e por Veneza. Em 1550, foi chamado a Roma para tratar o papa Júlio III. Paulo IV, que sucedeu a Júlio na cadeira de S. Pedro, mostrou-se intolerante para com os judeus. Amato Lusitano fugiu à pressa de Ancona para Pesaro. Abandonou mesmo alguns textos médicos já concluídos, como a 5ª centúria, que ainda foi recuperada, e os Comentários ao Livro I de Avicena, que se perderam para sempre.
De Pesaro, foi para Ragusa(actual Dubrovnik). Ali, as discordâncias sobre Dioscórides com Piero Andrea Mattioli ultrapassaram o âmbito da Medicina. Na sua Apologia Adversus Amathum, Mattioli acusou-o de professar a religião judaica, expondo-o à morte.
Em Maio de 1559, João Rodrigues de Castelo Branco partiu para Salónica, então sob domínio do Império Otomano. Os fiéis do Islão eram muito mais tolerantes que os cristãos e Amato pôde praticar em público a sua fé de sempre. Faleceu em Janeir
o de 1568, vitimado pela peste que ajudava a combater. Tinha 57 anos.

Entre as suas obras avultam as Centuriae Medicinalia, que são descrições de casos clínicos agrupados aos centos. A título de curiosidade, cito a atenção que Amato Lusitano dá a maneiras invulgares de engravidar. Na 4ª Centúria, refere a história de uma gravidez devida à fecundação pelo esperma derramado num banho. Conta, na 7ª, outro caso de gravidez em que o sémen foi transportado por uma mulher casada que com outra se entregava ao tribadismo. Daí à fábula das éguas lusitanas fecundadas pelo vento ainda vai um longo caminho...
As Centúrias (Amato Lusitano escreveu sete) foram reeditadas múltiplas vezes. Conhecem-se 59 traduções em línguas diferentes. Para além da descrição das características clínicas dos doentes, o mestre português indicava as terapêuticas utilizadas. Permitem ainda partilhar um olhar interessado sobre a Europa do século XVI. Dão indicações sobre o modo de viver de povos diversos, a alimentação, a organização social, as tensões políticas, as guerras e as novidades que iam chegando das terras descobertas. O grande médico português foi também um cidadão do mundo.
Referências: História da Medicina em Portugal. Maximiano Lemos. Publicações Dom Quixote/ Ordem dos Médicos, Lisboa, 1991.
Wikipedia
Gravuras: Internet.
Também publicado em O BAR DO OSSIAN
quarta-feira, 31 de março de 2010
HISTORINHAS DA MEDICINA
FALSOS MÉDICOS
Soube de uma falsa médica que foi condecorada pelo Presidente Jorge Sampaio nas cerimónias do dia 10 de Junho. Desempenhava uma actividade notável na promoção da defesa dos direitos dos portadores de uma doença rara. Na altura, intitulava-se médica reformada e não parecia representar perigo para os doentes. Dizia deslocar-se frequentemente à Alemanha para consultar uma autoridade na matéria, mas não consta que tenha passado de Badajoz.
Sempre achei que era fácil passar por médico. Na Psiquiatria, entidade alegadamente instalada nas fronteiras do corpo e da alma, o mais importante, na pequena patologia, é, às vezes, saber ouvir. Aprender as indicações e as posologias de um par de ansiolíticos e de alguns antidepressivos não constitui tarefa maior. O conhecimento científico pode tornar-se fácil de simular. Num contexto bem diferente, sei de moças bonitas que passaram por inteligentes e cultas por terem desenvolvido uma capacidade estranhamente rara: saberem calar-se. Chamem-lhes burras...
Como especialista com alguma experiência prévia nas urgências polivalentes, lembro-me de passar pelas salas de observação do banco de S. José e de me atrever a tentar diagnosticar, a alguma distância: aquele doente queixa-se de uma cólica renal; o do lado tem um edema agudo do pulmão; o outro padece de bronquite asmática; o da direita sofreu um acidente vascular cerebral... Acertava muitas vezes.
A patologia dominante, mesmo nas grandes urgências médicas, não é muito variada. A terapêutica inicial é mais ou menos uniforme para a maioria das situações. Qualquer pessoa sensata, mesmo sem preparação médica, pode aprender a conhecê-las e a fixar o primeiro tratamento. Quando ocorrem dúvidas, é quase sempre possível uma pessoa inventar um pretexto para se mudar para a sala vizinha e esperar que apareça alguém capaz de resolver o problema. Por outro lado, fica bem pedir a opinião de um médico mais diferenciado e segui-la.
Anos atrás, uma familiar de um colega meu ausente do País pediu-me que metesse uma cunha para lhe conseguir uma consulta de Oftalmologia. Dirigi-me a um jovem e brilhante especialista do Hospital dos Capuchos que se prontificou a atendê-la.
Confidenciou-me a senhora, dias depois:
- Deve ser um falso médico! Pediu ao colega do lado que colocasse a vinheta na receita e que a assinasse...
domingo, 21 de março de 2010
HISTORINHAS DA MEDICINA

Iniciei o estágio da Especialidade em Julho de 1973.
Éramos poucos e lançaram-me logo às feras da Urgência. Ignorante e receoso, fui obrigado a representar o Serviço de Neurocirurgia como se andasse lá há muito tempo e tivesse aprendido grandes coisas.
De dia, ainda era apoiado. À noite, a responsabilidade caía-me toda nos ombros. Lembro-me da voz grossa do meu chefe, o Doutor Correia de Almeida:
- Olhe que só tenho gasolina para chegar a Queluz...
Era lá que ele morava. Vinha, quando era mesmo preciso.
Ao entrar na Especialidade, mudei também de equipa de Banco e conheci o Doutor Bandeira. Homem experiente e cortês, teria mais dez anos do que eu. Conversávamos com alguma frequência. Às vezes, acontecia que um de nós era chamado ao trabalho e o diálogo interrompia-se.
O Doutor Bandeira pareceu-me um pouco distraído. Quando o encontrava de novo, minutos ou horas mais tarde, chegava a parecer-me que perdera o fio à meada. O colega mais velho ouvia-me com a mesma gentileza de sempre mas, em metade das ocasiões, parecia ter esquecido o que fora dito antes.
Creio que foi apenas no terceiro dia de Urgência com a mesma equipa que vi juntos os irmãos Bandeira. Atrapalhei-me e receei estar a sofrer de diplopia (visão dupla). Ainda conhecia mal o grupo de trabalho. Não me tinha passado pela cabeça ter estado a lidar com gémeos idênticos.
Um era Cirurgião Geral e o outro Ortopedista. Um deles coxeava ligeiramente. Conheciam todas as anedotas de gémeos e não pareciam apreciá-las. Terá sido por isso que nunca lhes contei esta história.
Se algum dos dois a ler, que aceite um abraço amigo!
Subscrever:
Mensagens (Atom)