EPILEPSIA
─ O MAL SAGRADO
Ninguém esquece facilmente
a primeira crise de «grande mal» epilético que presenciou. Não fujo à regra.
Aconteceu em Angola. Ia no começo da adolescência e encontrava-me no quintal da
casa de um amigo cujo pai era militar. Um soldado negro, «impedido» ao serviço
da família, foi bruscamente derrubado por uma força que parecia vir dos céus. O
jovem desabou pesadamente no chão de cimento. Depois estrebuchou, sem saber do
mundo nem dos outros, como se algum espírito agitado tivesse tomado conta dele.
Os gestos tinham força e violência mas nenhuma intenção. Quando as convulsões
terminaram, imobilizou-se e parecia morto
A epilepsia afeta espécies
de mamíferos filogeneticamente mais antigos que o Homo sapiens sendo,
provavelmente, anterior à Humanidade.
É conhecida desde tempos
recuados. Em 1700 A.C. o papiro de Smith, proveniente do Egito, relatava uma
convulsão num homem que tinha sofrido um traumatismo craniano. A descrição de
uma crise tónico-clónica foi fixada na Mesopotâmia, em carateres cuneiformes,
há cerca de três mil anos: uma pessoa cujo pescoço se volta para a esquerda,
cujas mãos e pés se tornam tensos, os olhos muito abertos, espuma a escorrer da
boca e perda da consciência. O mal foi atribuído à mão de um deus. Crises
epiléticas foram também descritas noutras civilizações antigas como a China e a
Índia.
A palavra epilepsia veio
da Grécia. Os gregos acreditavam que uma pessoa com convulsões tinha sido
tocada por um deus. O termo original significava abater de surpresa, fulminar.
Em inglês, a palavra seizure, que significa ataque ou acesso, vem de «to seize»,
o verbo que designa agarrar ou pegar. É sinónimo de «take possession of». A
epilepsia era considerada o estado de possessão do corpo humano por um espírito
alheio. O significado da posse variou com o decorrer do tempo e de acordo com
as culturas dos povos que a encaravam. Tratava-se, para uns, de um espírito mau
(tradição judaico-cristã) e, para outros, de um antepassado insatisfeito a
reclamar atenção e respeito (mitologia de certas tribos africanas).
Ao longo dos tempos, a
epilepsia foi associada a maldições e a crenças mágicas. Os nomes que lhe deram
foram muitos: doença das quedas, demónio das quedas, mal de S. Paulo, mal de
Hércules, morbus sacer (mal sagrado), mal lunático e mal comicial. Esta última
designação vem de comicium, a assembleia pública romana, que era dissolvida
quando algum dos seus membros caía vítima de uma crise. Júlio César foi um dos
epiléticos mais famosos de todos os tempos. Alguns autores atribuem a sua
doença à cisticercose cerebral que teria contraído durante as campanhas no
Egito.
A literatura antiga
reflete os conceitos correntes em cada época. Os textos sagrados não poderiam
escapar a esta regra.
Lembremos uma passagem do
Evangelho segundo S. Marcos:
–
Mestre, trouxe-te o meu filho, possesso de um espírito mudo;
E
este, onde quer que o apanhe, lança-o por terra e ele espuma, rilha os dentes e
vai definhando. Roguei a teus discípulos que o expelissem, e eles não puderam.
E
trouxeram-lho; quando ele viu a Jesus, o espírito imediatamente o agitou com
violência, e, caindo ele por terra, revolvia-se espumando.
Perguntou
Jesus ao pai do menino:
–
Há quanto tempo isto lhe sucede?
– Desde
a infância, respondeu;
E
muitas vezes o tem lançado no fogo e na água, para o matar; mas, se tu podes
alguma coisa, tem compaixão de nó, e ajuda-nos.
Vendo
Jesus que a multidão concorria, repreendeu o espírito imundo, dizendo-lhe:
– Espírito mudo e surdo, eu te ordeno: sai
deste jovem e nunca mais tornes a ele.
E
ele, clamando, agitando-se muito, saiu, deixando-o como se estivesse morto, ao
ponto de muitos dizerem:
–
Morreu.
Mas
Jesus, tomando-o pela mão, o ergueu, e ele se levantou.
Foi Hipócrates quem
primeiro afirmou que a epilepsia não era sagrada nem divina, mas provocada por
um distúrbio do cérebro. O mestre grego foi pouco ouvido. O mal andou envolto
em mistério durante muitos séculos.
Os conhecimentos
fisiopatológicos capazes de explicar a epilepsia foram nascendo no século XIX
com os trabalhos de vários autores. Entre eles será justo destacar Hughlings
Jackson, que estabeleceu o conceito de descarga neuronal excessiva para a
origem das crises.
Em 1929, Berger conseguiu registar a atividade
elétrica do cérebro humano mediante a aplicação de elétrodos no couro cabeludo
e abriu caminho à Eletroencefalografia. Gibbs, Lennox, Penfield e Jaspers
contribuíram para a compreensão progressiva dos fenómenos epiléticos.
Sabe-se, desde a
antiguidade, que a afeção pode ser hereditária. Houve períodos, na Escócia, em
que as grávidas epiléticas eram sacrificadas. Na Alemanha, em época
relativamente recente, os epiléticos eram esterilizados. No Estado de
Conectticut, nos EUA, o casamento era proibido aos epiléticos e quem assistia à
boda era multado.
O diabo criado dentro de
nós não se extinguiu de todo. Os epiléticos continuam a carregar alguns
estigmas, mesmo nas sociedades modernas.
Imagens: Internet
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