Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

domingo, 18 de junho de 2017


DEMÊNCIA E EUTANÁSIA*

III 


As nossas ideias sobre a vida e a morte têm evoluído.
Nos anos cinquenta do século passado, foi descrito um estado de coma em que o tronco cerebral deixava definitivamente de funcionar, enquanto as funções cardíacas e renais se mantinham, desde que fosse fornecida ao corpo ventilação artificial e alimentação parentérica. Considerou-se que esses doentes já não viviam. Era um conceito de morte inteiramente novo, permitido pela evolução tecnológica. Foi necessário estabelecer critérios clínicos que a definissem, sem margens de erro, para evitar especulações. Uma equipa da Universidade de Harvard estabeleceu, em 1968, os primeiros critérios de coma irreversível, equivalente à chamada “Morte cerebral”. Ainda hoje variam um pouco, conforme os países.
A ideia de que uma pessoa morre quando morre o seu cérebro rompeu com o modo como as civilizações encaravam o fim da vida, que fora sempre definida pelo cessar dos batimentos do coração. Apesar das implicações religiosas, éticas, legais e sociais da nova maneira de pensar, a mudança impôs-se de forma relativamente rápida e pacífica.
Ora, o nome foi mal posto. O encéfalo compõe-se de cérebro, cerebelo e tronco cerebral e não são apenas as funções cerebrais que cessam.
A crítica à obstinação terapêutica desenvolveu-se quase na mesma altura. O médico devia abster-se de tratar, quando já não existiam possibilidades de curar, melhorar, ou atenuar o sofrimento dos doentes.
A evolução da demência é impressionante. A dada altura, os doentes nem o cônjuge reconhecem. Lembro-me de uma senhora muito educada que, numa fase adiantada da doença, dizia respeitosamente ao marido: «Não percebo o que é que o senhor está a fazer na minha cama».


A perda da afetividade acompanha a deterioração da capacidade de raciocínio. Vai, tudo, piorando aos poucos. Às tantas, não se ama ninguém, não se conhece ninguém e não se entende nada do que se passa em volta. O doente ignora-se a si próprio. Deixa de ter alma. Para os não crentes, como eu, alma é a mente ou psique, o resultado do funcionamento normal do cérebro.
Eu julgo que é preciso estabelecer outro conceito de morte. De certo modo, será aperfeiçoar o que já existe. Esta, sim, será a «morte cerebral». Mesmo não haja coma e que o tronco cerebral continue a funcionar, quem perde, de todo e de vez, o raciocínio, a memória e a afetividade, deve ser considerado morto. Terá direito a apagar-se, sem mais sofrimento e com um mínimo de dignidade, se manifestar previamente ser essa a sua vontade.  
Eu quero que me façam isso, se me calhar terminar dessa forma.
Será útil relembrar alguns conceitos.
Eutanásia ativa – consiste em oferecer a morte sem sofrimento a um indivíduo com doença incurável e associada a grande sofrimento físico e psíquico. É discutida e planeada entre o doente e o profissional que o vai ajudar a morrer.
Eutanásia passiva – consiste na interrupção dos cuidados médicos, quer sejam medicamentosos ou não. Representa, de certo modo, a interrupção da “obstinação terapêutica”.
Suicídio assistido – neste caso, a morte não é levada a cabo por terceira pessoa. É o próprio doente que a provoca, podendo ter a ajuda de terceiros.
Distanásia – é o contrário de eutanásia. Segundo ela, a vida humana deve ser prolongada em todas as eventualidades, mesmo que a cura não seja possível e o sofrimento seja quase insuportável.
O Testamento Vital está definido na Internet, na Área do Cidadão do Serviço Nacional de Saúde. Trata-se de um documento registado eletronicamente onde é possível manifestar o tipo de tratamento, ou os cuidados de saúde, que pretende ou não receber quando estiver incapaz de expressar a sua vontade.
Permite, ainda nomear um ou mais procuradores de cuidados de saúde, que tomarão decisões por ele.
Continuo a citar o que está publicado na Área do Cidadão do SNS:
“Num contexto de urgência ou de tratamento específico, o médico assistente poderá consultar o Testamento Vital do utente, através do Portal do Profissional, garantindo assim que a vontade anteriormente expressa é cumprida. O próprio utente pode, através da Área do Cidadão, verificar se o seu Testamento Vital está correto, ativo, dentro do prazo, acompanhando todos os acessos que são feitos pelos médicos.”
 “Qualquer pessoa pode fazer o “download”, imprimir e preencher o Modelo de Diretiva  Antecipada de Vontade e entregar no ACES/ULS da sua área de residência, para registo na plataforma RENTEV (Registo Nacional do Testamento Vital)”.

Naturalmente, só poderão ser atendidas as vontades que e se conformem com a lei vigente no país. Atualmente, em Portugal, a participação em eutanásia ativa é punida com penas de prisão. Julgo que o enquadramento legal da morte assistida irá mudar rapidamente. Este painel representou o nosso contributo para a discussão do tema.


*Terceira parte da conferência realizada em Setúbal, na Casa da Baía, a 17/6/2017

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