DEMÊNCIA E EUTANÁSIA*
III
As nossas ideias sobre a
vida e a morte têm evoluído.
Nos anos cinquenta do
século passado, foi descrito um estado de coma em que o tronco cerebral deixava
definitivamente de funcionar, enquanto as funções cardíacas e renais se
mantinham, desde que fosse fornecida ao corpo ventilação artificial e
alimentação parentérica. Considerou-se que esses doentes já não viviam. Era um
conceito de morte inteiramente novo, permitido pela evolução tecnológica. Foi
necessário estabelecer critérios clínicos que a definissem, sem margens de
erro, para evitar especulações. Uma equipa da Universidade de Harvard
estabeleceu, em 1968, os primeiros critérios de coma irreversível, equivalente
à chamada “Morte cerebral”. Ainda hoje variam um pouco, conforme os países.
A ideia de que uma pessoa morre quando
morre o seu cérebro rompeu com o modo como as civilizações encaravam o fim da
vida, que fora sempre definida pelo cessar dos batimentos do coração. Apesar
das implicações religiosas, éticas, legais e sociais da nova maneira de pensar,
a mudança impôs-se de forma relativamente rápida e pacífica.
Ora, o nome foi mal posto.
O encéfalo compõe-se de cérebro, cerebelo e tronco cerebral e não são apenas as
funções cerebrais que cessam.
A crítica à obstinação
terapêutica desenvolveu-se quase na mesma altura. O médico devia abster-se de
tratar, quando já não existiam possibilidades de curar, melhorar, ou atenuar o
sofrimento dos doentes.
A evolução da demência é
impressionante. A dada altura, os doentes nem o cônjuge reconhecem. Lembro-me
de uma senhora muito educada que, numa fase adiantada da doença, dizia
respeitosamente ao marido: «Não percebo o que é que o senhor está a fazer na
minha cama».
A perda da afetividade acompanha a
deterioração da capacidade de raciocínio. Vai, tudo, piorando aos poucos. Às
tantas, não se ama ninguém, não se conhece ninguém e não se entende nada do que
se passa em volta. O doente ignora-se a si próprio. Deixa de ter alma. Para os
não crentes, como eu, alma é a mente ou psique, o resultado do funcionamento
normal do cérebro.
Eu julgo que é preciso
estabelecer outro conceito de morte. De certo modo, será aperfeiçoar o que já
existe. Esta, sim, será a «morte cerebral». Mesmo não haja coma e que o tronco
cerebral continue a funcionar, quem perde, de todo e de vez, o raciocínio, a
memória e a afetividade, deve ser considerado morto. Terá direito a apagar-se,
sem mais sofrimento e com um mínimo de dignidade, se manifestar previamente ser
essa a sua vontade.
Eu quero que me façam
isso, se me calhar terminar dessa forma.
Será útil relembrar alguns conceitos.
Eutanásia ativa – consiste em oferecer
a morte sem sofrimento a um indivíduo com doença incurável e associada a grande
sofrimento físico e psíquico. É discutida e planeada entre o doente e o
profissional que o vai ajudar a morrer.
Eutanásia
passiva – consiste na interrupção dos cuidados médicos, quer sejam
medicamentosos ou não. Representa, de certo modo, a interrupção da “obstinação
terapêutica”.
Suicídio
assistido – neste caso, a morte não é levada a cabo por terceira pessoa. É o
próprio doente que a provoca, podendo ter a ajuda de terceiros.
Distanásia
– é o contrário de eutanásia. Segundo ela, a vida humana deve ser prolongada em
todas as eventualidades, mesmo que a cura não seja possível e o sofrimento seja
quase insuportável.
O Testamento Vital está
definido na Internet, na Área do Cidadão do Serviço Nacional de Saúde. Trata-se
de um documento registado eletronicamente onde é possível manifestar o tipo de
tratamento, ou os cuidados de saúde, que pretende ou não receber quando estiver
incapaz de expressar a sua vontade.
Permite, ainda nomear um ou mais
procuradores de cuidados de saúde, que tomarão decisões por ele.
Continuo a citar o que
está publicado na Área do Cidadão do SNS:
“Num contexto de
urgência ou de tratamento específico, o médico assistente poderá consultar o
Testamento Vital do utente, através do Portal do Profissional, garantindo assim
que a vontade anteriormente expressa é cumprida. O próprio utente pode, através
da Área do Cidadão, verificar se o seu Testamento Vital está correto, ativo,
dentro do prazo, acompanhando todos os acessos que são feitos pelos médicos.”
“Qualquer pessoa pode fazer o “download”, imprimir e preencher o Modelo de
Diretiva Antecipada de Vontade e
entregar no ACES/ULS da sua área de residência, para registo na plataforma
RENTEV (Registo Nacional do Testamento Vital)”.
Naturalmente, só poderão ser atendidas as vontades que
e se conformem com a lei vigente no país. Atualmente, em Portugal, a
participação em eutanásia ativa é punida com penas de prisão. Julgo que o
enquadramento legal da morte assistida irá mudar rapidamente. Este painel
representou o nosso contributo para a discussão do tema.
*Terceira
parte da conferência realizada em Setúbal, na Casa da Baía, a 17/6/2017
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