VIDA SALVA POR LIVROS
Há
quatro décadas e meia eu era médico no Gil Eannes. Em julho, a frota dividiu-se
e eu fui colocado no Neptuno, um navio de pesca à linha que integrou o grupo
das embarcações que resolveram tentar a sorte na Gronelândia. O navio hospital
voltou para sul, em direção aos bancos da Terra Nova.
O
terceiro máquinista do Neptuno era um jovem folgazão, de pele rosada e
rosto redondo Lembro que fazia lembrar um personagem alegre da série televisiva
“Bonanza”, em voga na época. Via-se que iria ser gordo na meia-idade. Parecia
uma pessoa normal, mas aconteciam-lhe coisas pouco comuns, que dificilmente
encontram justificação nas estatísticas. Adotaria comportamentos de risco,
capazes de atraírem o azar. Uma vez, rebentou a máquina de fazer óleo de fígado
de bacalhau, que ele estava a reparar. A explosão deu-se para trás e
ele não sofreu nada. Noutra ocasião, um pacote pesado despendeu-se do pau de
carga e caiu-lhe mesmo aos pés. Se tivesse avançado um passo, morreria ali.
Calhou-me estar por perto quando a morte o desafiou pela terceira vez.
Naquela
época, a temperatura da água do mar rondava os 2 graus centígrados e os
icebergs derretiam devagar. Corriam histórias de pescadores que caíam à água e
eram imediatamente recolhidos. Não tinham tido tempo para se afogarem, mas já
estavam mortos ao serem resgatados. Era o choque térmico. O coração recusava
continuar a bater ao ser confrontado bruscamente com o frio extremo.
Ali,
no verão, era sempre dia. Ganhei o hábito de, por volta das 22.30, correr a
cortina da vigia e acender a luz do camarote, para fingir que era noite.
Um dia, já me me tinha sentado para jantar e acabava de ser servida a sopa.
Um marinheiro entrou a correr na pequena sala de refeições dos oficiais.
Gritou:
−
O terceiro de máquinas caiu ao mar. Já foi recolhido.
Levantei-me
e corri, com um aperto no coração. Receava confrontar-me com o cadáver dum
jovem.
−
Para onde é que o levaram?
─
Para o camarote dos maquinistas.
A
distância era curta e, menos de um minuto depois, estava ao pé dele.
Encontrava-se no chuveiro, a cantarolar, como se nada lhe tivesse acontecido.
Tinha
ido substituir a luz do mastro da popa do navio. Levava na mão uma chave de
fendas e um alicate e voltou com eles para bordo.
Não
se entende como alguém se pode deixa cair, com bom tempo, de um mastro à água.
Se o mar estiver mau, a tarefa adia-se. Qualquer pessoa normal se agarraria com mãos e
pernas.
Por
sorte, ou milagre, encontrava-se um dóri mesmo ao lado. Era de outro navio. O
pescador apanhou-o antes dele se afogar.
Há
meia dúzia de meses fui ao museu Marítimo de Ílhavo fazer uma conferência sobre
a minha experiência como médico do Gil Eannes. Tive a oportunidade de conhecer
um jovem que se apresentou como neto do pescador que tinha salvo a vida do
maquinista. O avô embarcara num navio cujo nome não fixei. Gostava de
ler e trocava livros com um amigo que tinha no Neptuno. Como as embarcações andavam
perto, aproveitara a oportunidade para entregar volumes lidos e recolher outros
novos. O jovem folgazão sobrevivera porque, naqueles mares gelados, havia quem gostasse
de ler.
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