Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

domingo, 18 de junho de 2017


          

    DEMÊNCIA E EUTANÁSIA


I

A palavra “eutanásia” vem do grego e significa “boa morte”. Terminar a vida com dignidade e sem sofrimento é uma aspiração antiga dos humanos. Em Setúbal, é bem conhecida a capela do Senhor do Bonfim, cujo culto os setubalenses levaram para o Brasil. Existiu ainda na cidade a capela do Senhor da Boa Morte.



Demência é o desfazer da mente. Deterioram-se todas as funções intelectuais. São afetadas a inteligência, o discernimento, a memória, o temperamento, o afeto e a energia. A palavra aplica-se apenas a quem tinha antes uma capacidade intelectual normal.
As causas de demência são muito variadas. Não faria sentido nem seria possível abordá-las todas. Irei referir apenas a doença de Alzheimer. É a mais comum e importante doença degenerativa do cérebro. Integra-se no grupo das demências progressivas em que outros sinais neurológicos como paralisias ou movimentos anormais não ocorrem ou são pouco importantes. Fazem parte do mesmo grupo alguns tipos da demência difusa de corpos de Lewy e a doença de Pick, em que a atrofia cerebral é circunscrita.

     Retirada de Adams, Victor & Ropper, Principles of Neurology

A doença de Alzheimer já faz parte dos nossos pesadelos. É uma das doenças mentais mais frequentes, ocupando cerca de 20 por cento das camas de hospitais psiquiátricos e uma percentagem provavelmente bem maior das dos lares de terceira idade.
É relativamente rara antes dos 60 anos. A partir daí, a sua incidência cresce exponencialmente, sendo muito frequente acima dos 80 anos.
As mulheres são um pouco mais sensíveis à doença do que os homens, mas a diferença é marginal. As senhoras predominam nas estatísticas por durarem mais que nós.
 A expectativa de vida de uma pessoa com Alzheimer é aproximadamente metade da esperada para a idade. Os doentes não morrem de demência. A doença torna-os mais vulneráveis às doenças respiratórias ou cardiovasculares.
A doença de Alzheimer provoca a morte de células cerebrais. Há perda generalizada de células nervosas mais marcada no córtex cerebral e nos hipocampos. O cérebro diminui de tamanho, enquanto crescem compensatoriamente as dimensões dos espaços ocupados por líquido cefalorraquidiano: ventrículos e sulcos da convexidade cerebral.

                                  Retirado da Internet

O início é tão insidioso que raramente é apontada uma data precisa para o começo da doença. Ocasionalmente é associado a algum evento, como uma operação, uma doença febril, um pequeno trauma cerebral ou uma mudança de medicação.
Alguém acaba por reparar na falta de iniciativa do doente, na perda do interesse pelo trabalho e pelo negligenciar das tarefas diárias.

O sintoma mais característico é o desenvolvimento gradual de esquecimento.
Esquecem-se os pequenos acontecimentos do dia-a-dia e as conversas recentes. Repetem-se as mesmas perguntas. O doente não sabe onde pôs os objetos pessoais. Ao falar, interrompe-se por não lhe ocorrer a palavra adequada. Os nomes das pessoas conhecidas não vêm à ideia, mesmo que pareçam estar “na ponta da língua”. O mesmo acontece à escrita. O vocabulário reduz-se. A compreensão da fala dos outros mantém-se mais algum tempo, mas acaba por ser afetada. Mais tarde, torna-se difícil dizer frases inteiras ou entendê-las. 

Como diferenciar a falta de memória devida à idade da provocada pela doença de Alzheimer? Com a idade, perde-se muito. Vai diminuindo a eficiência biológica, a resistência às doenças e a capacidade do organismo para se manter como uma máquina eficaz. O envelhecimento acompanha-se de alguma perda de neurónios, com diminuição do volume e peso do cérebro.
No entanto, a falta de memória devida à idade piora lentamente e interfere pouco com a capacidade para exercer as tarefas diárias.
Há testes rápidos que avaliam o estado mental, incluindo o reconhecimento da orientação no espaço e no tempo, a memória de curto prazo, a reprodução de números, a capacidade de cálculo e a linguagem.
Um dos mais usados é o Mini-Mental State Examination - MMSE


Este teste é geralmente realizado pelo médico no consultório e leva cerca de 5 a 10 minutos para concluir.
Existem muitos outros testes. Alguns permitem despistar a doença em fase mais precoce.
É o caso da WAIS (Weschler Adult Intelligency Scale) ou da ADAS-Cog (Alzheimer`s Disease Assessment Scale - Cognitive).
A última foi desenvolvida em 1984. É um teste constituído por 11 provas de desempenho. É mais aprofundado que o MMSE e permite despistar a doença numa fase mais precoce. A sua aplicação demora habitualmente cerca de 30 minutos. O especialista pode fazê-lo no consultório ou referenciar o doente para um psicólogo.  
A evolução da doença é progressiva. Aqui está, em gráfico, a escala FAST, desenvolvida pelo Centro Médico de Envelhecimento da Universidade de Nova York e pelo Centro de Investigação de Demência. Considera 7 estádios, sendo o primeiro o de normalidade, em que ainda não existe doença.


       No 2º estádio, começa a notar-se algum declínio funcional. Nesta fase e nas seguintes, a tomada de conhecimento da deterioração intelectual pode provocar depressão, que deverá ser tratada.
No 3º Estádio, a doença ainda está em fase precoce. A pessoa funciona com a capacidade aproximada de uma criança de 12 anos. Ocorrem mudanças de comportamento e instabilidade emocional, com reações exageradas ou despropositadas. É bem conhecido o estado de confusão e ansiedade que se verifica no final do dia. A capacidade para o cálculo é afetada. O doente faz confusão com os preços e engana-se nos trocos. Esquece o número do cartão Multibanco.
Ocorre desorientação espacial. O doente pode perder-se em locais conhecidos.
Nota-se a falta de higiene e o descuidar da aparência pessoal.
Nesta altura, ou antes, será conveniente que o doente nomeie alguém para, no futuro, tomar decisões importantes e cuidar das suas finanças.
 A progressão da doença é variável. Alguns doentes pioram em poucos anos, enquanto outros mantêm certa qualidade de vida durante perto de duas décadas. A maioria dos pacientes de Alzheimer vive 5 a 10 anos após o diagnóstico.
No 4º Estádio, a doença tem gravidade moderada. É já necessária alguma assistência de terceiros.
Até certo ponto da evolução da doença, a memória do passado distante é relativamente bem conservada. A memória para factos recentes perde-se primeiro.
No 5º Estádio, o doente já precisa de ajuda para se vestir. O intelecto é comparável ao de uma criança de 5 a 7 anos. Desaprende o modo de usar utensílios comuns, embora retenha a força muscular e a coordenação bastantes para os usar. Tem dificuldade em abrir ou fechar as fechaduras das portas e em usar o garfo e a faca.
A marcha mantém-se, por regra, normal, até uma fase adiantada da doença. Por vezes, torna-se difícil, de passos geralmente curtos, lenta e com desequilíbrio.
 Ao atingir o 6º Estádio, o cérebro funciona de forma semelhante ao do de uma criança de 2 a 4 anos. É necessária assistência 24 horas por dia, sete dias por semana. Nesta fase, é quase impossível conservar o doente em casa. Acontece a institucionalização.
No 7º Estádio, a demência é severa, estando o funcionamento mental ao nível do de um recém-nascido. A morte acontece frequentemente por infeção secundária, como a pneumonia.
No decurso das últimas fases da doença de Alzheimer, tanto a situação do doente como a dos que cuidam dele é complicada.
Os que nos amam respeitam a memória do que fomos e não o quase vegetal em que nos tornámos.

A dada altura, perdemos até a capacidade de sofrer. Os nossos, não. 

*Palestra proferida na Casa da Baía, em Setúbal, no encerramento das JORNADAS CULTURAIS CONJUNTAS LASA/SOPEAM. 

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