LIBELO
DA RAINHA
JOAQUIM
BARRADAS
Joaquim
Barradas publicou o seu primeiro livro de ficção. Assenta em bases histórica
bem estudadas e muito refletidas. Outra coisa não seria de esperar da sua maneira
de ser e de encarar o mundo.
A obra não
está, nem poderia estar, desenquadrada do percurso literário que o autor
começou a trilhar ao escrever “A arte de sangrar de cirurgiões e barbeiros”.
Cirurgião é ele. Foi diretor dos serviços de Cirurgia dos hospitais Garcia da
Orta, em Almada e de São Bernardo, em Setúbal.
Barradas é
um curioso da História de Portugal e, em especial, da História da Medicina. A
sua escrita é cuidada. A trama do romance foi bem construída.
Noutro tempo e noutro lugar, falarei da ficção. Hoje,
limito-me a reproduzir, com a devida vénia, um texto das páginas iniciais do “Libelo
da Rainha”. É notável o modo como o autor recria o pensamento médico da época e ilustra o que poderiam ser as dúvidas, as
hesitações e o modo de agir dos nossos colegas de outrora, ao arriscarem
fortunas e reputações nos melhores ou piores desfechos das maleitas que
afligiam os reais enfermos.
O rei (D. João IV) está
agora doente e tem uma pertinaz obstipação, com dores intensas, sem remissão.
Os médicos muniram-se de poderosos agentes contra a obstipação e prescreveram
chás de sene e ruibarbo, que manuseiam com destreza. São os remédios drásticos,
que causam grandes cólicas, mas são quase sempre eficazes. Infelizmente, não é
o caso do rei. Fica de cama e prostra-se na sua alcova. Dão-lhe novos tratamentos:
sangrias diárias no braço, do lado direito, perto do sítio doente. Com o sangue
que se retira, virão os humores espessos retidos no corpo e que aí se acumulam.
Há ocasiões em que melhora, mas ainda assim nada parece atalhar a doença e a
indecisão campeia entre o júbilo e o desânimo de todos. Os físicos entregam-se
ao grave conciliábulo da arte médica e da ciência incerta. Os argumentos
fixam-se em princípios há muito assinalados pelos sábios antigos, mas as doutas
opiniões divergem entre humores nocivos e sábias verdades. Os médicos têm um ar
grave quando tomam o pulso e se apoderam das sugestões deste prodigioso sinal
que o corpo envia do seu interior inacessível. O pulso é delgado e sumido,
certamente por excesso de calor, e as febres não desmentem. Nova conferência e
nova decisão: a sangria será feita nas veias do pé, longe do sítio doente.
Alguma hesitação sobre o lado onde se fará a ferida que vai abrir a veia: no pé
direito limpam-se os humores viciosos do fígado; do pé esquerdo recolhe-se o
sangue melancólico do baço opilado. A discussão ganha algum calor.
Evocam-se os
ensinamentos do grande Hipócrates e a justa doutrina de Galeno, mas toda a
reflexão tem um fim: não havendo melancolia por excesso de bílis negra,
desnecessário se torna desopilar o baço; o humor responsável será a bílis
amarela do fígado, quente e seca, como o fogo, e atreita às grandes febres. O
ar dos médicos é grave e a consideração profunda: sendo curta a vida, alongada
a ciência e difícil o julgamento, há que encontrar oportunidade. Sim, a sangria
será feita no pé direito.
Libelo da Rainha. Joaquim Barradas, BY THE BOOK, Lisboa,
2017.
Sem comentários:
Enviar um comentário