Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017


LIBELO DA RAINHA

JOAQUIM BARRADAS

Joaquim Barradas publicou o seu primeiro livro de ficção. Assenta em bases histórica bem estudadas e muito refletidas. Outra coisa não seria de esperar da sua maneira de ser e de encarar o mundo.
A obra não está, nem poderia estar, desenquadrada do percurso literário que o autor começou a trilhar ao escrever “A arte de sangrar de cirurgiões e barbeiros”. Cirurgião é ele. Foi diretor dos serviços de Cirurgia dos hospitais Garcia da Orta, em Almada e de São Bernardo, em Setúbal.
Barradas é um curioso da História de Portugal e, em especial, da História da Medicina. A sua escrita é cuidada. A trama do romance foi bem construída.
Noutro tempo e noutro lugar, falarei da ficção. Hoje, limito-me a reproduzir, com a devida vénia, um texto das páginas iniciais do “Libelo da Rainha”.  É notável o modo como o autor recria o pensamento médico da época e ilustra o que poderiam ser as dúvidas, as hesitações e o modo de agir dos nossos colegas de outrora, ao arriscarem fortunas e reputações nos melhores ou piores desfechos das maleitas que afligiam os reais enfermos.


O rei (D. João IV) está agora doente e tem uma pertinaz obstipação, com dores intensas, sem remissão. Os médicos muniram-se de poderosos agentes contra a obstipação e prescreveram chás de sene e ruibarbo, que manuseiam com destreza. São os remédios drásticos, que causam grandes cólicas, mas são quase sempre eficazes. Infelizmente, não é o caso do rei. Fica de cama e prostra-se na sua alcova. Dão-lhe novos tratamentos: sangrias diárias no braço, do lado direito, perto do sítio doente. Com o sangue que se retira, virão os humores espessos retidos no corpo e que aí se acumulam. 


Há ocasiões em que melhora, mas ainda assim nada parece atalhar a doença e a indecisão campeia entre o júbilo e o desânimo de todos. Os físicos entregam-se ao grave conciliábulo da arte médica e da ciência incerta. Os argumentos fixam-se em princípios há muito assinalados pelos sábios antigos, mas as doutas opiniões divergem entre humores nocivos e sábias verdades. Os médicos têm um ar grave quando tomam o pulso e se apoderam das sugestões deste prodigioso sinal que o corpo envia do seu interior inacessível. O pulso é delgado e sumido, certamente por excesso de calor, e as febres não desmentem. Nova conferência e nova decisão: a sangria será feita nas veias do pé, longe do sítio doente. Alguma hesitação sobre o lado onde se fará a ferida que vai abrir a veia: no pé direito limpam-se os humores viciosos do fígado; do pé esquerdo recolhe-se o sangue melancólico do baço opilado. A discussão ganha algum calor. 


Evocam-se os ensinamentos do grande Hipócrates e a justa doutrina de Galeno, mas toda a reflexão tem um fim: não havendo melancolia por excesso de bílis negra, desnecessário se torna desopilar o baço; o humor responsável será a bílis amarela do fígado, quente e seca, como o fogo, e atreita às grandes febres. O ar dos médicos é grave e a consideração profunda: sendo curta a vida, alongada a ciência e difícil o julgamento, há que encontrar oportunidade. Sim, a sangria será feita no pé direito.

Libelo da Rainha. Joaquim Barradas, BY THE BOOK, Lisboa, 2017.


Sem comentários:

Enviar um comentário