Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017


EUTANÁSIA EM CAMPOS DE COMBATE



Em “A arte de sangrar de cirurgiões e barbeiros”, Joaquim Barradas abordou a sangria a combatentes no campo de batalha, com a intenção de minorar o sofrimento dos feridos incuráveis. Seria, em geral, uma forma de Eutanásia. Ouçamos o autor:

Ainda no século passado eram feitas sangrias no campo de batalha aos feridos em combate, muitos deles já debilitados pela hemorragia.
No fim da batalha, muitas vezes ficavam milhares de feridos no terreno, que chegavam a passar uma noite inteira ao relento, sem assistência, tendo por companhia milhares de mortos e os lamentos dos companheiros igualmente feridos. Houve um tempo em que a primeira preocupação era minorar o sofrimento, ainda que em detrimento da evolução da doença.
A sangria feita no campo de batalha embotava a perceção da dor e provocava alguma obnubilação que transportava os soldados para um nível de consciência que, de alguma forma, os afastava do sofrimento, do incómodo e de outras provações.

Em “O Libelo da Rainha”, publicado este ano, Barradas retoma o tema da Eutanásia nos campos de batalha, desta vez executada de forma bem mais ativa.
A 17 de junho de 1665, o exército português, comandado por D. António Luís de Meneses, conde de Cantanhede e marquês de Marialva, alcançou uma vitória significativa sobre as tropas espanholas do marquês de Caracena, que ocupara Borba e sitiava Vila Viçosa. O combate travou-se em Montes Claros, local que dominava a estrada estratégica que ligava Estremoz a Vila Viçosa. Os invasores tinham a intenção de ocupar Lisboa e de pôr fim à tentativa de restauração da nacionalidade portuguesa. A batalha teve custos elevados para ambos os lados.


Passo a citar Joaquim Barradas:

Há quatro mil e setecentos mortos pelo terreno. Uns montes deles estão empilhados aqui e acolá, mas a maioria está disseminada pela campina, tal como os feridos e estropiados. Alguns estão agonizantes e lutam para sobreviver; outros já se entregaram, prostrados no chão. Entre os oito mil feridos e os milhares de soldados mortos jazem também os cadáveres de quinhentos cavalos.
− Água. Dêem-me água, pedem alguns dos feridos.
Muitos não podem andar e alguns queixam-se de dores enquanto aguardam a sua sorte entre vasculhos de ramo amarelo caído e a secura de espinhos carapetos. Os feridos que sabem a vida a prazo e suspeitam do tormento que aí vem, apelam a quem passa:
− Matem-me. Por serviço de Deus, matem-me.
Os degoladores iniciam o seu trabalho misericordioso, e logo satisfazem os pedidos dos mais maltratados da batalha. Aproximam-se, fazem um movimento de pinça do braço com o antebraço, fixam a cabeça e expõem o pescoço para passarem rapidamente o punhal. A atmosfera é serena e o azul profundo do céu assenta num horizonte circular que envolve numa generosa campânula os corpos estendidos na planície. Pelo ar, anda um cheiro adocicado.


Encontram-se referências aos degoladores, que desempenhariam funções específicas em alguns exércitos (nem sempre com intenções piedosas) nos comentários às guerras que afligiram a América do Sul no final do século XIX e no começo do século XX. Pouco sei deles na história dos conflitos europeus. Tenciono voltar a abordar o tema dentro de algum tempo. 

Fontes:  Joaquim Barradas, Libelo da Rainha, By the Book, Lisboa, 2017.

            Joaquim Barradas, A Arte de Sangrar de Cirurgiões e Barbeiros, Livros Horizonte, 
            Lisboa, 1999.

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