EUTANÁSIA EM CAMPOS DE COMBATE
Em
“A arte de sangrar de cirurgiões e barbeiros”, Joaquim Barradas abordou a
sangria a combatentes no campo de batalha, com a intenção de minorar o sofrimento dos
feridos incuráveis. Seria, em geral, uma forma de Eutanásia. Ouçamos o autor:
Ainda no século passado
eram feitas sangrias no campo de batalha aos feridos em combate, muitos deles já
debilitados pela hemorragia.
No fim da batalha, muitas
vezes ficavam milhares de feridos no terreno, que chegavam a passar uma noite
inteira ao relento, sem assistência, tendo por companhia milhares de mortos e
os lamentos dos companheiros igualmente feridos. Houve um tempo em que a primeira
preocupação era minorar o sofrimento, ainda que em detrimento da evolução da
doença.
A sangria feita no campo
de batalha embotava a perceção da dor e provocava alguma obnubilação que
transportava os soldados para um nível de consciência que, de alguma forma, os
afastava do sofrimento, do incómodo e de outras provações.
Em “O Libelo da Rainha”, publicado
este ano, Barradas retoma o tema da Eutanásia nos campos de batalha, desta vez
executada de forma bem mais ativa.
A 17 de junho de 1665, o
exército português, comandado por D. António Luís de Meneses, conde de
Cantanhede e marquês de Marialva, alcançou uma vitória significativa sobre as
tropas espanholas do marquês de Caracena, que ocupara Borba e sitiava Vila
Viçosa. O combate travou-se em Montes Claros, local que dominava a estrada estratégica
que ligava Estremoz a Vila Viçosa. Os invasores tinham a intenção de ocupar
Lisboa e de pôr fim à tentativa de restauração da nacionalidade portuguesa. A
batalha teve custos elevados para ambos os lados.
Passo a citar Joaquim Barradas:
Há
quatro mil e setecentos mortos pelo terreno. Uns montes deles estão empilhados
aqui e acolá, mas a maioria está disseminada pela campina, tal como os feridos
e estropiados. Alguns estão agonizantes e lutam para sobreviver; outros já se
entregaram, prostrados no chão. Entre os oito mil feridos e os milhares de
soldados mortos jazem também os cadáveres de quinhentos cavalos.
−
Água. Dêem-me água, pedem alguns dos feridos.
Muitos
não podem andar e alguns queixam-se de dores enquanto aguardam a sua sorte entre
vasculhos de ramo amarelo caído e a secura de espinhos carapetos. Os feridos
que sabem a vida a prazo e suspeitam do tormento que aí vem, apelam a quem
passa:
−
Matem-me. Por serviço de Deus, matem-me.
Os
degoladores iniciam o seu trabalho misericordioso, e logo satisfazem os pedidos
dos mais maltratados da batalha. Aproximam-se, fazem um movimento de pinça do
braço com o antebraço, fixam a cabeça e expõem o pescoço para passarem rapidamente
o punhal. A atmosfera é serena e o azul profundo do céu assenta num horizonte
circular que envolve numa generosa campânula os corpos estendidos na planície.
Pelo ar, anda um cheiro adocicado.
Encontram-se
referências aos degoladores, que desempenhariam funções específicas em alguns
exércitos (nem sempre com intenções piedosas) nos comentários às guerras que
afligiram a América do Sul no final do século XIX e no começo do século XX. Pouco sei deles na história dos conflitos europeus. Tenciono voltar a abordar o tema dentro de algum tempo.
Fontes: Joaquim Barradas,
Libelo da Rainha, By the Book, Lisboa, 2017.
Joaquim Barradas, A Arte de Sangrar
de Cirurgiões e Barbeiros, Livros Horizonte,
Lisboa, 1999.
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