EQUIPAMENTO
DOS CIRURGIÕES MILITARES
NO
SÉCULO XVII
Joaquim Barradas publicou
este ano o seu segundo livro, “Libelo da Rainha”. Trata-se de um estudo
exaustivo sobre a crise da monarquia portuguesa nos anos que se seguiram à
morte do rei D. João IV, restaurador da nacionalidade e fundador da dinastia de
Bragança.
O autor ficciona a
narrativa, mas cinge-se o mais que pode aos dados históricos conhecidos. Cirurgião
que é, interessa-se pela medicina de combate.
Roque Gameiro -Batalha de Montes Claros
Roque Gameiro -Batalha de Montes Claros
Conta a história de Pedro Palmeiro e Eugénio
Pão e Água, ambos cirurgiões, que embarcam numa falua para a margem sul do Tejo. Tinham
sido mobilizados pelo conde de Castelo Melhor para compensar a falta de
cirurgiões “para assistência e acompanhamento das tropas”. O texto que
apresento reproduz o original, com os cortes que me pareceram necessários para
abreviar o artigo sem desvirtuar a intenção do autor.
Pedro
Palmeiro recosta-se na amurada depois de colocar a sua pequena bagagem debaixo
da bancada. À sua frente, Eugénio Pão e Água apoia no ombro direito o comprido
pau onde está amarrado o pano-cru que envolve o bornal e a sua exígua bagagem.
A
falua entra na ribeira do vale do Zebro e detém-se, mais adiante, para
desembarcar os passageiros junto à fábrica de biscoitos que abastece as naus da
carreira da Índia. Os cirurgiões
sentam-se num banco enquanto aguardam a chegada de transporte. Pedro Palmeiro
toma a iniciativa:
−
Onde estão os teus ferros? – Pergunta, enquanto pega na sua estreita caixa de
madeira e a põe sobre os joelhos.
− Estão
no saco que trago aqui – diz Eugénio, apontando para a sua trouxa.
−Tens
de arranjar uma caixa de amputação – diz o velho cirurgião, enquanto abre a
mala e mostra os instrumentos contidos em cada um dos pequenos compartimentos lavrados
na madeira: um grande serrote, tesoura, duas pinças, uma sonda-cânula e duas
lancetas. A um canto, uma longa fita de pano enrolado para servir de garrote.
Noutro espaço mais pequeno, as agulhas e fios de sutura.
Eugénio
nada diz e é o velho cirurgião que retoma a conversa:
−
Quando fazes exame para mestre?
−
Não há mestres no meu ofício.
−
Como não há mestres?
− Sou
cirurgião oculista e catarateiro.
−
E já fizeste alguma operação?
−
Não, não fiz.
−
Sabes tratar a feridas e fazer sangrias?
−
Isso é que é preciso. Na guerra é isso que vale. Aqui não precisamos de médicos
nem há vagar para tomar o pulso e dar aquelas mezinhas que eles dão. É uma
fartura de ossos partidos e de feridas a sangrar. O que é preciso é cortar, e
seguir adiante. É tanta a gente ferida e são tantos os que ficam para trás que
não há tempo para nada.
Fonte:
Joaquim Barradas. Libelo da Rainha. By the Book, Lisboa, 2017.
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