HOMENAGEM
AO DOUTOR MÁRIO BRAGA TEMIDO
Congratulo-me
com o espírito de abertura com que a direção do Ateneu, presidida pelo doutor
João Freitas, acolheu esta iniciativa, veiculada pelo nosso colega e amigo
comum Fernando Martinho.
Sou
presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos há poucos
meses. Entendo que a SOPEAM se deve aliar pontualmente a instituições não médicas,
para convívio e troca de informação cultural. Tem acontecido assim, no decurso
dos dois últimos anos com a Liga de Amigos de Setúbal e Azeitão, e estou aqui
hoje. Talvez, para o ano, se encontre um pretexto que nos junte outra vez.
Evocar
o doutor Mário Temido é chamar à memória os anos finais da minha juventude,
quando o coração era mais aberto e a generosidade fazia parte natural do nosso quotidiano.
É
recordar a Sé Velha, onde vivi durante a maioria dos anos que passei em Coimbra.
Morei muito tempo no Beco da Carqueja. A Sé Velha era, e espero que continue a
ser, um espaço especial dentro de Coimbra, um lugar de convivência chegada
entre estudantes e a população em geral.
Terá
havido outros locais no país em que a juventude estudantil se tenha aproximado
dos pequenos funcionários públicos e dos empregados de comércio com visões
políticas progressivas, mas, aos meus olhos, a experiência da Sé Velha será
sempre única.
Por
bares e cafés em que toda a gente se conhecia, discutia-se quase abertamente a
situação política, geralmente numa perspetiva de Esquerda. Sonhávamos, em
conjunto, com um Portugal democrático, moderno, pacífico, livre da herança
colonial e em convivência fraterna com os povos das antigas colónias, que
deveriam definir livremente os próprios destinos.
Lembrar
o doutor Mário Temido é, naturalmente, falar do Ateneu de Coimbra, a cuja Mesa da
Assembleia Geral presidiu. O Ateneu desempenhou um papel histórico como polo
agregador de pessoas de boa vontade que não se reviam nas vetustas estruturas
políticas do Estado Novo e tinham a coragem de afrontar o regime salazarista.
O
interesse científico do doutor Mário Temido pela malária é fácil de entender.
Nasceu e cresceu no Baixo Mondego, uma região onde o desenvolvimento da cultura
do arroz agravou a endemia antiga de paludismo – as sezões. A doença foi
erradicada em Portugal nos meados do século XX, mas os mosquitos anopheles
continuam aí e é bem possível que as recentes alterações climáticas favoreçam o
reaparecimento da malária entre nós.
Quando
fundámos o Posto Médico do Ateneu, éramos jovens médicos, cheios de boa
vontade, mas inexperientes. O doutor Mário Temido era o companheiro mais velho
que nos esclarecia as dúvidas e aconselhava, nos casos mais difíceis, que nem
eram tão raros assim.
Como
a juventude na profissão não permitia exageros de confiança redobrávamos de
cuidados na abordagem dos doentes mais frágeis. É possível que enviássemos para
a urgência do hospital, que era logo ali acima, casos clínicos que a poderiam
dispensar.
Sem
dizer nomes, vou contar um episódio da vida de um senhor cujo filho era
proprietário de um pequeno estabelecimento na Rua do Correio. O homem, que
teria, à data, os anos que eu conto hoje, possuía um coração muito fraco. De
tempos a tempos, ia vê-lo a casa e, quando me parecia necessário, mandava-o
para o hospital.
Aconteceu
assim numa sexta-feira. Surpreendeu-me que, logo na segunda-feira seguinte, me
voltassem a chamar. Contou-me o doente:
−
Ó senhor doutor… Eu estava na cama três. Morreu o da cama um e, algumas horas
mais tarde, o da cama dois. Domingo de manhã, faleceu o da cama quatro. Ela
saltou! A morte saltou por cima de mim! Assinei o pedido de alta e aqui estou!
Eram
mais os dias calmos e de convívio. Como disse, o relacionamento dos estudantes
com a malta da Sé Velha, era especial.
Eu
vivia duma bolsa de estudo e as mesadas chegavam a atrasar-se três, quatro e
mais meses. Vivíamos, então, a crédito. Certa vez que me viu preocupado, o
Mário Ferreira, proprietário do Café Oásis, a quem já devia três meses de bicas
e cigarros, chamou-me de lado. “Doutor Trabulo, disse-me. Não se chateie. Pegue
lá cinquenta paus. Leve a esposa a jantar fora e depois vão os dois ao cinema.
Quando receber, paga tudo junto…”
Foram
anos bons. Vivíamos modestamente, mas tínhamos a alegria própria da juventude. O
doutor Mário Temido ia-nos apoiando com a sua amizade e o seu saber. Fico
contente por ter surgido esta oportunidade de o recordar.
António Trabulo
(Palestra proferida no Ateneu de Coimbra a 19/10/2018)
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarRecordo com saudade o Dr. Mário Braga Temido, 1º Presidente da Junta de Freguesia da Sé Nova-Coimbra pós 25 de Abril com quem laborei durante o mandato, distinto Médico e Amigo de coração aberto para toda a comunidade Coimbrã.
ResponderEliminarJosé Rojão