Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

terça-feira, 20 de novembro de 2018





GRIPE PNEUMÓNICA

II


     A Pneumónica foi provocada por uma estirpe do vírus Influenza A, do subtipo H1N1. 
     O vírus da gripe é um ortomixovírus com dois tipos essenciais de glicoproteínas de superfície: a hemaglutinina e a neuraminidase. A variação da antigenicidade destas glicoproteínas permite à gripe apresentar-se de formas novas quase todos os anos. 


   De tempos a tempos, ocorrem variações maiores, as chamadas “antigenic shift”. 
    As nossas defesas imunológicas assentam na imunidade humoral, baseada na produção de anticorpos contra estes dois antigénios, ajudada pela imunidade celular, a cargo dos linfócitos T, das células exterminadoras naturais e dos macrófagos.
Em 2005, foi anunciado o sequenciamento genético do vírus da gripe de 1918, recuperado de cadáveres congelados em zonas de permafrost, ou pergelissolo. É um tipo de solo encontrado na região do Ártico. É constituído por terra, gelo e rochas permanentemente congeladas.



Estudos em ratinhos sugeriram que as mortes ocorriam quando os sistemas imunológicos reagiam exageradamente ao vírus, com libertação excessiva de citoquinas. Essas “tempestades” de citoquinas teriam precipitado o envolvimento pulmonar e a morte de adultos jovens, durante a pneumónica. Dito de outro modo, parece que morreu quem se defendeu demais.



Os sistemas imunológicos mais débeis de crianças e velhos não seriam capazes de reações tão intensas, originando menores taxas de mortalidade. As crianças e os idosos costumam ser os mais vulneráveis às epidemias. Não aconteceu assim com a pneumónica, que castigou, essencialmente os setores jovens da população, predominando entre os 20 e os 40 anos de vida. Complicou-se, frequentemente, com pneumonias bacterianas secundárias.
Apesar de existirem diferenças notáveis nas condições higiénicas e alimentares, a gripe foi transversal a um grande número de países e a todas as classes sociais.



Há quem defenda que uma parte dos óbitos por gripe poderia estar associada à intoxicação com aspirina, a qual, chegava a ser recomendada em doses de 30 gramas por dia e poderia estar associada às hemorragias. No entanto, a mortalidade foi também elevada em regiões do mundo em que a população não tinha acesso ao ácido acetilsalicílico.
Muitos consideram que a estirpe viral responsável pela gripe pneumónica foi invulgarmente agressiva. Benigna, não foi, mas terá sido ajudada, pelo menos na Europa, pela subnutrição e pela falta de condições higiénicas causadas pela guerra e, ainda, pela aglomeração de pessoas nos acampamentos militares e nas cidades. A sobrelotação dos hospitais terá facilitado a eclosão de superinfeções bacterianas, responsáveis por muitas mortes.



Os mais velhos terão sido relativamente poupados por terem tido contacto anterior com vírus aparentados a este, que terão circulado décadas atrás (pandemia de 1889-90).
As vítimas prediletas da gripe pneumónica foram as grávidas, com mortalidade excecionalmente elevada. Há quem indique uma taxa de 30% e quem aponte para números superiores.
A história da gripe está longe de acabar. Vejamos brevemente como começou. Falo, naturalmente, das epidemias que foram registadas por escrito.

            RELATOS ANTIGOS DE GRIPE A
              TUCIDIDE (ATENAS)  431 A.C.
              HIPÓCRATES (NORTE DA GRÉCIA)  412 A.C.
              POSSÍVEIS SURTOS NO SÉCULO V
              EPIDEMIAS NA ITÁLIA, NO RENASCIMENTO
              PANDEMIA DE 1530
              PANDEMIA DE 1889 (ORIGEM NA SIBÉRIA)

Tucidide (460-395 a. C.) relatou uma epidemia ocorrida em Atenas no ano de 431 a.C. Descreveu os sintomas, que parecem sobreponíveis aos da gripe e, ainda, a desregulação que a doença provocou na vida da cidade, com o oportunismo, o mercado negro dos bens essenciais e a falta de respeito pelos mortos.
Hipócrates descreveu um surto de infeção catarral acontecida no norte da Grécia no ano 412 a.C. Tratou-se, provavelmente, de gripe, e foi relatada no Livro IV das Epidemias.
Há descrições de possíveis surtos gripais no século V, mas a verdadeira história da gripe epidémica tem início entre os séculos XIV e XVI, com os relatos das epidemias italianas do Renascimento. Ocorreu uma pandemia em 1530. A partir dessa data, a gripe diminuiu de frequência na Europa, até que no inverno de 1889, nasceu na Sibéria uma nova pandemia.

       PANDEMIAS DE GRIPE A APÓS A PNEUMÓNICA
           GRIPE ASIÁTICA  1957 (H2N2)
           GRIPE DE HONG KONG  1968 (H5N1)
           GRIPE "SUÍNA" 2009 (H1N1)
            
Segundo Francisco George, as pandemias de gripe são sempre diferentes umas das outras. Sucedem-se, a cada pandemia, epidemias anuais provocadas por estirpes que lhe são aparentadas, como se duma dinastia se tratasse.



As aves, especialmente as aquáticas migratórias, como os patos selvagens, constituem o reservatório natural do vírus da gripe. As pandemias regressam, com intervalos de tempo variáveis.   
As autoridades sanitárias estão, todos os anos, à espera duma nova epidemia. Hoje dispomos de antibióticos para combater as infeções bacterianas secundárias e uma melhor organização dos cuidados sanitários. Contudo, os transportes são também mais rápidos e os vírus chegam cá mais depressa.
Em 1918, não existiam terapêuticas antivirais específicas. Na atualidade, dispomos de vários medicamentos.

        MEDICAMENTOS ANTIVIRAIS
                 ADAMANTANAS (ANTIPARKISÓNICOS)
                 AMANTADINA E RIMANTADINA

                    NUNCA FORAM EFICAZES CONTRA A GRIPE B
                     As ESTIRPES A SÃO CADA VEZ MAIS RESISTENTES

 Tendem a ser abandonadas, no tratamento da gripe.

INIBIDORES DA NEURAMINIDASE
  ZANAMIVIR
    OSELTAMAVIR (TAMIFLU)
      PERAMIVIR (I.V.)

Podem ser usados tanto para prevenir, como para tratar a gripe. O peramivir, de administração intravenosa, é sugerido para os casos em que o oseltamivir falha.
Em casos de mutação viral importante, são os únicos meios para tentar controlar a proliferação da doença, até se produzir uma vacina específica contra a estirpe nova.
A terapêutica antiviral reduz a mortalidade dos doentes com pneumonia viral, mesmo se iniciada dois dias após o início da doença. No entanto, nas epidemias de gripe A do Missisipi, em 2001 e de Hong Kong, em 2009, foram encontrados vírus que continham o gene de mutação H275Y da neuraminidase que confere resistência ao oseltamivir. 
      Tem sido recomendada a profilaxia precoce.
Contudo, há artigos que indicam que o uso profilático deste produto, em pessoas que contactaram com doentes, pode aumentar o risco de resistência.  Sugerem que a profilaxia se deve reservar a pacientes com patologia grave associada.



Tem sido tentada a associação de vários antivirais. Pelo menos num ensaio clínico, o recurso à medicação com uma combinação de oseltamivir com peramivir não deu resultados superiores ao uso isolado do oseltamivir.
O vírus da gripe pneumónica correu o mundo durante dezoito meses, de março de 1918 a agosto de 1919.

                                                                                           (Continua)

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