Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

 

               JOSEF MENGELE



                          III

Instigado pelo pai, que dirigia na terra natal uma florescente empresa de máquinas agrícolas, Josef Mengele aceitou casar-se com a cunhada Martha. Fê-lo, em parte, para herdar uma fatia substancial da empresa familiar e, noutra parte, para se vingar da memória de Karl, o filho segundo e favorito de sua mãe, falecido cedo.

Em 1956, com o nome de Gregor, Mengele conseguiu obter um passaporte válido por três meses e voou para a Suíça num DC-7 da Pam Am. Foi encontrar-se com Martha nos Alpes Suíços.

A viúva do irmão esperava-o num hotel de luxo. Tinha consigo duas crianças: o seu próprio filho, Karl-Heinz, e Rolf, o filho de Mengele. O visitante foi apresentado aos meninos como sendo o tio Fritz, da América. Rolf estava convencido, desde muito pequeno, de que o pai tinha morrido em combate na Rússia. 

                       Josef Mendele com o filho Rolf, ainda muito novo

Martha e Josef Mengele agradaram-se um do outro. Ela parecia ser uma boa mãe e era uma nazi convicta. Não sendo propriamente bonita, era uma mulher sensual de 35 anos. Por outro lado, Mengele apreciou a pontualidade e os bons modos dos dois rapazes. A ligação era possível e poderia ser agradável. Josef e Martha passaram logo juntos a primeira noite no hotel. 

Dez dias depois, Martha e as crianças regressam de comboio a Günsburg, enquanto Josef viajava de automóvel com o seu amigo Seldmeier. Não voltava à terra natal desde novembro de 1944.


                                             Praça de Günsburg

O pai e o irmão procuraram convencê-lo a permanecer. Achavam que a situação, na Alemanha, se alterara consideravelmente. Por outro lado, a família Mengele tornara-se a mais poderosa do burgo.

Josef, contudo, sabia que não podia ficar. O seu nome continuava a constar de uma lista de criminosos de guerra e ele seria reconhecido facilmente em qualquer rua da cidade. A sua vida teria de continuar a decorrer na Argentina, onde Martha e Karl-Heinz se lhe iriam juntar.

Dias depois, apanhou um avião de regresso à capital argentina.

Mengele tinha 45 anos. Pretendia estabilidade e paz. Adquiriu uma casa magnífica em Buenos Aires.

Para voltar a casar e para ter acesso normal ao crédito bancário, necessário para a expansão da sua empresa, era necessário recuperar o seu nome verdadeiro. Helmut Gregor deveria desaparecer.  

Não foi fácil dar a volta à pesada burocracia argentina e conseguir que a verdade fosse reconhecida. Mengele confessou que vivera no país com uma identidade falsa no decurso dos últimos anos. Indicou à Embaixada da Alemanha Ocidental na Argentina o seu nome verdadeiro e as datas que poderiam ter significado para os registos: o do seu nascimento e o do divórcio de Irene Shoenlein. Declarou que nascera em Günsburg e forneceu a sua morada em Buenos Aires. Finalmente, a 11 de setembro de 1956, Josef Mengele passou a ser ele próprio, de acordo com a Embaixada alemã. Cerca de dois meses depois, as autoridades argentinas emitiram-lhe um novo Bilhete de Identidade.

O tempo gastou-se e chegou a altura de Martha e Josef casarem. Escolheram Nueva Helvetia, no Uruguai, para local do evento (civil) e deslocaram-se de avião até Montevideu. À cerimónia, compareceu um número restrito de amigos. Seguiram-se três semanas de lua-de-mel.

No regresso a Buenos Aires, Mengele encontrou na caixa de correio uma convocatória da polícia argentina. Deveria ter-se apresentado na esquadra de Olivos três dias antes.

Mal começara a falar com o seu advogado quando lhe irromperam na casa dois sargentos da polícia. Josef Mengele foi algemado e conduzido à prisão. Era acusado de exercício ilegal de Medicina.

Os médicos alemães residentes na capital Argentina estavam debaixo de fogo. Para agravar a situação, uma rapariga de 15 anos, filha de um grande industrial, morrera dias antes em consequência de um aborto. Ao ser preso, o médico culpado denunciara os colegas à polícia. O nome falso de Mengele, Helmut Gregor, constava na lista.

Gregor-Mengele desculpou-se como pôde. Afirmou que nada tinha a ver com os acontecimentos da Alemanha. Quanto aos abortos, tratava-se de factos antigos e tudo com as suas pacientes tinha corrido bem. Estava arrependido, apesar de muitas vezes se ter tratado apenas de fazer favores a amigos cujas filhas haviam dado maus passos.

Na presença do advogado, propôs um acordo ao oficial da polícia. A resposta imediata foi a detenção.

    Mengele sentia-se mal. A cela da prisão era malcheirosa, a cama tinha piolhos e a comida era difícil de tragar.

       Ao terceiro dia de custódia, foi chamado ao mesmo oficial. Negociaram e chegaram a acordo. A custo de 500 dólares americanos, o processo de Mengele foi guardado no arquivo pessoal do polícia corrupto.

Tudo parecia voltar ao normal.

Não aconteceu assim. Ernst Schnabel publicara meses antes, na Alemanha, um livro intitulado “No rasto de Anne Frank”. A obra teve grande divulgação.

Várias publicações regionais alemãs, entre as quais o diário Ulmer Nachrichten, publicaram excertos do livro. Ulm fica situada a menos de 40 quilómetros de Günzburg, a terra em que Mengele nascera e onde o pai detinha a fábrica de maquinaria agrícola.

Em agosto de 1958, o Ulmer Nachritchen recebeu uma carta anónima e enviou-a à polícia. Mengele pai teria contado à antiga governanta que o filho, em tempos médico de Auschwitz, fugira para a América do Sul.

Mengele assustou-se. Com o afastamento de Perón, a Argentina deixara de constituir um refúgio seguro.

Dirigiu-se apressadamente ao Paraguai. Viajou no seu próprio automóvel e instalou-se em Assunção.

Os amigos germânicos aconselharam-no a comprar terras e a ficar. O Paraguai de Stroessner era semelhante à Argentina de Perón.

                                            Alfredo  Stroessner

Arranjaram-lhe um emprego de distribuidor de um adubo que estava a ter larga divulgação na Europa.

A família veio visitá-lo com regularidade ao longo dos últimos meses desse ano. No entanto, o prazo de validade do seu visto no Paraguai estava a esgotar-se. No início de 1959, Mengele regressou a Buenos Aires.

Iria demorar-se lá pouco tempo. Eduard Wirths, antigo prisioneiro em Auschwitz e Dachau, dedicava-se à caça de nazis. Em 1954, descobrira casualmente o anúncio do divórcio de Josef Mengele e dera conta da participação de um advogado argentino no processo. Convenceu-se de que o antigo médico nazi vivia na Argentina e comunicou as suas suspeitas à justiça alemã. Após várias diligências falhadas conseguiu que, em 1959, o Ministério Público da Alemanha Federal elaborasse um longo processo sobre os crimes do médico carniceiro de Auschwitz. Estava anexado ao mandado de captura datado de 5 de junho.

Josef Mengel é acusado de ter tomado parte, ativa e decisivamente, em triagens nas enfermarias de prisioneiros inaptos para o trabalho no campo devido a fome, privações, exaustão, doença, abusos ou outros motivos, e cuja rápida recuperação não era esperada, ou sobre os que sofriam de doenças contagiosas ou particularmente desagradáveis à vista, como certas afeções cutâneas.

Os selecionados eram abatidos por meio de injeções letais, fuzilados, ou mortos através de dolorosa sufocação por ácido cianídrico nas câmaras de gás, de modo a arranjar lugar para os prisioneiros “aptos”, selecionados por ele ou por outros médicos SS, da forma acima mencionada. Ministradas pela sua própria mão ou por agentes sanitários das SS sob sua supervisão, as injeções letais introduziam fenol, petróleo, evipal, clorofórmio ou ar na circulação sanguínea, em especial no coração. Também foi acusado de supervisionar triagens no campo ou na enfermaria, quando os referidos agentes ou ele próprio atiravam cristais de Zylon B (uma forma de ácido cianídrico) para as condutas de ventilação dos quartos onde se amontoavam os condenados à morte.

O arguido Josef Mengel é acusado de ter realizado experiências científicas em prisioneiros vivos para publicação académica, movido pela sua ambição e pela progressão da sua carreira profissional. À luz do método usado nas experiências, ele tinha, em absoluto, a intenção de que as vítimas morressem e dava pouco valor às suas vidas. Muitas vezes, morreram apenas para fazer avançar os seus conhecimentos científicos e a sua formação académica. 


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