Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

                    
                 MEDICINA EM MACAU

                                        II

O livro «A Medicina em Macau», do padre Manuel Teixeira, começa com uma referência aos boticários jesuítas do Colégio de S. Paulo.


O Colégio resultou da ampliação da antiga Escola da Madre de Deus e foi fundado em 1594 por Alessandro Valignano. Destinava-se a ambientar os missionários jesuítas que vinham para o Extremo Oriente fazer apostolado e a melhorar a sua preparação específica. O programa académico incluía o ensino de Português e Chinês. Tornou-se uma instituição pioneira na abordagem da cultura oriental e um centro asiático de preparação de missionários católicos. Secundariamente, ou não, ensinava as primeiras letras aos macaenses.


Durante o período chamado Nanban, esteve ligado ao comércio marítimo entre Macau e Nagasaki. Cedo contou com meia centena de professores jesuítas e com mais de 200 alunos. O seu apogeu esteve ligado ao auge das relações económicas e culturais com o Japão.
Logo em 1595, foi danificado por um incêndio, mas a reconstrução pouco tardou.


Em 1639, depois de um período conturbado de guerras civis, o Japão foi unificado. «Um país, uma religião», à maneira da centralização do poder de Espanha, ocorrida um século mais cedo. O catolicismo foi banido do país. Muitos crentes foram massacrados e os missionários foram expulsos.



O Colégio foi usado para abrigar os sacerdotes perseguidos. Funcionou até 1762, altura em se fez sentir no Oriente a decisão do Marquês de Pombal banir a Companhia de Jesus de todos os territórios sob administração portuguesa.  
Como aconteceu mais tarde, durante a República, as instalações religiosas foram aproveitadas para servirem de quartel aos militares.
No ano de 1835, um incêndio começado nas cozinhas levou à destruição quase total da edificação. Resta apenas a fachada e a escadaria monumental que lhe dá acesso. Curiosamente, a ruína duma construção portuguesa acabou por se tornar um dos ex-libris da Ásia.


E vamos à História da Medicina!
Um irmão boticário do Colégio de S. Paulo dirigiu ao superior hierárquico um documento em que expressava as dificuldades sentidas na sua prática diária. A linguagem é clara e saborosa. Passo a transcrever alguns parágrafos. Num ou noutro ponto, recortei e colei pedaços de texto, tendo o cuidado de lhe não desvirtuar o sentido.

Por vezes tenho falado a V. Rev.ª dando-lhe várias razões para que haja por bem que eu não vá para fora da Casa curar a nenhum enfermo.
Primeiramente, tenho dificuldade de curar fora desta Casa, por não ser médico, porque um médico tem necessidade de saber muito bem latim, curso e medicinas e como V. Rev.ª sabe, das duas não sei nada e de latim sei muito pouco.
Vai em 6 anos que estou em Macau e todas as vezes que os Superiores me mandam fazer alguma cura, me escusei, vendo a minha insuficiência e, assim, sempre fui forçado, mais por lhes dar gosto e satisfazer o seu mandado, que para outro nenhum fim.
Ainda que algumas curas me sucederam bem, fiz muitos erros por não saber e alguns deles graves, de que fiquei com muitos escrúpulos.

                                   Consequências comuns de erros médicos
Vai em 6 anos que curo nesta cidade e neste curso de tempo tenho curado 92 homens, alguns 2 e 3 vezes, e 39 mulheres, tudo por ordem dos Superiores, gastando com estes enfermos todas as mezinhas que lhes foram necessárias, afora outras que dei, por ordem de outros médicos, sem nenhum destes senhores mandar a esta botica nem um só pardau para ajuda, sabendo bem que este Colégio é pobre.
Mais parece que gente tão ingrata não merece tão bem servida e o certo é que estes senhores cansam os Superiores e a mim, mais para não gastarem do que por lhes faltar na terra quem os cure.
Como nesta cidade nunca houve médico em forma, não têm, os que governam, posto os preceitos que se põem em todas as terras, que ninguém cure sem ser examinado, donde vem que todas as parteiras chinas e canarins curam de medicina e de quantas enfermidades há, sem ninguém saber o que elas sabem.
Nesta terra há mais de 600 portugueses casados. Como as mulheres, as mais delas, são chinas ou têm parte disso, são mais afeiçoadas a este modo de cura, por ser o seu natural e, pelo contrário, estranham muito as curas ao modo português.

O documento não está assinado, mas tem data: 21 de dezembro de 1625.

IMAGENS: INTERNET, ARQUIVO PESSOAL. 

Sem comentários:

Enviar um comentário