DEMÊNCIA E EUTANÁSIA*
A demência é uma coisa
terrível. Se a história da tua vida estivesse escrita num quadro negro, seria
como uma esponja que fosse apagando tudo, de baixo para cima. Esqueces primeiro
o que comeste ao pequeno-almoço. Depois, não sabes o que fizeste ontem nem onde
estiveste a semana passada. A seguir, não te lembras do sítio onde guardaste os
óculos ou o telemóvel. Mais tarde, desaprendes de fazer coisas. Dar o nó dos
atacadores dos sapatos, por exemplo, é um conjunto complexo de gestos que a
aprendizagem automatizou. As pequenas tarefas de cada dia perdem esse
automatismo e tornam-se enigmas – ia dizer puzzles – impossíveis de resolver.
Dás conta de estar a perder qualidades e ficas deprimido. A progressão da
doença é inexorável. Começas por desconhecer os teus netos e a seguir não sabes
que tens filhos. A dada altura, nem a tua mulher reconheces. Lembro-me de uma
senhora muito educada que, numa fase adiantada da doença, dizia respeitosamente
ao marido: «Não percebo o que é que o senhor está a fazer na minha cama».
A perda da afetividade
acompanha a deterioração da capacidade de raciocínio. Vai, tudo, piorando aos
poucos. Às tantas, não amas ninguém, não conheces ninguém e não entendes nada
do que se passa à tua volta. Ignoras-te a ti próprio. Deixaste de ter alma.
Continuas apenas a sentir fome e sede e a experimentar dor. A dor perdura e
tarda em sumir. É dos últimos indícios do «eu» a desaparecer.
Quem perde, de todo e de
vez, a capacidade de sentir e de pensar, deve ser considerado morto. Terá
direito a apagar-se, sem mais sofrimento e com um mínimo de dignidade. Trata-se
de um gesto de piedade. Acho que se devem ajudar esses corpos que foram gente a
deixar o mundo. Assim, não sofrem mais, não provocam sofrimento em ninguém e
não dão trabalho nem despesa. Eu queria que me fizessem isso, se chegasse a
esse ponto…
*Texto modificado do romance “Gerações”,
por publicar.
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