O PAPIRO DE EDWIN SMITH
O
nome deste documento provém do negociante de antiguidades que o adquiriu em
Luxor.
O
papiro data de cerca de 1.500 anos a.c. e está exposto na Academia de Medicina
de Nova York. É um rolo de quase cinco metros de comprimento por 33 cm de
altura e parece incompleto. Trata de feridas de guerra. Ocupa-se mais das
lesões da cabeça e pescoço, embora descreva vários ferimentos dos membros
superiores, um tumor da mama e uma lesão da coluna vertebral.
Há
quem alvitre que o papiro é da autoria de um cirurgião militar, o que é
contraditado por outros. Kamel Hussein, citado por Fisher e Swan, afirma que,
durante a quarta dinastia os egípcios eram um povo pacífico e dedicado às
grandes construções. O médico responsável pelo papiro teria adquirido uma grande
experiência no tratamento de lesões provocadas por quedas de alturas
consideráveis. Contra ele, opino eu: seria de esperar que das quedas
resultassem principalmente lesões dos membros inferiores. Ora, o autor do papiro demonstra essencialmente experiência em ferimentos causados
por instrumentos actuantes de cima para baixo, com maior incidência na cabeça,
no pescoço e nos ombros, como seriam mocas, ou maças de armas. Hussein não tem
razão.
No
texto, são referidas a anatomia, os resultados da observação, o diagnóstico, o
prognóstico e o tratamento. São descritas, pela primeira vez na História de
Medicina, as suturas cranianas, as meninges, a superfície exterior do cérebro
com as suas pulsações e o líquido cefalo-raquidiano. Há referências ao coração,
ao fígado, ao baço, aos rins, aos ureteres e à bexiga. É dada atenção à
palpação do pulso. Os autores sugerem que os vasos sanguíneos tinham origem no
coração.
Os
tratamentos propostos assentam em bases racionais. Recorre-se, num único caso,
a remédios mágicos.
O
papiro de Edwin Smith é um documento de uma importância extraordinária. Pela
primeira vez na história, é dada prioridade à observação dos doentes e à
anatomia, pondo de lado as concepções magico-religiosas que impregnam o papiro
de Ebers, a que se atribuiu uma datação ligeiramente mais recente. Há quem
defenda a ideia de que a medicina egípcia influenciou a grega, podendo estar na
origem das conceções de Hipócrates.
Que
objetivos perseguiriam os autores do papiro de Smith e os seus copistas? Há
quem pense que era um manual destinado a facilitar a atividade cirúrgica
prática. Outros sugerem que se tratava de um instumento didático, pensado para
apoiar o estudo dos alunos de cirurgia.
Nesta
espécie de compêndio, surgem pela primeira vez termos comuns na linguagem
médica, como “cérebro”, “fratura” e “convulsão”. Sugere-se o retorno sanguíneo
ao coração e fala-se do sistema nervoso e da importância da espinal medula nos movimentos dos membros.
Os
casos clínicos são descritos de forma sistemática. Referem, essencialmente, situações cirúrgicas. Incluem o título, o resultado do exame, o
diagnóstico, o tratamento e explicações sobre os termos obscuros utilizados.
O
título é mais do que isso. Engloba a palavra “instruções” e descreve a lesão e
a região ou o órgão atingido.
Ao
tratar do exame, o médico que escreve dirige-se a uma segunda pessoa: “se
examinar um homem afligido por… deve colocar as suas mãos sobre…” As descrições
da observação dos doentes permitem concluir que os médicos egípcios da época recorriam
à anamnese, à observação visual, à palpação, à avaliação dos movimentos da
parte do corpo afetada e ao olfato.
O
diagnóstico repete o título e acrescenta-lhe a atitude que o médico deve tomar,
face à situação exposta. Ou a trata, ou a procurara conter, ou não a deve
tentar tratar. Por exemplo: “O caso de alguém que tem uma ferida aberta na
cabeça, penetrando o osso e deformando o seu crânio, e que apresenta rigidez do
pescoço, será uma doença que não devo tratar".
É
notável a primeira referência na História da Medicina à rigidez da nuca como
parte do síndromo meníngeo.
O
tratamento não é sempre aconselhado. Não é proposto em 16 dos 48 casos
discutidos.
As
propostas terapêuticas são de três tipos. Em três casos, foi aconselhada a
contenção mecânica ou a a sutura e a cauterização (novidade absoluta na
literatura médica). Em 20 casos, ao tratamento cirúrgico foi adicionada a
prescrição medicamentosa. Em 19 outras situações, foram aconselhados unicamente
medicamentos.
A
duração do tratamento foi também objeto de análise, sendo dados conselhos
pertinentes.
O
glossário é outra novidade. Identificam-se termos de uso exclusivamente
clínico, sem correspondência na linguagem comum.
A
título de exemplo, registo aqui dois casos da coletânea.
Caso
31. Título: instruções respeitantes à luxação de uma vértebra cervical.
Exame:
observa-se um homem que tem uma deslocação de uma vértebra do pescoço e se
encontra insconsciente dos seus dois braços, das suas duas pernas e deixa
escapar urina pelo membro sem dar por isso; a sua carne recebeu vento, os seus
dois olhos estão muito vermelhos; trata-se duma deslocação duma vértebra do
pescoço… ...No entanto, se é a vértebra média do pescoço que está deslocada, há
uma emissão de sémen pelo pénis.
Diagnóstico:
deverá dizer-se a respeito dele que se trata de alguém que tem uma deslocação
de uma vértebra do pescoço, que está inconsciente das suas duas pernas e dos
seus dois braços e que a sua urina escorre. É uma lesão que se não deve tratar.
Caso
45. Um homem apresentava um tumor volumoso no peito. A mão colocada nesse peito
encontra o tumor frio, sem líquidos nem secreções. Diagnóstico: alguém que tem
tumores volumosos, uma doença que devo conter. Tratamento: não há tratamento.
Em
jeito de conclusão, pode dizer-se que os cirurgiões cujo saber esteve na origem
do papiro de Edwin Smith precederam as ideias de Hipócrates no que concerne ao
cuidado na observação, à formulação de uma verdadeira história clínica, ao
prognóstico e à procura de métodos racionais de tratamento, com rejeição das
práticas mágicas correntes na época. Os casos escolhidos são emblemáticos e refletem
uma extensa experiência cirúrgica e um pensamento clínico sistematizado.
Para
as condições da época, o papiro de Edwin Smith foi um documento médico
revolucionário.
Bibliografia
Espinosa,
J. A. Una rareza bibliográfica universal: el papiro médico de Edwin Smith.
ACIMED 03 2002, Sección Histórica.
Fisher,
R, Shaw, Patrícia. El papiro quirúrgico de Edwin Smith. Anales Médicos vol.50,
Núm.1 Ene-Mar. 2005. (recolhido na Internet)
Vargas,
A, López, M, Lillo, C, Vargas, Mª J. El papiro de Edwin Smith y su
transcendência médica e odontológica. Rev. Med. Chile vol.140 nº 10 Santiago,
oct. 2012
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