SANTO ANTÃO, O ERGOTISMO
E JERÓNIMO BOSH
Jeroen (Hieronymus) van
Anken nasceu na Holanda por volta 1450 e viveu 56 anos. É o pintor mais
original da história da cultura europeia.
A sua obra é absolutamente
invulgar e não se parece com a de qualquer artista que o tenha precedido. Levanta
um véu sobre a superstição e os pesadelos que afligiam muitos dos habitantes do
centro da Europa no final da Idade Média.
O
artista ilustrou nos seus quadros um pouco do pavor coletivo que atingia as
almas dos seus contemporâneos. Desenhou também deformidades e mutilações.
Este
é um esboço a que Bosh deu o título de Mendigos e Tolhidos. Está conservado no
Gabinete de Estampas da Biblioteca Real de Bruxelas. O artista desenha uma
série de inválidos, incluindo vários amputados.
Pieter Brueghel (O Velho),
o mais ilustre dos seguidores de Bosh, pintou também um grupo de mutilados.
Julga-se que algumas destas amputações se deviam ao ergotismo.
As amputações eram frequentes
no decurso da doença. As extremidades, após um processo de mumificação, chegavam
a desprender-se sem sangrarem.
Os inválidos praticavam a
mendicidade. O mendigo transportava muitas vezes consigo o membro amputado,
para impressionar as almas generosas, predispondo-as à piedade.
O Ergotismo foi descrito
por Virgílio nas Geórgicas e por
Lucrécio em De Natura Rerum. Ao tempo
a doença considerava-se relacionada com a erisipela. Em 1676, reconheceu-se que
o ergotismo era provocado pela ingestão mais ou menos prolongada de pão de
centeio parasitado pela cravagem (o fungo Claviceps Purpurea).
Em
francês, “ergot” é o esporão das patas do galo. O fungo tem uma forma semelhante.
Entre outras toxinas, produz ergotamina.
A cravagem desenvolve-se
no centeio e noutros cereais sendo mais abundante em anos de primaveras muito
húmidas seguidas a invernos frios. Em condições adequadas, ganhava
características epidémicas. Como o trigo era caro, o ergotismo atingia mais as
classes desfavorecidas. Chamavam-lhe “Fogo do Inferno” ou “Fogo de Santo
Antão”. A doença terá sido mais comum na França, na Rússia e na Alemanha.
Segundo Adams, Victor e
Ropper, em tempos modernos, foram usados preparados de ergotamina para
controlar as hemorragias pós parto atribuídas à atonia do útero. Por outro
lado, a ergotamina é frequentemente utilizada no tratamento da enxaqueca. A
dosagem excessiva da droga é a causa habitual dos raros casos de ergotismo
descritos nos dias de hoje.
Reconhecem-se dois tipos
de ergotismo: gangrenoso, devido a um processo vasoespástico e oclusivo nas
pequenas artérias das extremidades e convulsivo, ou neurogénico. O último é
caracterizado por fasciculações, mioclonias e espasmos dos músculos, seguidos
por crises convulsivas. Nos casos não fatais pode desenvolver-se um síndromo
neurológico semelhante à tabes, com perda dos reflexos patelares e aquilianos,
e perda da sensibilidade superficial e profunda A oclusão arterial conduzia
frequentemente à gangrena seca e à perda de membros.
Eram frequentes as
alucinações e as dores, isquémica e neuropática.
A ergotamina é quimicamente
próxima da dietilamida do ácido lisérgico (LSD), modernamente usada como droga
alucinogénica. Foi sintetizada, em 1938, por Albert Hofmann. O químico absorveu
acidentalmente, por via cutânea, uma pequena dose e visualizou «imagens
fantásticas, formas extraordinárias com padrões de cores intensas,
caleidoscópicas»...
Há quem sugira que a
descrição dos delírios provocados pelo ergotismo influenciou Jerónimo Bosh e
ajudou o pintor a produzir os seus demónios.
Naquele tempo, a
ineficácia da Medicina desviava as terapias para a sombra da igreja. Com os
santos generalistas, capazes de toda a sorte de milagres, coexistiam
verdadeiros especialistas. Lembramo-nos de Santa Bárbara para as tempestades e
de São Cristóvão para a proteção dos viajantes. Com a saúde acontecia o mesmo:
Santo Antão tratava o ergotismo, São Severino ajudava a combater a lepra e São
Sebastião e São Roque protegiam contra a peste.
Santo Antão, um eremita
egípcio do século III é considerado o fundador da vida monástica. Era muito
popular na Idade Média. É muitas vezes representado na companhia dum porco. Comer
mais carne e menos pão reduzia a probabilidade de contrair a doença.
Ao
tempo, a doença era tão frequente que, em 1095, se fundou uma ordem religiosa
destinada exclusivamente a tratá-la. Os cónegos agustinianos hospitalares de
Santo Antão espalharam hospitais especializados ao longo do Caminho de
Santiago.
O
único remédio certo para o ergotismo era a peregrinação a Santiago de
Compostela. As melhorias eram objetiváveis e atualmente fáceis de explicar:
durante as longas caminhadas, reduzia-se o consumo de pão de centeio e comia-se
mais pão de trigo.
Contra
a doença, popularizaram-se
águas e pães santos (água e pão de Santo Antão.) O vinho santo, que era
produzido a partir das vinhas dos conventos e que conteria infusões de relíquias
do santo, foi talvez o remédio mais conhecido. A mandrágora também era
ministrada, por vezes associada ao vinho milagroso.
A banha de porco usava-se como unguento nos órgãos afetados.
A banha de porco usava-se como unguento nos órgãos afetados.
A Iconoterapia
(contemplação de imagens como medicação contra a doença) poderá explicar a
proliferação de quadros em que figura Santo Antão.
O
nosso museu das Janelas Verdes (Museu Nacional de Arte Antiga) tem o privilégio
de acolher o mais conhecido de todos: «As Tentações de Santo Antão», um dos trabalhos
emblemáticos de Jerónimo Bosh.
O tríptico data
provavelmente de 1505. Foi pintado em pleno Renascimento. Tanto esta obra como
«O Jardim das Delícias» fazem a ponte, ou a transição, entre o imaginário
medieval bem presente ainda na Europa e as influências renascentistas que iam
ganhando terreno nas artes.
Antão distribuiu os seus
bens pelos pobres e passou vinte anos a meditar no deserto, o que provocou a
ira do diabo, que o tentou de todas as formas imagináveis.
Bosh retratou as tentações
a que o pobre santo foi exposto. Rodeou-o de monstros e de demónios
assustadores.
As
tentações começam no painel que fica à esquerda de quem olha.
Em
cima, o santo é arrastado aos ares pelos demónios.
A
meio, enfraquecido pelo jejum, atravessa uma ponte, amparado por figuras
piedosas.
Há
demónios que leem uma carta debaixo de uma ponte. Um monstro patina no gelo
para entregar outra.
O
painel da direita mostra uma mulher despida a tentar Santo Antão.
Antão
desvia o olhar para o lado, mas lá estão outros seres maléficos a tentar
conquistá-lo com comida e bebida.
No
painel central vê-se um templo cilíndrico, em ruínas, com a figura de Cristo
crucificado no seu interior.
Ao
fundo, arde uma aldeia.
Decorre
uma missa negra, oficiada por um sacerdote de rosto animalesco. O sacristão tem
um funil na cabeça.
Atrás
do santo, uma sacerdotisa oferece o cálice a um músico que tem uma
coruja poisada na sua cabeça de porco.
Cuttler escreveu sobre o tríptico de Lisboa. Considera esta cena como uma representação do Sabbath. A mulher distribui o Vinho
Santo, que alegadamente combateria o ergotismo. As imagens fazem relembrar o clima herético do final da Idade Média.
As
partes média e inferior do quadro são ocupadas por magníficas figuras
diabólicas, em parte humanas e em parte compostas por animais, plantas ou
objetos.
Em
baixo e à direita, uma mulher-árvore de rosto azulado cavalga uma ratazana e
embala uma criança.
É
este painel que transmite a mensagem essencial da obra. Estamos rodeados pelo
mal. Só com a renúncia às coisas do mundo e com a ajuda de Cristo se pode
alcançar a salvação.
A pintura de Jerónimo Bosh, efectuada à volta do ano 1500, terá influenciado movimentos artísticos surgidos cinco séculos mais tarde. Curiosamente, Salvador Dali também pintou as Tentações de Santo Antão.
Fontes:
Adams, R, Victor, M. e Ropper,A. Principles of Neurology. McGraw-Hill,1997.
Suárez,
Isabel Morán. El fuego de San António. Estudo del ergotismo en la pintura del
Bosco. Asclepio. Vol. XLVIII-2-1996. Recolhido em
http:/Asclépio.revistas.csic.es
Imagens: Internet
Imagens: Internet
Incrível
ResponderEliminarMuito obrigado pelo texto informativo e cultural, compartilhei com vários amigos meus a título de informação
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