HISTÓRIA DA CIRCULAÇÃO SANGUÍNEA
IV
DE
CLAUDIO GALENO A WILLIAM HARVEY
De
modo geral, o processo de aquisição do conhecimento desenvolve-se de forma
progressiva, assentando cada avanço em conquistas anteriores. Não aconteceu exatamente
assim com a compreensão da circulação sanguínea. Dissemos atrás que, para
Galeno, o sangue não circulava: era formado continuamente no fígado e
extinguia-se nos tecidos periféricos. A autoridade de Galeno impôs-se, na
Medicina europeia e árabe, durante cerca de um milénio.
O
primeiro médico do mundo a entender a pequena circulação sanguínea foi o árabe
Abu-Alhassan Alauldin Ali Bin Abi-Hazem Al-Quarashi. Nasceu em Damasco em 1210
e faleceu em 1288. Ficou conhecido pelo nome de Ibn al-Nafis. Expôs as suas
conceções no Comentário ao Canon de Avicena, quase quatro séculos antes da
publicação da obra decisiva de William Harvey. Nem Leonardo da Vinci, que
entendeu o funcionamento das válvulas cardíacas antes do nascimento de Vesálio,
nem o próprio André Vesalio, que negou, na segunda edição da sua obra fundamental
De humani corporis fabrica, em 1555, a existência da comunicação
interventricular, essencial para a teoria de Galeno, tiveram conhecimento dos
trabalhos de al-Nafis.
Miguel
Servet publicou em 1553 a sua obra Christianismi Restitutio em que descrevia o
mecanismo da pequena circulação sanguínea. Seria um conhecedor da literatura
muçulmana e judaica e terá tido acesso aos escritos de Ibn al-Nafis, traduzidos
para o latim em 1547 por Andrea Alpago di Belluno. Não fez, contudo, referência
à descoberta do médico árabe. Involuntariamente ou não, ficou, até ao começo do
século XX, com os louros atinentes à descoberta da pequena circulação
sanguínea.
Matteo
Realdo Colombo (1516-1559), discípulo de Vesálio e seu sucessor na Cátedra de
Anatomia em Pádua, resumiu os avanços científicos dos anatomistas que o precederam.
Reafirmou a ausência de comunicação interventricular, descreveu os mecanismos de abertura
e encerramento valvulares e voltou a explicar a pequena circulação,
confirmando os escritos de Miguel Servet com vivissecções de cães e outros
animais. O seu livro De Re Anatomica foi publicado meses após a sua
morte. Inclui algumas descobertas originais, como a expansão arterial com as
pulsações e o encerramento da válvula pulmonar durante a diástole para impedir
o refluxo sanguíneo. O seu contributo mais importante para a circulação
sanguínea terá sido a descoberta de que a ação principal do coração residia na
sístole e não na diástole.
Realdo
Colombo foi um personagem controverso. Ao contrário de outros médicos ilustres,
começou por ter formação cirúrgica e conheceria mal os textos clássicos. Ficaram
célebres as suas críticas a Vesálio e a suposta usurpação da primazia de Fallopio
na descrição do clitóris. Realdo, na sua obra, nem sempre citou devidamente os
anatomistas que o precederam. Muitos médicos, incluindo William Harvey, ficaram
convencidos de que tinha sido ele o descobridor da pequena circulação.
Andrea
Cesalpino nasceu em Arezzo, na Toscânia, em 1519. Viria a falecer em Roma em
1603. Estudou com Realdo Colombo. É sobretudo conhecido na história da ciência
como botânico. Foi o primeiro médico a fazer referência à circulação do sangue.
Afirmou que o centro do sistema circulatório residia no coração e não no
fígado. Percebeu que o sangue fluía nas veias apenas numa direção, a do
coração, ainda que não tenha entendido que circulava em circuito
fechado. Nas suas obras Quaestionum medicarum Libri II e Facultatibus
medicamentis Libri II, publicados em 1593, postulou que o sangue se deslocava
continuamente da veia cava para o coração e percorria o circuito pulmonar até à
aorta. Embora admitisse que algum sangue venoso passava diretamente para as
artérias, assomou-se do entendimento da grande circulação. Estava aberto o caminho
para o trabalho de William Harvey.
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