HISTÓRIA DA
CIRCULAÇÃO SANGUÍNEA
II
II
MIGUEL SERVET
INOVADOR OU
TRADUTOR?
Foi, durante séculos, atribuído a Miguel Servet o mérito de ter percebido, antes de todos,
o mecanismo da pequena circulação. Leonardo da Vinci andou lá perto, ao
entender os movimentos de abertura e fecho das válvulas cardíacas e André
Vesálio, na segunda edição da Fabrica, negou a existência dos minúsculos orifícios
que, no entender de Cláudio Galeno, asseguravam a comunicação interventricular.
Lembremos
que as dificuldades sentidas na compreensão da circulação sanguínea
assentavam nos dados obtidos pela dissecção de cadáveres humanos e animais na
antiguidade: não se encontrava sangue nas artérias. Segundo Erasístrato de
Alexandria(300-250 a.c.), as veias continham sangue e as artérias distribuíam
ar pelo organismo.
Erasístrato de Chio. Juntamente com Herófilo, fundou a Escola de Anatomia de Alexandria.
Galeno (129-200 d.c.) supunha que o sangue era produzido no
fígado e levado pelas veias até aos órgãos periféricos, não voltando ao
coração. Transformava-se na matéria dos tecidos que alimentava. O fígado era
obrigado à produção contínua de sangue, o qual seguia pela veia cava superior
até à aurícula direita e ao ventrículo homolateral. Existiriam poros no septo
interventricular, permitindo a passagem, para o lado esquerdo, de uma pequena
quantidade de sangue que, sujeito à influência do calor inato do coração e do pneuma, existente no ar, se expandia e ficava
imbuído do espírito vital que era
levado pelas ramificações arteriais a todas as partes do corpo. Os pulmões
serviam para arrefecer o sangue e o coração. Este modo de ver as coisas dominou
a arte médica durante mais de um milénio.
A
igreja católica queimou alegremente os exemplares do Christianismi Restitutio que consegui apanhar. A revolução fisiológica
contida nessas páginas apenas foi divulgada anos após a publicação do livro L`Exercitatto anatomica de motus cordis et
sanguinis circulatione (Exercício anatómico sobre o movimento do coração e
do sangue dos animais), de William Harvey.
Miguel Servet não chegou a explicar as bases em que
assentou a sua conceção revolucionária da pequena circulação sanguínea. Em 1924, o médico egípcio Muhyo Altawi descobriu em Berlim, na Biblioteca Estatal
Prussiana, manuscritos perdidos do médico árabe Abu-Alhassan Alauldin Ali Bin
Abi-Hazem Al-Quarashi, nascido em Damasco em 1210 e conhecido pelo nome de Ibn
al-Nafis.
Terá sido Ibn al-Nafis o primeiro médico do mundo a entender a
pequena circulação sanguínea. Expôs as suas conceções no Comentário à Anatomia do Canon de Avicena, quatro séculos antes
da publicação da obra decisiva de William Harvey.
Servet
seria um conhecedor da literatura muçulmana e judaica e terá tido acesso aos
escritos de Ibn al-Nafis, traduzidos para o latim em 1547 por Andrea Alpago di
Belluno. Resta-lhe a glória de ter sido o primeiro a divulgar na Europa o
mecanismo correto da pequena circulação sanguínea.
Fontes:
Barradas, Joaquim. A arte de Sangrar de cirurgiões e
barbeiros. Livros Horizonte, Lisboa, 1999.
Bedrikow, R., Golin, V. Carta ao editor. A história da
descoberta da circulação pulmonar. J. Pneumologia vol.21 nº1, São Paulo,
jan/fev 2000.
Botelho, J.B. Miguel
Servet: a resistência aos dogmas católicos e protestantes. Publicado na
Internet, em História da Medicina, em 04/04/2012.
Gutiérrez, F. A dissecção no Islão e no ocidente cristão na
Idade Média. 22/agosto/2010, Terceira cultura (Internet).
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