HISTÓRIA DA
CIRCULAÇÃO SANGUÍNEA
I
MIGUEL SERVET
UM MÉDICO HEREGE
Atravessamos
uma época de intolerância religiosa em que se volta a matar em nome de Deus.
Se, atualmente, são alguns muçulmanos que se entregam ao radicalismo, será bom
não esquecer que na Europa, durante séculos, a chamada heresia foi muitas vezes
punida com a morte na fogueira. Curiosamente, o ódio a quem se atrevia a pensar
de modo diferente do oficial chegou a irmanar católicos e calvinistas, que se
detestavam mutuamente. O caso de Miguel Servet, a quem, durante séculos, foi atribuída a
descoberta da pequena circulação sanguínea, é exemplar. O médico e pensador
espanhol cometeu a proeza de ser queimado por duas fés: vivo, em Genebra, pelos
calvinistas, em 1553, e em imagem, em Paris, pela igreja católica.
Miguel
Servet (Michael Servetus) nasceu, provavelmente em 1511, na povoação espanhola
de Villanueva de Sigena (Huesca, Aragão). Estudou Direito em Toulouse e
Medicina em Paris. Viajou pela Europa e conheceu alguns reformadores notáveis. Aos
vinte anos, publicou a obra De Trinitatis erroribus (Os erros da Trindade) em
que negava o dogma da Trindade e a divindade de Cristo. A juventude
emprestava-lhe o destemor: à época, o código justiniano impunha a pena de morte
a quem recusasse aceitar a doutrina da Trindade.
Servet
leu a Bíblia da primeira à última página e não encontrou a mínima referência à
trindade divina. Concluiu que essa doutrina havia sido forjada no Concílio de
Niceia, no ano 325 da era cristã.
Miguel
Servet praticou medicina na região de Lyon durante cerca de quinze anos. Foi
médico pessoal de Guy de Maugiron, vice-governador do Dauphiné, e do arcebispo
Palmier de Viena.
Em
1553, já na idade madura, publicou a obra intitulada Christianismi Restitutio
(Restituição do Cristianismo), em que rejeitava a ideia de predestinação das
almas para o inferno. No mesmo livro, descreveu a circulação pulmonar. Explicava
que o sangue ia do coração aos pulmões e regressava regenerado.
«O espírito
vital regenera-se nos pulmões de uma mistura de ar inspirado e de sangue
delicado elaborado no ventrículo direito do coração. Sem dúvida, esta
comunicação não se faz através das paredes do coração, como se acreditou até
hoje, e é impulsionado até aos pulmões por meio de um grande orifício».
Não
explicou como atingira esse conhecimento.
Trocou
correspondência com João Calvino, criador de uma vertente do protestantismo. A permuta
de ideias acabou mal. Calvino, que ficou conhecido como humanista, não deu
mostras dessa qualidade na perseguição que moveu a Servet. Chegou a escrever:
«se a minha autoridade valesse algo, eu nunca lhe permitiria viver».
João Calvino
Em
abril de 1553, Miguel Servet encontrava-se em Viena e foi preso pelas
autoridades eclesiásticas. Conseguiu escapar da prisão. Em junho do mesmo ano,
apesar de não estar em França, foi condenado pela Inquisição local sob a
acusação de heresia. Os seus livros foram queimados.
O
cerco apertava-se. Servet pensou refugiar-se em Itália. Teve a pouca sorte de
se deter em Genebra, fiado na tolerância dos calvinistas. O erro custou-lhe a
vida.
Alguma
atração inexplicada o ligava a João Calvino. A 13 de agosto, ouviu um sermão do
reformador. Foi reconhecido e preso. Num julgamento alegadamente presidido por Calvino,
foi condenado à morte por negar a Trindade e recusar o batismo infantil.
A
27 de outubro de 1553, Miguel Servet foi queimado vivo numa fogueira de lenha
verde. A lenha verde ardia mais devagar e aumentava o sofrimento dos
supliciados.
Fontes:
Bedrikow, R., Golin, V. Carta ao editor. A história da descoberta da circulação pulmonar. J. Pneumologia vol.21 nº1, São Paulo, jan/fev 2000.
Botelho, J.B. Miguel Servet: a resistência aos dogmas católicos e protestantes. Publicado na Internet, em História da Medicina, em 04/04/2012.
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