HISTÓRIA DA
CIRCULAÇÃO SANGUÍNEA
III
IBN AL-NAFIS, MÉDICO DE DAMASCO
O
árabe Abu-Alhassan Alauldin Ali Bin Abi-Hazem Al-Quarashi, nascido em Damasco
em 1210 e conhecido pelo nome de Ibn al-Nafis foi o primeiro médico do mundo a
entender a pequena circulação sanguínea. Os seus escritos andaram perdidos durante muito tempo, até poderem contribuir para o progresso da Medicina moderna.
Ibn
al-Nafis escreveu:
«O
sangue da câmara direita do coração deve chegar à câmara esquerda, mas não
existe uma via direta entre eles. O septo espesso do coração não é perfurado e
não tem poros visíveis, como Galeno pensou. O sangue da câmara direita deve
fluir através da artéria pulmonar para os pulmões, distribuído por meio das
suas substâncias, ser ali misturado com o ar, passar através da veia pulmonar
para alcançar a câmara esquerda do coração e lá formar o espírito vital…»
Note-se
que esta tradução não é feita à letra e que alguma terminologia foi
modernizada.
Afigura-se
inconcebível que algum médico se tenha atrevido a contrariar frontalmente as
opiniões de Galeno sem uma experiência anatómica consistente. As dissecções animais
não poderiam ser suficientes, dada a possibilidade de a analogia ser
imperfeita. É, aliás, improvável que os muçulmanos aceitassem dissecar porcos,
animais pelos quais sentiam repugnância. Al-Nafis dissecou seguramente
cadáveres humanos.
O
médico árabe descreveu também a anatomia dos pulmões:
«Os
pulmões são compostos de partes, uma das quais são os brônquios, a segunda, os
ramos da arteria venosa e a terceira, os ramos da arteriosa cava, todas elas
ligadas por carne porosa solta».
Afirmou
ainda que os nutrientes para o coração eram extraídos das artérias coronárias:
«A
declaração de Avicena de que o sangue que está no lado direito é para nutrir o
coração não é totalmente verdadeira, pois o alimento para o coração é obtido a
partir do sangue que passa através dos vasos que permeiam o corpo do coração».
Ibn
al-Nafis aprendeu Medicina com Aldakwar e estudou os trabalhos dos árabes
Rhazes e Avicena e do judeu Maimónides. Foi médico pessoal do sultão e
trabalhou no hospital Al-Mansouri, no Egipto. Faleceu no final de 1288, quando
Mondino de Luzzi era adolescente.
As
observações de al-Nafis foram registadas quase 400 anos antes dos trabalhos de
William Harvey sobre a circulação sanguínea. Curiosamente, os clérigos interditaram
as autópsias humanas na maior parte do mundo arábico-islâmico. O próprio
al-Nafis, que além de médico era especialista em jurisprudência islâmica,
condenou publicamente a prática de autópsias humanas por as considerar contrárias
à sharia e à compaixão. Paradoxalmente,
quase todos os estudiosos da sua obra sustentam que ele e os seus discípulos
recorreram repetidamente a dissecções humanas. De outro modo, não teria sido possível
compreender a anatomia nem esboçar o conhecimento da fisiologia da pequena
circulação. Note-se que o trabalho de Ibn al-Nafis representou provavelmente a
contribuição mais importante dos médicos medievais muçulmanos para o conhecimento
da Medicina.
Lawrence Conrad (citado
por Gutiérrez) afirmou em 1985 que, embora a experimentação com corpos humanos
fosse muito mal vista pelos maometanos, essa prática, ao contrário da mutilação
de cadáveres, nunca foi formalmente proibida. Acreditava-se que os mortos
continuavam a sentir a dor e que, no Juízo Final, os seres humanos se
apresentariam perante Alá em corpo e alma, devendo, nessa, altura estar
completos. É interessante anotar que alguns estudiosos de História da Medicina, entre os quais se conta Fernando Namora, consideram que o árabe Ibn al-Nafis, inibido pelas suas convições religiosas, nunca praticou autópsias humanas.
Fontes:
Barradas, Joaquim. A arte de Sangrar de cirurgiões e
barbeiros. Livros Horizonte, Lisboa, 1999.
Bedrikow, R., Golin, V. Carta ao editor. A história da descoberta
da circulação pulmonar. J. Pneumologia vol.21 nº1, São Paulo, jan/fev 2000.
Botelho, J.B. Miguel
Servet: a resistência aos dogmas católicos e protestantes. Publicado na
Internet, em História da Medicina, em 04/04/2012.
Gutiérrez, F. A dissecção no Islão e no ocidente cristão na
Idade Média. 22/agosto/2010, Terceira cultura (Internet).
Namora, F. Deuses e Demónios da Medicina. Publicações Europa-América, Lisboa, 1968.
Namora, F. Deuses e Demónios da Medicina. Publicações Europa-América, Lisboa, 1968.
Sem comentários:
Enviar um comentário